Juremir Machado da Silva

José Saramago faria cem anos hoje

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José Saramago faria cem anos hoje Foto: Fundação José Saramago/Divulgação

Nascido em Azinhaga, Portugal, em 16 de novembro de 1922, José Saramago, prêmio Nobel de literatura de 1998, era um homem curioso. Comunista de carteirinha, podia ser muito seco ou suavemente gentil. Eu o entrevistei, em abril de 1989, em Porto Alegre, para Zero Hora. Essa entrevista foi republicada em meu livro “O Pensamento do fim do século” (L&PM, 1993). Que time de entrevistados: Jürgen Habermas, José Arthur Gianotti, Karl-Otto Apel, Sérgio Paulo Rouanet, Marilena Chauí, Cornelius Castoriadis, Enrique Medina, Gerald Thomas, Astor Piazzolla, Erhardt Engler, Jean Lacouture, Sidney Sheldon, Haroldo de Campos, Mempo Giardinelli, Joe Bellamy, Umberto Eco, Roberto Cardoso de Oliveira, Roberto Freire, Michel Maffesoli, Gérard Pommier, Darcy Ribeiro, Goerge Yudice, Roberto DaMatta, Jean Baudrillard, Vittorio Hösle, José Guilherme Merquior, Marek Siemek, Luís Carlos Prestes, Armando de la Torre, Blandine Barret Kriegel, Niklas Luhmann, Edgar Morin e José Saramago.

Uau! Eu conversei com todos esses monstros.

Vamos ao encontro com Saramago.

Devo essa ao meu inesquecível amigo Décio Freitas, que também faria cem anos neste ano da graça, ou sem graça, de 2022.

Leia e diga se não é muito atual.

O Escritor que veio do povo

Considerado um dos principais escritores portugueses da atualidade, ao lado de Cardoso Pires, José Saramago, autor de A Jangada de Pedra, Memorial do Convento, Levantado do Chão, O Ano da Morte de Ricardo Reis, entre outras obras, veio a Porto Alegre, em abril de 1989, como convidado do I Congresso Estadual de Cultura, organizado pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Cultural, e falou, em entrevista exclusiva a Zero Hora, sobre a literatura que produz. São textos barrocos, histórias interpoladas de mitos, lendas, narrativas apaixonadas pelo cotidiano, permeadas pelo fantástico e com um estilo tempestuoso, revolto e inconfundível. Fluem os loucos, os deserdados, os sem voz e os reis e rainhas delirantes.

– A estrutura narrativa dos seus livros marca uma das poucas renovações substantivas da literatura nos últimos anos. Como o senhor concebe o seu projeto estético?

José Saramago – A estrutura narrativa dos meus livros procura aproximar a disciplina da escrita à espontaneidade da fala. Escrever como se fala é a principal virtude de um discurso que se pretenda aberto e atraente. A escrita desligada do cotidiano privilegia níveis muito distintos da oralidade. Perde-se a fluência e aprofunda-se o hermetismo. É contraproducente. Meu texto busca a fluência da oralidade e enraíza-se no encadeamento. É torrencial, um rio, longo, onde a corrente arrasta tudo que encontra. As peças vagam nas ondas e a tempestade devasta sem parar. É uma recusa do estático. Minha literatura reflete, de alguma forma, as posturas que ideologicamente assumo. Mas não é um panfleto. Parece-me que é anacrônico confundir pregação ideológica com estética. Entretanto, toda obra reveste-se de conteúdo político. A situação dramática construída é que possibilita escapar da mera discursividade.

A confusão, no entanto, permanece para muitas obras e autores, ainda que o realismo socialista esteja desmontado. De que modo o escritor pode aliar criticidade, autonomia e compromisso com a realidade quase sempre adversa?

