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30 mil bases, 29 proteínas e inúmeros desafios: um perfil do SARS-CoV-2

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30 mil bases, 29 proteínas e inúmeros desafios: um perfil do SARS-CoV-2

Em Introdução à filosofia da matemática, Bertrand Russel sugere que há dois tipos de problemas na Matemática: aqueles que vão do número 1 ao infinito, e aqueles que vão do número 1 ao zero. A ideia é, mais que uma teoria em si, uma provocação ao leitor. Já que nós, seres cotidianos, estamos acostumados a lidar com números relativamente grandes (a conta da luz, os quilômetros até a praia), Russel tenta chamar atenção para o fato de que, no pequeno espaço entre o nada e a unidade, há todo um universo igualmente imenso.

Nas Ciências da Saúde, o estudo dos vírus tem um pouco disso de que Russel fala. Bioquimicamente falando, os vírus não são muito mais que pequenas estruturas proteicas abrigando um pequeno material genético. Classicamente, nem são considerados seres vivos, devido ao fato de não terem a capacidade de viver e se reproduzir independentemente. São menores que todos os seres vivos (ainda que alguns vírus possam se aproximar do tamanho de algumas bactérias), e muito menores que a maioria das nossas células animais.

Ainda assim, em seus microcosmos próprios, os vírus carregam um universo de complexidade e diversidade que perpassa virtualmente toda a natureza. Há vírus para todas as formas de vida: plantas, animais, fungos, bactérias. Calcula-se que haja mais vírus na Terra do que estrelas no universo, seja lá qual for esse número. Descendo um pouca na escala, estima-se que, em um corpo humano, haja 100 vezes mais vírus que células. E, para além de infecções que vêm e vão a cada inverno ou comida estranha, o fato é que somos feitos, também, de vírus (há cerca de 100 mil pedaços virais no nosso DNA).

Às vezes, o mais simples é o mais difícil de ser compreendido. Talvez por isso haja tantas teorias e confabulações acerca dos vírus. Por serem menores e mais simples que as mais elementares formas de vida, já se propôs que os vírus seriam anteriores à primeira bactéria. Porém, por não termos notícia de nenhum vírus que consiga viver sem depender de uma célula, também se argumenta que os vírus necessariamente teriam surgido mais tarde.

Uma teoria especialmente curiosa defende que, para cada célula viva, há um vírus correspondente. Os vírus teriam se originado de uma porção desertora da célula, e por essa razão seriam capazes de infectá-la (e dela depender). Nessa visão, os vírus seriam uma espécie de defeito dos seres vivos, um tipo de falha em sua programação ou execução.

O SARS-CoV-2 é resultado da mutação de um coronavírus em harmonia com a natureza

Com essas questões em mente, uma pergunta inquietante que podemos nos fazer é a seguinte: se há tantos vírus no mundo (e inclusive tantos vírus em cada um de nós, neste exato momento), por que somente uma parcela relativamente pequena deles nos causa problema? Há muitas respostas possíveis, mas quase todas giram em torno do balanço encontrado, evolutivamente, entre os vírus e as células (e seres) que infectam. E isso faz parte do quebra-cabeças imposto pelo SARS-CoV-2, vírus causador da Covid-19.

O SARS-CoV-2 é resultado de alterações genéticas ocorridas em outro coronavírus, existente em morcegos. Este coronavírus anterior vive em harmonia com seu hospedeiro, mas, como qualquer vírus (ou qualquer ser vivo), está sujeito a mutações. As mutações são eventos anárquicos e inesperados, mas há certos padrões de alteração do código genético que permitem deduzir quantos eventos foram necessários para chegar até uma determinada mutação.

Assim, pelo grau de diferença existente entre os materiais genéticos deste coronavírus inicial e do novo SARS-CoV-2, podemos supor que, até chegar a nós, o vírus tenha passado por um hospedeiro intermediário, no qual foi possível mutar a ponto de se tornar um problema para os seres humanos.

“Alguns estudos indicam que o ancestral do SARS-CoV-2 (proveniente de morcegos) teria sofrido uma série de adaptações no hospedeiro intermediário e então ‘saltado’ para os humanos. Já outros estudos sugerem que o SARS-CoV-2 teria resultado de eventos de recombinação de cepas de coronavírus de morcegos com cepas de coronavírus já presentes no hospedeiro intermediário. Ou seja, o SARS-CoV-2 poderia ser um híbrido de um coronavírus de morcegos com um coronavírus do hospedeiro intermediário”, escreveu, por email para a seção Microscópio, Joel Henrique Ellwanger, pesquisador e doutor em Genética e Biologia Molecular pela UFRGS.

