Ensaio

A cultura segue querendo ser livre

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A cultura segue querendo ser livre Livro de Leonardo Foletto (Reprodução)

O ano era 2009, quando o Brasil vivia bem o suficiente para acreditar no futuro. Entre os muitos eventos que aconteciam para discutir a então chamada “cultura digital” no país, um deles ocorreu no Teatro Guarany, em Santos, com o título “Cibercultura 10+10“. A ideia daquele encontro era propor um debate em torno dos dez anos que passaram desde a tradução para o português do hoje clássico “Cibercultura”, de Pierre Levy, e dos dez anos que estavam por vir. Para o debate foram chamados, além do próprio Levy, nomes conhecidos da área, como o sociólogo e ciberativista Sérgio Amadeu, os professores André Lemos e Laymert Garcia dos Santos e o recém ex-ministro da cultura Gilberto Gil.

No segundo dia do evento, dedicado à discussão e prática da cultura do remix, teve um determinado momento – recuperado no projeto que edito desde um ano antes, o BaixaCultura – em que músicos de Santos resolveram perder o medo. Perguntaram para Gilberto Gil, que estava na mesa a falar do remix e do Creative Commons:


Muito bonita toda essa história de Creative Commons, licenças livres, remix, mas como ganhar dinheiro?

A resposta de Gilberto Gil:

O problema é que vocês querem que apareça outro modelo único, que não vai exigir esforço algum e traga o sono de volta. A digitalização não exige que toda obra de arte seja de graça, mas que um modelo próprio de comercialização seja criado para cada necessidade. A tendência atual é que pensemos não na propriedade, mas no comum, no compartilhado.

Corta para 2021. Em meio à pandemia, depois da queda da chamada “pirataria” na internet e a ascensão do streaming e das redes sociais como modelos algorítmicos organizadores da vida digital para a maior parte das pessoas no mundo, eu lanço um livro chamado A Cultura é Livre: Uma história da resistência antipropriedade. Nele, justamente, eu discuto as formas de se criar e distribuir bens culturais a partir do questionamento da ideia de propriedade intelectual predominante no Ocidente. Fruto de um trabalho que começou informalmente em 2009, não por acaso ele tem prefácio do mesmo Gilberto Gil, que, como artista e principalmente ministro da cultura, fortaleceu a cultura livre no país a partir de ideias e políticas públicas que uniam a tecnologia de ponta (e de código aberto) com a cultura popular dos interiores do Brasil, como os até hoje saudosos Pontos de Cultura.

Vendo as diferenças dos contextos de 2009 e de 2021, às vezes me pergunto: por que lançar um livro que defende a cultura livre e questiona a propriedade intelectual agora? Se a chamada Indústria Cultural conseguiu se reinventar a partir das plataformas de streaming, com os artistas ainda a receber mínimas percentagens dos valores obtidos com a comercialização de seus produtos, e se as redes sociais passaram a ser “a internet” para a maior parte das pessoas do planeta, tornando obsoleta (ou cada vez mais de nicho) a prática de baixar conteúdo na rede, ainda faz sentido falar de livre compartilhamento na rede, licenças mais flexíveis, copyleft e Creative Commons hoje?

Se estou aqui escrevendo sobre um livro recém-lançado que trata do tema é de se supor que, sim, ainda acho esse tema relevante. Desenvolvida e propagada como ideia na década de 1990, nos primeiros anos da internet no mundo, a cultura livre se alimenta diretamente do conceito de software livre e do copyleft, ambas criações relacionadas a produtos tecnológicos – o software – do início dos anos 1980. Sua base, portanto, está relacionada ao desenvolvimento da tecnologia digital, assim como sua popularização é fruto de um cenário de expansão do acesso à informação a partir da internet. 

Mas a ideia de cultura livre, pelo menos na perspectiva que abordo no livro, tem uma história que começa muito antes do software livre e da internet. Falar de formas livres de criação, uso, modificação, consumo, proteção e reprodução de cultura passa por entender as maneiras de produzir e circular informação e cultura em diferentes períodos históricos, como a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade; considerar os mecanismos criados pelo direito ocidental para controlar (e restringir) a criação intelectual; perceber como invenções tecnológicas como a imprensa, o gramofone, o cinema, o rádio, a fotografia, os computadores e principalmente a internet têm grande importância na alteração de todos os aspectos da criação cultural. 