Saramago – Este é um aspecto fundamental: a autonomia da criação face aos compromissos políticos. O homem é capaz de estabelecer um filtro, sustentar um distanciamento crítico e evitar que tudo se transforme em manifesto. Busco mostrar o cotidiano contraditório, rico, paradoxal e submerso das pessoas. Deste modo, encontro regiões perdidas e desvelo situações esquecidas. A literatura trabalha nas fronteiras do real, da ficção, do documentário, da liberdade e da crítica. O não linear é um objetivo a ser alcançado como revelação dos comportamentos complexos. Por isso a literatura não é fotografia, mas interpretação, mesmo que a fotografia também seja subjetiva. A literatura vai mais longe no pacto com a subjetividade. Além de escrever como se fala, direciono-me mais para a natureza, em contraposição à sofisticação estéril. Vim do povo e sei dos meus sentimentos. Conheço projetos, sonhos, pensamentos e utopias populares. Retiro disso histórias que são contadas e ouvidas. Transformo-as em romances.

– História e ficção estão entrelaçadas nos seus livros. Trata-se de uma forma de demonstração da subjetividade da história enquanto disciplina que se pretende científica e de uma tentativa de elevar a literatura à condição de fonte histórica definitivamente legítima?

Saramago – Recebi a influência de autores dos séculos XVI e XVII. Algo que é fácil perceber em Levantado do Chão, Memorial do Convento, A Jangada de Pedra e no Ano da Morte de Ricardo Reis. A história não é uma ciência. É uma ficção. Vou além: como ficção, há uma tentativa de reconstruir a realidade através do processo de seleção de materiais. Os autores que aprecio ajudaram-me a compreender isso. O positivismo histórico não pode aceitar tal premissa, pois trata-se de abrir mão de fatos considerados irrefutáveis para entrar no reino das interpretações, subjetividades e relativismo. Os historiadores apresentam uma realidade cronológica, linear, lógica, que é insustentável. A verdade é que a história é uma montagem (e não falo de puro maquiavelismo, de operações obscuras para esconder o real, ainda que isso também ocorra). A montagem funda-se sobre o ponto de vista, o olhar sobre o real, a leitura baseada na bagagem social e individual. A história até hoje tem sido escrita sob o prisma masculino. Se fosse feita pelas mulheres, e parece que elas o farão a partir de agora, seria diferente. Enfim, há a história dos que têm voz e outra, não contada, escamoteada, dissipada, dos que não têm voz. A história ensinada secularmente nas escolas, neste sentido, é uma farsa.

– O senhor veio do povo. Antes de ser escritor, e escritor consagrado, quais foram as suas peregrinações?

Saramago – Gosto de me ver semelhante a um mosaico. Hoje sou romancista, poeta e dramaturgo, mas já fui funcionário, desenhista técnico, mecânico e editor de um suplemento literário. Essa trajetória é responsável, em parte, pelo teor dos meus escritos. Orgulho-me dela, pois me deu conhecimento do cotidiano e das dualidades fundamentais e desigualdades inaceitáveis. Tento resgatar a história dos excluídos, dos que não têm voz. A fantástica história dos imaginários relegados, onde a fantasia é vasta e só desconsiderada em razão da dominação econômica, política e social.

– Romance histórico é o melhor rótulo para a sua produção em prosa?

Saramago – Não. O meu referencial é sempre o presente, enquanto que o romance histórico intenta reproduzir eventos pretéritos com a fidelidade tão cara aos positivistas. Importa-me a demiurgia, a fabricação de outras histórias, ainda que à custa de invenção de fatos que alterem as narrativas oficiais. O escritor não pode parar diante de falidos conceitos de verdade histórica. Antes, os historiadores podiam protestar contra a deturpação de verdades indiscutíveis. Hoje, nem isso, visto que seus ângulos de análise já não podem supor universalidade.

– Candidato ao Parlamento Europeu e membro do Partido Comunista Português, o senhor é um militante político. Em que medida o distanciamento crítico é real?

