Juremir Machado da Silva

Era do ressentimento – e outras notas desta terra

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Era do ressentimento – e outras notas desta terra Foto: Kenrick Mills / Unsplash

Acorda no meio da noite e consulta relógio: uma hora da manhã. Tão longe da aurora. É só, na verdade, o começo da noite. Tenta dormir novamente e se vê num pesadelo: não há mais lugar para a crônica no mundo, muitos menos para a poesia. Um homem muito moderno lhe aponta o dedo e grita: “Cronista”. Então muitas vozes se elevam numa mesma emoção: “Cronista”. Uma senhora muito elegante diz: “Tem pior. É poeta”. Todos se erguem numa mesma comoção: “Poeta!”

Acorda outra vez e novamente consulta o relógio: uma e meia. Não quer dormir por medo de voltar ao pesadelo. Sabe que não escapará de todos aqueles olhares e dedos apontados. Sente que atravessará a madrugada tentando mudar. Promete ser outro, pragmático, compreensivo, esperto, transversal. Talvez até consulte um coach. Tem consciência de que nada parece mais arrogante do que decidir sozinho sobre como fazer as coisas. Um coach de crônica e poesia. Um coach de amor. Um coach de metafísica. Uma coach para lidar com a cultura do ressentimento. Vira de lado e tenta esquecer o que sente e vê.

Dorme e cai noutro pesadelo: um imenso vazio, um deserto tão vasto quanto uma noite de insônia, a noite dos anos. Quer sair logo daquele inferno tão previsível e estranhamente verde. Não pode. Um contador indica quantas pessoas já viram o seu sofrimento. Só poderá sair quando atingir determinado rendimento. Sabe que não conseguirá. Escreve uma frase num caderno de linhas amplas que esconde sob os lençóis. Se for descoberto, pagará pela desobediência. Diz assim: era manhã na minha solidão, eu olhava os campos com olhos de boi.

A punição para esse tipo de sentimentalismo é severa. Assume uma posição fetal e pede a Deus que o proteja da sua cabeça. Tem vontade de cavalgar, de voar e de contemplar a manhã sem névoa. Imagina um mundo sem crônica, sem poesia e sem manhã vadias. Compreende que não teria lugar num mundo assim. Não chora nem culpa quem quer seja. Tem consciência de que as tecnologias são para todos, para o bem de todos, que avançam implacavelmente ceifando carregadores de água e até abelhas polinizadoras. A essência da técnica, como dizia o filósofo, não é técnica. É existencial.

Levanta-se e abre um livro de poesia. Comete uma heresia. Compraz-se na solidão de veludo. Pela janela, vê a noite que não tem pressa de morrer. Luzes piscam ao longe, mas já não iluminam o futuro. São estrelas mortas em ampolas. Em outros tempos, teria acreditado no poder da palavra. Então fecha o livro sem ter lido uma só estrofe. Conhece cada verso, embora seja incapaz de recitá-los de cor. A sua memória precisa ser acionada por hashtags. Em breve, imagina, ela se acenderá como uma vela na procissão das lembranças.

Dorme e acorda. Certamente mais dorme do que acorda, pois sempre se engana quanto ao tempo que permanece desperto. Ao amanhecer, escreve uma crônica para confessar suas dúvidas. Pergunta-se: quem ainda lê crônicas? Pressente que os leitores de crônicas, ainda mais poéticas, já não pagam ônibus. São leitores preferenciais.

Valter Nagelstein condenado em primeira instância

O caso diz respeito a áudio sobre a bancada negra da Câmara de Vereadores em 2020. Da decisão: “ANTE  O EXPOSTO,  julgo  PROCEDENTE  o  pedido  formulado  pela acusação,  ao  efeito  de  CONDENAR  Valter  Luis  da  Costa  Nagelstein,  já  qualificado, à  pena  privativa  de  liberdade  de  02  (dois)  anos  de  reclusão  em  regime aberto,    substituída  por  duas  penas  restritivas  de  direito  consistentes  em  1)  prestação de serviços  à  comunidade;  e  2)  prestação pecuniária  no  valor  de  20  (vinte)  salários mínimos;  além da  multa  cumulativa  no valor  de  20  (vinte) dias-multa,  à  razão  de  01 (um)  salário-mínimo  vigente  à  época  dos  fatos.”

Máscaras ao ar livre

O governador Eduardo Leite pediu estudo sobre a liberação das máscaras ao ar livre. Será que está na hora de liberar também em lugares fechados? Não seria precipitação. Os números da pandemia estão caindo, mas ela ainda, infelizmente, não acabou.

Porto Alegre, 250 anos

Eu já te vi, Porto Alegre, ao cair da tarde
Com o sol enrubescendo as águas do teu rio
Que não é rio, mas flui até o mar.
Essa língua laranja ainda arde
Enquanto te vejo, cidade, passar
Alguns dias transida de frio
Outros, dourada, pela rua da Praia,
Que não tem praia, mas leva ao sol
Onde cada corpo como que desmaia
Entregue às brisas vindas de um arrebol.
Eu já te vi amanhecer clareando edifícios
Revelando em cada rua mil artifícios
Dessa beleza confessada aos que te amam
Só mostrada aos que todos os dias clamam
Por ver um pouco mais dos teus segredos
Nós, teus amantes, que deixamos os medos
E vamos te descobrir nos teus recantos,
Bares, praças, templos, cabarés, estádios,
Em que se despem esses eternos encantos,
Como um gol, como os ipês floridos
Amigos que voltam depois de anos sumidos,
Gaúchos pilchados, gurias nos seus ginásios,
A praça do general com seu apelido
A rua do marechal já esquecido
O beco de algum herói nunca vencido
Alto da Bronze dos anos de carmim
Velhas casas com pátio e jasmim
Glória, Cidade Baixa, Bom Fim.
Terra de Grêmio e Internacional,

Gigantes azuis e vermelhos,
Que nos servem de espelhos
Enquanto regamos tuas flores
E honramos as tuas cores
Com nossa límpida devoção.
Eu já te vi anoitecer no carnaval
Iluminando estátuas de poetas
Apagando o bem, o medo, o mal
Para nos consumir nas tuas festas.
Até o dia nos receber nos seus braços
Cobrindo de indulgência nossos passos,
Cidade sinuosa na qual me acho
Desde que em ti para sempre me perdi.

Falar em terra é lembrar de Cesaria Évora

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