A escolha de Anitta
Então ele disse: “Gosto da Anitta”. Começaram a chover espantos e críticas pontiagudas como flechas envenenadas. Era um festival de certeza em meio a um pantanal de dúvidas e de violências simbólicas. Tentaria responder com elegância. Ao seu lado, um cara não hesitava: rebatia com mais virulência ainda e festejava cada golpe acusado.
– Vai ouvir um gaúcho – disse um.
– Também ouço gaúchos, de José Mendes a Cesar Passarinho – disse.
– Odeio esses gaudérios reacionários – golpeou o cara.
Ficou por alguns minutos pensando em tudo o que Anitta provocava com sua autonomia, sua tatuagem no ânus, sua liberdade sexual, sua música altamente dançante, seu empoderamento e sua fama internacional.
– Annita só sabe balançar a toba – agrediu outro, de amarelo,
– Anitta faz música para dançar – disse ingenuamente.
– A toba da Anitta faz pensar muito mais do que o cérebro dos fascistas que falam mal dela – atacou o que vibrava com os combates.
Considerou que Anitta desestabilizava valores em decomposição. Quis entender a reação que provocava em pessoas rigidamente conservadoras. Preparava-se para argumentar quando ouviu isto:
– Só comunistas e vagabundos defendem a Anitta.
– Conheço muitas pessoas que não são comunistas nem vagabundos e gostam da Anitta, assim como gostam de música clássica ou de Chico Buarque. Acho que não se pode ser tão categórico nem tão fechado.
– Só bolsonaristas atacam a Anitta e defendem os sertanojos, esses que, como dizia um produtor musical já falecido, fazem música para fazer filhinho na balada e idolatrar gigolô de boi – falou o cara.
Quem era esse cara? Era alguém que conhecia, com muitos rostos e nenhuma paciência para a argumentação, uma dessas faces que povoam as redes sociais e dormem bem à noite depois de verter sangue virtual.
– Quem tem família não defende a Anitta – afirmou outro.
– Existem muitas famílias – tentou ponderar.
– Quem tem bom gosto não fica ouvindo esses mamadores de verbas públicas, esses que cantam como se estivessem se espremendo – disparou o cara, com esse ar de fotinho do Twitter e sua verve descontrolada.
Sabia que a discussão não levaria a qualquer porto seguro. Era melhor encerrar, sair de mansinho, ir ler um romance, esconder-se na solidão das palavras, entre estantes de lembranças e malas de documentos apócrifos em busca de um significado, algo assim.
– Nada pior do que letra de música da Anitta – foi o novo ataque.
– Anitta não quer fazer poesia – quis objetar.
– Tem, sim, tem muito pior: letra de sertanejo universitário.
O cara parecia uma metralhadora. Estava farto de hipocrisia e tinha disposição para os sangramentos. Ele, ao contrário, estava cansado de guerra, embora soubesse que nunca o deixariam em paz.
– Você defende a Anitta por ideologia, petista safado!
– Nunca tive partido – quase sussurrou.
– Olha só o reaça pingando ideologia vir falar em ideologia! Vai achar um espelho e um otorrino para limpar teu ouvido sujo de porcaria.
A escolha de Anitta era um mundo. Pode-se escolher Anitta ou ser escolhido por ela. Difícil é ficar indiferente à sua expressão.