Falar de cultura livre também é olhar para como foram sendo construídas as ideias de autoria, propriedade intelectual, original e cópia, sem esquecer das noções do Extremo Oriente e dos povos indígenas das Américas sobre esses assuntos. E também observar como pessoas, grupos e movimentos subverteram o status quo da criação e da circulação da cultura de suas épocas, em especial ao longo do século XX, e das implicações políticas e artísticas de suas ações.

É um pouco disso tudo que tento abordar nas pouco mais de 250 páginas do livro, editado pela Autonomia Literária em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo. Devido à complexidade dos temas, considero o livro como um começo de conversa, algo que, espero, possa cumprir o que diz Gil no prefácio: “Este livro nos ajuda a balizar nosso horizonte de desenvolvimento humano com a largura da pluralidade de olhares”. (Gil talvez nem saiba, mas foi um dos primeiros leitores do texto, quando ainda não estava em sua versão final; o que me deu uma certa, e previsível, aflição.) Também é uma espécie de legado do BaixaCultura, espaço online de cultura livre que mantenho desde 2008, laboratório e extensão de boa parte das ideias desenvolvidas em “A Cultura é Livre”.

Após a publicação, participei de alguns debates a partir do livro* – e também sobre temas que são correlatos, caso das lutas pela quebra das patentes na pandemia, como no lançamento na FLIPEI em março deste 2021. Nessas e em outras ocasiões, tenho sido questionado sobre algumas ideias presentes no livro, em especial – e tal qual lá no evento de 2009 que abre esse texto – sobre a remuneração dos artistas. Muitos ainda hoje confundem o “livre” com o “grátis”, concluindo que se a obra vai ser liberada de grátis na rede, o artista não vai ganhar nada. É necessário dizer que não estou falando agora – como nem eu nem as diversas pessoas ao longo desses 12 anos falaram – de cultura grátis, mas de cultura livre. Liberdades de uso e reuso, escolhidas pelos autores, de forma a favorecer o compartilhamento e a criação de uma “base de dados” comum da humanidade – uma ideia também próxima da autonomia.

A remuneração dos artistas continua e sempre continuará sendo importante, mas não é necessariamente pela via dos direitos autorais que ela vai ocorrer. Assim como esse texto, o livro** é um convite a pensar sobre como precisamos, no mínimo, repensar a ideia da propriedade intelectual num mundo onde o compartilhamento de um bem imaterial via redes digitais é a lógica cotidiana. É também uma tentativa de ver que aquilo que às vezes nos é dado como natural – eu sou “dono” dessa ideia, eu criei essa obra “do nada” – é uma construção cultural que tem um marco histórico, geográfico e político de um tempo, não necessariamente a verdade que deve ser obedecida de forma acrítica. 

*Na próxima semana, participo de dois eventos a partir de Porto Alegre: uma conversa com a Nanni Rios, da Livraria Baleia, no Instagram, dia 26/4, às 18h. Depois haverá um “bate-papo + sessão de autógrafos” virtual numa sala da plataforma de código aberto Hubs, da Mozilla, onde qualquer um (limite de 50 pessoas) pode entrar, criar seu avatar, caminhar pelo espaço e conversar à vontade – quanto mais longe dos outros “avatares”, menos se escuta o outro. E no dia 29/4, às 18h30, em uma aula aberta (inscrições aqui) na graduação da Fabico-UFRGS chamada “Tecnopolíticas e resistências”, dentro do projeto Diálogos Críticos, comandado pela professora Laura Wöttrich.

** Além do livro estar sendo vendido pelo site da Autonomia Literária e outras livrarias Brasil afora, como a Baleia já citada, ele TAMBÉM está disponível, na íntegra, para baixar gratuitamente no BaixaCultura. Acreditamos que a circulação de um bem imaterial (arquivo PDF do livro) não é necessariamente rival de um bem material (livro impresso) – especialmente nesse caso, onde a livre circulação de ideias é tema e motivo do livro existir.


Leonardo Foletto é jornalista, pesquisador e doutor em comunicação pela UFRGS. Nascido no interior do Rio Grande do Sul, vive em São Paulo, onde trabalha no LabCidade, na FAU-USP, e como editor no BaixaCultura. Atualmente também é coordenador do capítulo brasileiro do Creative Commons, uma organização internacional que busca potencializar o conhecimento e a cultura livre a partir de licenças mais flexíveis, criada pelo jurista e professor em Harvard, nos Estados Unidos, Lawrence Lessig.

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