Saramago – Sou filho de camponeses do Ribatejo. Esta é uma marca irrecusável em mim. A partir daí, orientei-me para a compreensão do mundo. Interesso-me por análises originais permanentemente. As reflexões sobre novas realidades ocupam o centro das minhas atenções. A avaliação, no entanto, das novas realidades é recortada pelo viés da condição que me formou. Na atualidade, preocupo-me com a crise dos partidos comunistas europeus. Momento grave que, espero, será superado. A utopia socialista está viva em mim e é essencial. Perdê-la seria desperdiçar o sonho, recusar a aposta na superação do sistema de opressão. Ainda sobre a história, em História do Cerco de Lisboa, retratei quase fielmente as concepções que professo sobre o assunto. Raimundo Silva, revisor, resolveu adulterar um texto. E onde deveria dizer que Lisboa foi reconquistada aos mouros, constará que não o foi. O certo não teria acontecido. Ocorre, na verdade, a rebeldia de um profissional cinquentão contra a banalidade da historiografia portuguesa. Nasce outro imaginário. Raimundo persegue o novo fio para retraçar outra história. Assim também agem os historiadores na eterna dança dos fatos e verdades, sempre superáveis e rearranjados por épocas e preocupações distintas.

– O senhor, a exemplo dos pós-modernos, aposta na relatividade histórica? É interessante para quem está filiado a um partido comunista!

Saramago – Nada sei a respeito da pós-modernidade. Apenas não acredito nos limites tradicionais traçados entre ficção e realidade. E, principalmente, desconfio dos paradigmas fundadores da Verdade. Não se pode estabelecer uma dicotomia entre forma e conteúdo. A cada conteúdo deverá corresponder uma forma e a cada época histórica um conteúdo condicionado pelas formas de viver, olhar e representar o universo. No meu caso, escrevo porque tenho algo para contar. Conto coisas sobre diferentes formas de interpretar conteúdos aparentemente semelhantes. Se não o tivesse, o melhor seria calar. Não suporto a ideia de formalismo puro, que me parece impossível ou, quando tentado, árido e enfadonho. História e literatura voltam, portanto, a imbricar-se.

–  A complexidade existente na sua obra não tem resultado em hermetismo. A comunicação efetiva aproxima-o do filósofo alemão Jürgen Habermas, defensor da noção de comunidade argumentativa, formadora de consensos com validade universal transitória. Esta é uma época sobretudo de crise. Os seus conceitos estão concatenados com a extração do movimento a partir da crise?

Saramago – É necessário aprofundar a questão. Nunca se falou tanto em crise. Crise de referenciais, de utopias, de valores, da Verdade, da ciência, da economia, do socialismo, do capitalismo e da vida. E não sem razão. Quando o próprio planeta está ameaçado, é preciso tratar da crise. Não deixo passar para meus livros – e não quero perder esta perspectiva – o que é de âmbito mais imediato. O imediato germina no jornalismo e espera o tempo adequado para servir de alimento à literatura. Seria precipitado, talvez, explorá-lo no calor dos acontecimentos. Prefiro algo mais amplo e remeto-me às influências dos séculos anteriores, sem me fixar nesta ou naquela escola, neste ou naquele autor, ainda que alguns sejam mais importantes para mim. A maleabilidade, de certa forma a infidelidade, é crucial para a construção de obras arejadas. As contribuições mais profundas, volto a dizer, são as provenientes das vivências: as experiências de uma vida de participação, lutas, angústias e expectativas, que deixaram em mim marcas muito fortes.

– A disciplina, que o senhor considera fundamental, é uma técnica?

Saramago – Aprendi-a no jornalismo clássico, o que também me ajudou a descobrir relativas ao texto literário. Não me considero um jornalista, pois minha atividade nessa área restringiu-se ao suplemento que citei. Mas soube me sujeitar e tirar boas lições. Os segredos do escritor consistem em conseguir transportar-se de um estilo a outro, de uma técnica a outra. Versatilidade é o termo que me agrada. O peso que o escritor carrega é o da inovação. Cada livro precisa ser diferente do anterior. O leitor e a crítica não aceitam a continuidade, a repetição, mesmo com perfeição formal. Fazer corretamente o mesmo é afundar. As exigências de originalidade e inventividade demandam o mergulho em todas as fontes imagináveis para arrancar elementos inusitados e que possibilitem a sobrevivência literária. Não há paz para o escritor.

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