Juremir Machado da Silva

Brizola, a voz da legalidade

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Brizola, a voz da legalidade Foto: Ana Nascimento/Agência Brasil

Conta-se que ele nasceu destemido, em 22 de janeiro de 1922, em Cruzinha, parte de Carazinho, distrito, então, de Passo Fundo, e que essa entrada estrepitosa em cena marcaria com uma cruz o seu destino: botar a boca no mundo. Conta-se, como eu mesmo fiz em “Brizola, vozes da Legalidade”, que ele desde cedo impressionou a família com a sua determinação, decidido a se fazer ouvir sempre que tentavam silenciá-lo com alguma estratégia melíflua ou mais vigorosa. Conta-se que preferiu ser Leonel, nome de um líder maragato, ao qual seu pai era ligado, do que continuar Itagiba, seu prenome de batismo. Conta-se que galopava freneticamente, em seu cavalo de pau, gritando:

– Eu sou Leonel eu sou Leonel.

E assim nascia Leonel Brizola, que, filho de professora, pela força da educação, construiria um caminho que não lhe parecia destinado, saltando da condição de menino pobre, talhado para ser figurante na vida, a de protagonista estadual, nacional, com renome internacional. De 1947 a 1962, parcos 15 anos, depois de ser engraxate, jardineiro, graxeiro, estudante de escola técnica, rolando do interior para a capital, ele saltaria de deputado estadual a secretário de Estado, deputado federal pelo Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, governador dos gaúchos e deputado federal pelo Rio de Janeiro. Conta-se que ele não se deslumbrava com os cargos, sentia-se bem nas suas funções, “como um lambari na sanga”, queria mais e, de fato, sonhava com um mundo melhor para os que, como ele, haviam partido do quase nada e viam-se naturalmente em tudo. 

Conta-se, pois tudo se conta quando se trata de um personagem fadado a ser grande e sem complexo de cusco, que ele treinava oratória enquanto engraxava sapatos. Conta-se que tinha pressa em subir na vida para puxar os outros e que, como governador do Rio Grande do Sul, sentia que não podia deixar o cavalo passar encilhado. Então se destacou como nenhum outro, encampando as multinacionais da energia elétrica e dos telefones, começando uma reforma agrária, espalhando escolas pelo Estado (ninguém fez mais do que ele até hoje) e, num momento extraordinário, sendo maior do que o possível e dando ao mundo um exemplo de coragem e criatividade: garantiu a posse do cunhado João Goulart na presidência da República, em 1961, depois da renúncia do destrambelhado Jânio Quadros e da tentativa de golpe dos ministros militares. Leonel, no seu cavalo de fogo, levantou-se contra a ilegalidade, encastelou-se no seu palácio – nascido no mesmo ano em que ele – e de metralhadora a tiracolo comandou a resistência.

Conta-se que ouviu muito e falou mais ainda, pois resolveu requisitar a Rádio Guaíba, a única que estava no ar, por não ter veiculado um manifesto do general Lott contra o golpismo dos seus colegas fardados, instalá-la nos porões do palácio e soltar o verbo. Em poucos dias, seriam mais de cem emissoras na Rede da Legalidade. Quando ele falava diante do microfone, incendiava imaginações. Conta-se que até pessoas que não comungavam das suas ideias saíam de casa, alguns com armas enferrujadas, e iam ao Mata-Borrão, prédio no centro de Porto Alegre, para se alistar nas forças da resistência ao arbítrio. Conta-se que não teve medo quando soube da ordem, abortada pela coragem dos sargentos da Base Aérea de Canoas, de bombardeio ao seu QG na Praça da Matriz, onde a população coalhava o espaço tomada de um fervor cívico como raramente se vê. Todos estavam de pé, prontos a marchar pela liberdade, pelo justo, pela Constituição.

E, aos poucos, os apoios foram crescendo, a maré humana rugindo, os exércitos perfilando-se, o golpe morrendo, a crise passando. Jango tomou posse em 7 de setembro de 1961, num regime parlamentarista de ocasião, golpe dentro do golpe fracassado, e Leonel não gostou. Queria continuar resistindo. Era um espírito de fogo. Conta-se que em 1964, quando o golpe triunfaria, também queria resistir, bater-se, enfrentar o inimigo. Era, no entanto, uma guerra perdida. Foi para o exílio, viveu a dor da distância, preparou-se para a volta, que só aconteceria em 1979, acumulando experiências, conhecimentos e contatos. Seria governador do Rio de Janeiro, o único brasileiro a ser eleito para governar dois estados da nação, batendo a rejeição da poderosa Rede Globo. Depois, tentaria a presidência da República. Não deu. Conta-se que nunca se tornou amargo, que sempre acreditou no futuro, num país melhor, num mundo melhor e que, morto, cavalgando em outra dimensão, pode ter ouvido a multidão gritando:

– Era o Leonel, era o Leonel.

O maior governador da história do Rio Grande do Sul.

Conta-se isso e muito mais, pois sobre ele não faltam histórias, mitologias, lendas, controvérsias, elogios e críticos. Acertou mais do que errou, tanto que vive no imaginário dos que não se conformam, dos que continuam a resistir por algo melhor.

O filho de Dona Oniva, órfão de pai muito cedo, nunca se calou.

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