Embora o principal candidato seja o pangolim, ainda não se sabe ao certo qual foi o hospedeiro intermediário do SARS-CoV-2. Identificar esta espécie, porém, não é apenas uma questão de curiosidade científica: saber onde o vírus pôde fazer o salto genético é importante para definir estratégias sanitárias e políticas públicas para evitar o surgimento de novas cepas.

“Definir a espécie animal que serviu de hospedeiro intermediário indica quais atividades humanas contribuíram para a emergência dessa pandemia. Por exemplo, caso se confirme que uma espécie (como o pangolin) vendida em wet markets foi o hospedeiro intermediário, é possível incentivar medidas para redução e maior controle de atividades como a venda e consumo de carne de espécies selvagens”, explicou Ellwanger.

Vírus de RNA possuem maior potencial de mutação do que vírus de DNA

Para entender por que ocorrem essas mutações e estimar o risco que elas podem significar, precisamos olhar para a identidade genética dos vírus. Há duas formas básicas de se estruturar o material genético em um vírus: DNA ou RNA. Em ambos, o material genético está codificado na forma de bases nitrogenadas, e a diferença entre elas, bioquimicamente falando, é a presença (RNA) ou ausência (DNA) da oxigenação do ácido ribonucleico. Ainda podemos dividir geneticamente os vírus conforme o número de fitas no qual se estruturam: podem ser simples ou duplas.

Uma das mais importantes diferenças decorrentes disso é do ponto de vista evolutivo, pois vírus de RNA possuem um potencial de mutação muito maior do que os vírus de DNA. Tecnicamente falando, tanto um vírus de RNA como um de DNA estão sujeitos a instabilidades e alterações no código genético. A grande diferença está no fato de que vírus de DNA possuem recursos próprios para corrigir estas alterações. Nisso, eles se assemelham a nós, animais de DNA. Isso não impede toda e qualquer mutação, mas reduz bastante a chance de que uma mutação passe despercebida.

Os vírus de RNA, por sua vez, não possuem esses mecanismos de correção. A consequência é que a chance de uma mutação ocorrer e se perpetuar nas cópias descendentes é maior. Isso pode ser um processo bem caótico, pois as mutações são eventos aleatórios, sem um fim ou propósito definido. Muitas mutações podem acabar por se mostrar inúteis, não funcionais ou mesmo prejudiciais, e a consequência disso é que as cópias descendentes não prosperam. Por outro lado, uma mutação útil ou funcional ao vírus faz com que as cópias com esta mutação tenham alguma vantagem evolutiva, sendo mantidas nas cópias descendentes.

O tamanho do material genético também importa: quanto maior o material, menor é a chance de haver mutações. Um dos menores vírus conhecidos é um circovírus que infecta suínos, com um material genético composto por 1.700 pares de bases. No outro extremo, o vírus pandora possui 2,8 milhões de pares de bases. (O código genético humano, para termos uma ideia de comparação, tem aproximadamente 3 bilhões de pares de bases.)

“Há na natureza uma espécie de hierarquia nesse sentido”, escreveu, por email, Cícero Armídio Gomes Dias, doutor em microbiologia e professor da UFCSPA. Nesse universo de possibilidades, o SARS-CoV-2 parece ocupar um perfil intermediário. “Os coronavírus apresentam RNA de fita simples, o que os coloca no alto da hierarquia [do potencial para mutações]. Contudo, por terem um genoma extenso (30 mil pares de base), ‘perdem pontos’ no ranqueamento da frequência relativa das mutações”, explica Dias.

Como comparação, Dias cita o vírus da gripe, que tem uma taxa de mutação três vezes maior que o SARS-CoV-2. O H1N1, principal causador da gripe, também tem seu material estruturado em RNA, e é por sua considerável taxa de mutação que anualmente se desenvolve uma vacina atualizada com as novas mutações deste patógeno.

Os 30 mil pares de bases do SARS-CoV-2 conseguem produzir 29 proteínas

Quando se diz que o código genético do novo coronavírus está codificado em cerca de 30 mil bases, isso significa que se trata de uma sequência de 30 mil bases nitrogenadas. Um código genético estruturado em RNA possui quatro bases distintas: adenina (A), guanina (G), citosina (C) e uracila (U). Isso é lido como uma longuíssima lista de informação – por exemplo, as primeiras dez bases do SARS-CoV-2 são auuaaagguu.

