Juremir Machado da Silva

A arte que nos habita

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A arte que nos habita Obra de Gladys May (Reprodução)

Outro dia eu acordei com saudades de mim, de quando morava em Paris e escrevia o que me dava na telha e no coração. Eu me sentia livre como um viajante sem data para retornar. Nem vontade ou saudade.

Escrevia assim e não me constrangia de ser uma espécie de ET: a arte é a parte maldita do homem, reino do inútil, conforme as belas palavras de Oscar Wilde, e do consumo das energias pletóricas do inconsciente. Como foi que tive coragem de escrever “pletórica”?

Escrevia e me sentia indomável. Imagino o espanto do editor quando leu isto: as teorias de Georges Bataille atravessam, com o seu fantasma indômito, a noção de despesa implacável e criadora. Pode-se, neste caso, falar em ética na arte? Emaranhado de contradições, equilíbrio de antagonismos, lugar da sublimação total, palco da violência simbólica absoluta, a arte parece escapar a todo controle.

Quando citei, no esporte, Kierkegaard, o editor me alertou que o leitor poderia achar que era algum novo jogador do Grêmio. Eu ri.

Era jovem e incontrolável. Não temia demissão (havia até mesmo pedido demissão da Zero Hora para viver na França, sendo depois recontratado como correspondente internacional) nem reprimendas.

Falava de Bataille como se fosse de um amigo de bar. Gostava nas citações Bataille, herdeiro intelectual de Marcel Mauss, pretendia que a economia se rege, antes de tudo, pelo consumo e não pela acumulação.

Eu queria me consumir: paradoxo. Irredutível à conservação, a vida é um processo de destruição, de extermínio, de eliminação de riquezas materiais e emblemáticas. As despesas improdutivas representadas pelo luxo, o culto funerário, a guerra, os espetáculos, as artes, os jogos e o sexo sem função reprodutora dinamizam a existência. Bataille. Bataille. Bataille. Eu estourava de alegria.

Três vezes Bataille e continuei empregado. O que havia na minha cabeça, que forças me faziam ser tão livre? Não sei. Era assim: um lógico poderia ironizar: a utilidade do inútil. Supérflua enquanto elemento de reprodução material, a despesa inútil serve à conservação da saúde mental dos homens. Uma tal visão funcionalista horroriza.

Minha obsessão era o valor das coisas sem preço. No campo do simbólico, a eficácia deriva de uma espécie de sutileza vizinha da ilusão. Mesmo que um princípio de utilidade seja extraído da inutilidade lúdica, a única maneira de realizá-lo consiste em crer que nada pode macular a pureza inútil dessa despesa improdutiva.

Queria que o produtivismo desse com os burros na água. Recebia muitos insultos: era chamado de pedante, de metido, de tolo empanturrado de citações, de reacionário (sim, a esquerda me odiava por eu ser anarquista, o que era visto como ser de direita).

Postulado pobre. O artista deveria crer na própria mentira ou, ingênuo, não enxergar o conteúdo ilusório de sua atividade. Nos dois casos, eis o importante, seria fácil extrair uma ética da arte. Mas, desde que estabelecido o princípio ideal, ao menos, de que a arte deve buscar a inutilidade não-funcional, nenhuma ética torna-se possível, a não ser de modo indireto. O artista deve ter uma ética. A arte, não.

Nos tempos atuais, a “moralina” devora a arte e o artista.

Era possível escrever assim sem ser cancelado: a ética indireta que permeia a arte diz respeito à reflexão sobre a existência, com seus problemas morais, sociais, individuais ou psicológicos, pertinentes à obra artística. A arte sempre, mesmo quando o nega, questiona-se a propósito do sentido, da justiça, da verdade, do bem e do mal. Reflexão ética, pois não remete à prescrição moral.

Fico pensando nos meus leitores daqueles dias. Como terão recebido este trecho tão pedante quanto libertário? Fora disso, a arte desliza para o terreno do dever ser: do autoritarismo, da arrogância, do elitismo e do aprisionamento da vida. Os artistas precisam como todos os homens adotar atitudes passíveis de universalização.

