Juremir Machado da Silva

Assim ainda se escreve a história

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Assim ainda se escreve a história Pintura de Augustus Earle (Fonte: Biblioteca Nacional de Canberra)

Tento aprender com tanta pesquisa que fiz. Releio Raízes do conservadorismo brasileiro, a abolição na imprensa e no imaginário social (Civilização Brasileira, 2017). Na época da escravidão, quem desse abrigo a um escravo fugido cometia crime. Muitos se tornaram criminosos por obrigação moral. A maioria, porém, cometia os crimes que a lei não previa: escravizava. O jornal A Redempção, de Antônio Bento, considerava legítima defesa toda agressão, até mesmo como morte, de um escravizado com o seu sequestrador. A lei era outra coisa. Esse passado cruel deixou marcas. Ainda somos os mesmos? Vejamos:

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“Não seria a narrativa histórica, até mesmo a mais cuidadosa e descritiva, uma prática permanente de anacronismo? O que fazer? Anacronismo é ver o passado com os olhos cegos do presente. Ver o passado que se infiltra no presente é descobrimento, desvelamento, revelação. O positivismo amordaçou o presente ao impedi-lo de julgar o passado. É claro que os julgamentos continuaram a ser feitos de maneira indireta, dissimulada ou transversal. O tempo, porém, revolta-se contra o que lhe tolhe os movimentos. O relativismo constrange a visão crítica. Deve-se relativizar o relativismo, colocando tudo em relação. 

A história não é simplesmente a crônica dos eventos que se perderam no tempo. Tampouco se resume à análise das transformações determinadas pelos movimentos estruturais. A história é uma narrativa que se refaz o tempo todo como desconstrução. 

O desmonte da ideia de que a escravidão era “normal” começou na própria época do cativeiro. Não era uma noção estranha a todos em um mundo inocente de senhores e escravos. Rui Barbosa, analista rigoroso de seu tempo, desmascarou a legalidade da escravidão mostrando que, entre homens de quaisquer “raças”, épocas e nacionalidades, não pode haver legitimidade jurídica nem ato jurídico perfeito quando uns legislam em causa própria sem consultar para nada os objetos de suas leis perversas:

‘Assim é, senhores. O africano que lance mão violenta às migalhas dos vossos tesouros perpetra um roubo, transgredindo um direito que não conhece, desconhecendo um código para cuja elaboração não contribuiu, arrostando uma Justiça organizada pelos seus carrascos, aventurando-se, unidade miserável, contra a multidão, a polícia e a riqueza da população opressora, rebelando-se contra um meio social que, aos olhos do escravo, não pode simbolizar senão o ódio e a pilhagem, cedendo aos impulsos do instinto animal, único princípio de vida consciente que a condição servil não destrói’.

O ladrão não era o escravo que se apossava por desespero de um bem do escravista. O escravo era o bem roubado pelo escravista. Um roubo legalizado. 

Os escravistas dotaram o cativeiro de leis fictícias, assim como um ditador dota sua tirania com um parlamento fantoche. Essas leis regulavam menos a escravidão como legítima e mais o intercâmbio da mercadoria humana entre seus proprietários. Rui Barbosa desmascarou, como outros, inteiramente a farsa desse direito infame: 

‘E vós, com todo esse patrimônio de sentimentos morais que a vossa civilização se ensoberbece de monopolizar, vós que constituís o Direito à feição da vossa vontade; que criais os códigos para proteção da vossa honra; que dispondes dos tribunais para garantia da vossa opulência; vós vos comprometeis, perante a Europa, a não continuar a saquear de almas a África, cominais, no papel, a ignomínia e o castigo de pirataria aos flibusteiros que desrespeitem a vossa palavra (…) vós o estipulais com o outro continente e, não obstante, vós mesmos, vós, não indivíduos dispersos, mas vós nação, vós governo, vós Estado, vós monarquia constitucional, vós vos fazeis o pirata máximo, cobrindo, aos olhos do mundo, com a improbidade nacional, os salteadores do tratado de 1826 e da lei de 1831’.”

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Em 1831 fora abolido o tráfico internacional de escravos. A lei não pegou. Prevaleceu o contrabando, a fraude, a adulteração de idades, o jeitinho brasileiro.

Em 1850, aprovou-se novamente a extinção do tráfico.

Um país em que milhões ainda passam fome já superou, de fato, o seu passado infame?

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