Essas bases operam em trincas. De três em três, elas codificam aminoácidos, que são a base das proteínas. Do que se sabe até agora, acredita-se que essas 30 mil bases codifiquem ao menos 29 proteínas. Isso talvez pareça pouco, mas o fato é que muitos códigos genéticos têm as chamadas porções não codificantes. São partes do RNA ou do DNA que não têm por função carregar informação em si, mas proteger ou preparar as partes que realmente são responsáveis por gerar produtos.

Um dos principais produtos do código genético do SARS-CoV-2 é a proteína S. Localizada abundantemente na parte exterior do vírus, é ela que liga o vírus à célula a ser infectada, o que ocorre por sua ligação a uma proteína existente em algumas células humanas – e, em especial, do trato respiratório.

“A ligação de um componente do vírus com um receptor, evento essencial para qualquer infecção viral, em geral funciona como um mecanismo chave-fechadura. Ou seja, é ao menos relativamente específica”, explica Dias. “Se a ligação não acontecer, a infecção não ocorre. No caso do SARS-CoV-2, a proteína S tem sido alvo de intensa investigação visando encontrar uma substância que impeça o ingresso do vírus nas células hospedeiras.”

Compreender o código genético viral possibilita entender a expressão proteica do vírus. Isso, por sua vez, abre portas para descobrir de que maneiras o corpo reage a ele (anticorpos) e quais tratamentos são possíveis (fármacos e vacinas). É por isso que estudar as diferenças genéticas entre o SARS-CoV-2 e seus parentes da família dos coronavírus se torna algo importante. Delineando o que torna este coronavírus um novo coronavírus, podemos saber, por exemplo, até que ponto um contato anterior com outro coronavírus pode nos tornar resistentes ao novo exemplar.

“Anticorpos produzidos por indivíduos infectados somente poderão fornecer proteção se foram capazes de neutralizar o ingresso do vírus”, fala Dias. “É importante destacar, que embora o processo de ingresso dos coronavírus tenha vários pontos em comum, há sutis diferenças na constituição das proteínas S dos coronavírus, da mesma forma que os receptores celulares não são exatamente os mesmos”.

“Considerando a possibilidade de reações cruzadas pela relativa semelhança entre os anticorpos produzidos, há investigações com foco na potencial proteção de anticorpos para SARS sobre o SARS-CoV-2, o que pavimentaria a trilha para uma possível vacina”, detalha.

“Herói de dois mundos”

Uma grande questão em aberto é de que maneira será encontrado (ou não) um equilíbrio entre o SARS-CoV e os seres humanos. Até agora, os testes imunológicos populacionais vêm indicando uma baixa taxa de produção de anticorpos específicos para o novo coronavírus. Se não pudermos contar com a hipótese da imunidade cruzada nem de rebanho, talvez o único caminho para uma situação controlada seja, de fato, o desenvolvimento de uma vacina.

O problema repousa no caráter híbrido do SARS-CoV-2. Ele é um vírus bastante mais agressivo que os outros quatro coronavírus que, há milênios, convivem com humanos: são os vírus HCoV-229E, HCoV-OC43, HCoV-NL63 e HCoV-HKU1, que causam resfriados simples. Porém, ele é bem menos agressivo que os coronavírus causadores da SARS (2002) e da MERS (2012). Trata-se, portanto, de uma família de perfis extremos, e que tem, no SARS-CoV-2, uma espécie de síntese dos outros membros.

“O SARS-CoV-2 se parece aqui com um ‘herói de dois mundos’: é bastante transmissível, especialmente em casos leves ou mesmo assintomáticos, mas pode causar quadros graves. Isso nos dá uma ideia do problema que estamos enfrentando”, resume Dias.

“Cada vírus apresenta uma estratégia diferente de transmissão. Essa estratégia será vantajosa ou desvantajosa conforme o contexto ambiental e social na qual o vírus estiver inserido”,  completa Ellwanger. “No caso do SARS-CoV-2, suas características de virulência e transmissão, associadas às características sociais, foram vantajosas para sua disseminação de forma global.”

Muito tem se falado que todas essas características fariam do SARS-CoV-2 um vírus com uma “estratégia inteligente”. Embora sua natureza híbrida (alta transmissibilidade mesclada com grande variabilidade nos quadros clínicos) possa, de fato, parecer inteligente, dizer que um vírus adotou propositalmente determinada estratégia é conferir-lhe algo que não lhe compete. Mutações são eventos caóticos e imprevisíveis, e, como tais, estão muito além (e aquém) de vontades ou estratégias. A quase inesgotável complexidade contida em um conjunto de proteínas menor que nossas menores células assusta e assombra, mas também é amostra de quão frágeis nós somos.

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