Podia-se citar até BHL. A luta dos intelectuais franceses, liderados por Bernard-Henri Lévy, contra o massacre na Bósnia exemplifica o papel permanente de consciência crítica do pensador. Combate que mostra brechas na medida em que o esforço não é o mesmo em relação ao genocídio de Ruanda. A ética da intelectualidade europeia não ultrapassa os limites geográficos do continente europeu. Conhecido etnocentrismo. Tudo agora se repete com a invasão da Ucrânia.

E Bernard-Henri Lévy está na área escrevendo sobre o novo conflito. Só que quase ninguém mais acredita na sua “arte”.

Onde andam os artistas libertários e revolucionários? Eu perguntava com doce ingenuidade: e a arte? A arte – não se procure originalidade em tal afirmação – deve obedecer exclusivamente ao estímulo complexo, mescla de racionalidade e irracionalidade, de talento e fúria demoníaca, que salta do artista para o substrato capaz de materializar uma concepção arrancada do corpo/alma.

Não escrevia assim hoje por saber que ninguém suporta o peso da palavra. O ideal normativo da arte, caso a expressão possua aqui uma aplicação, é a consumação da máxima inutilidade não transformável em utilidade pelos recursos do funcionalismo. A arte precisa incarnar na totalidade a parte maldita do artista e da humanidade.

Acho que não realmente escreveria assim hoje. Não teria coragem de ser tão categórico: arte maldita, parte do artista, arte mal-dita, rebelião do corpo, ar de maldição, fúria do espírito, árvore da negação, p-arte maldita, recusa perpétua do instituído, p-arte do artista consubstanciada no gesto marginal da anarquia (sem lugar).

Despedaçar as palavras me dava grande prazer. A p-arte maldita liberta o homem primordial. A p-arte maldita revela o homem que nada pode aprisionar. Nenhuma ética ou moral, mesmo que fosse desejável, é capaz de capturar esse homem-artista que retira do conflito entre a consciência e o inconsciente o eterno novo da vida.

Sim, eu me sentia um artista meio louquinho. Só me faltava a obra de arte. A teoria já estava pronta para ser usada ao primeiro grito: arte e loucura tocam-se com esplendor. Sem ingenuidade. O louco não é necessariamente o artista incompreendido, o profeta, o detentor de verdade que o imaginário cartesiano ocidental ignora.

Tudo era possível. O artista, entretanto, conhece algumas das veredas da loucura, p-artes mal-ditas da human-idade que nada pode aplacar ou destruir. A arte mostra o Outro de cada um e sua magia reside na maldição, jamais na delimitação de um registro de valores.

Imagino a fúria de alguns leitores. O editor era meu amigo, agora me lembro, e deixava passar o meu delírio como se fosse algo normal. Até comentava comigo partes como esta: suprema revolução, a arte não dará ao homem a paz da reconciliação entre consciência e inconsciente. A beleza da vida consiste na fratura, na incerteza, na impossibilidade da decifração, no abismo e no desconhecido.

A arte e o artista, par mal-dito, encontram sentido e paixão na obsessiva demonstração minimalista de uma fissura gigantesca e irrecuperável. A arte, ao contrário da ciência, não deve imaginar um progresso na direção do esclarecimento. A humanização artística deriva, paradoxalmente, da descoberta diária do crescimento do abismo.

Nestes tempos de Jair Bolsonaro eu sinto falta daqueles anos de insolência e errância. Andava pelo mundo em busca da arte. Falava como se fosse um grande: a arte persegue a escuridão? Não. Tem luz própria.

A bendição artística salta da revelação de um ponto de luz nas trevas. A cada fagulha, maldição brilhante, luminosa, gratuita, irrefreável, um universo escuro se refaz. Um mundo sem maldição afundaria na utilidade e na opacidade da luz. Tudo, tudo tão claro.

Parte maldita, a arte do homem seduz o artista enquanto p-arte e irredutibilidade. Arte, homem, artista e humanidade vagam na plenitude da maldição. Maldita saudade. Será arte? Será p-arte de mim?

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