Juremir Machado da Silva

Casais, belas e vereadores

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Casais, belas e vereadores Cartão postal da cidade antiga /Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

E Porto Alegre faz 250 anos!

Os açorianos que vieram povoar Porto Alegre não faziam jus ao terrível nome do arquipélago: Açores, proveniente de “açor”, ave de rapina, da família dos falcões, que, em grande quantidade, viviam e predavam na região. Ao contrário, foram colonizadores de boa índole e de muito trabalho. Saíram de casa por causa do excesso populacional. Buscavam espaço para aportar e viver.

É bem verdade que os “açores” podiam ser domesticados e eram úteis na caça. Aqui, os açorianos foram boas presas para a agricultura. Continuaram prolíficos e alegres. Já os bandeirantes, que desceram para estas bandas, até podiam ser chamados de aves de rapina. Contudo, Jerônimo de Ornelas, por alguns considerado o “fundador” de Porto Alegre, embora fosse um “açor”, era descendente, segundo Walter Spalding, “da melhor gente da Ilha da Madeira”. Podia ter sido, por isso, com seus parceiros de Laguna, um terrível Capitão de Mato.

Ornelas, de resto, incomodado pela chegada dos casais açorianos, que se intrometeram em seu porto (Porto do Dornelles ou Porto de Viamão), vendeu as suas terras e, nesse sentido, derrotado foi viver em Triunfo.

Na realidade, se há realidade naquilo que já não existe, Ornelas enfrentou a primeira reforma agrária do Rio Grande e não gostou. Teve suas terras desapropriadas para a instalação, justamente, dos casais açorianos. Vale lembrar que o Arquipélago dos Açores recebeu muita gente do Alentejo. Talvez por isso José Marcelino de Figueiredo tenha se dado melhor em Porto Alegre. A vida é assim.

Sérgio da Costa Franco assegura que Ornelas nada teve a ver com a fundação de Porto Alegre, embora seja impossível falar das origens da capital gaúcha sem citá-lo. No recuo estratégico, ele fundou o povo de Bom Jesus do Triunfo. Como se vê, Porto Alegre é o fruto de uma trama espontânea bem mais contraditória do que percebem os nossos bons e doutos positivistas. O acaso é sempre mais divertido do que a coerência a posteriori da História. Ao menos, aos olhos de um cronista sem compromisso com a verdade histórica. Porém, sem obrigação de cometer ficção, o que, de resto, é pura imaginação.

Os casais que primeiro chegaram ao Rio Grande vieram por engano. Melhor, por precipitação. Mais ainda, por bajulação. Pode isso? Depois do Tratado de Madri, de 1750, o governo metropolitano resolveu povoar o sul do Brasil e ordenou ao governador de Santa Catarina, Manoel Escudeiro de Souza, que enviasse para Viamão parte dos casais que não tardariam a desembarcar dos Açores.

O puxa-saco Escudeiro resolveu se adiantar e exportou para cá, em abril de 1751, uma leva de casais já assentados, desterrando-os de Desterro. Todo contente, Escudeiro escreveu ao rei para anunciar sua façanha. O monarca ficou tiririca da vida. E tinha razão. Os desterrados, insatisfeitos, espalharam-se pelo interior da província. Só com a leva seguinte dos recém-chegados ao Brasil é que a implantação funcionou. Como se vê, algumas das nossas mais resistentes características, mesclando “garra”, generosidade, hipocrisia, esperteza e malícia, parecem já estar aí nesses momentos fundadores: retranca, jeitinho, promoção, rapidez e bajulação.

Spalding, sem má intenção, deu margem para teorias chauvinistas gaudérias ao dizer que o contrato estabelecido pela Coroa com Feliciano Oldenberg impunha a remessa de “gente apta para o trabalho”, gente moça, sadia, forte, pronta para a labuta. Santa Catarina, porém, recebera velhos, enfermos e “aleijados”, que assim se falava. Porto Alegre, em contrapartida, teria sido brindada só com “famílias escolhidas”. Hum…

A história popular é feita de maravilhosas falsas interpretações. Há quem jure que na Praia de Belas, num passado mítico não muito distante, em torno da época da chegada dos casais povoadores, viviam deusas extraordinárias, açorianas lindíssimas que caminhavam até o rio, rasgando as roupas de tanta saudade de um Oceano longínquo. Daí, obviamente, teria vindo o nome Praia das Belas, depois Praia de Belas. A expressão, contudo, só apareceu no século XIX e por causa de um homem: Antônio Rodrigues de Belas, dono de uma linda chácara no lugar. A verdade é que as belas só chegaram com o Shopping.

O próprio amor por Porto Alegre exigiu um certo empurrão no começo. Quando José Marcelino de Figueiredo transferiu a capital de Viamão para Porto Alegre os vereadores fizeram-se de desentendidos e não se mudaram, ignorando a convocação do governador. Passado um mês, Figueiredo mandou-se chamá-los com urgência, deu-lhes um chá de banco e recebeu-os à noite, no palácio, cujo portão era fechado depois das 22 horas. Gentil e democrático, José Marcelino deu-lhes escolha: “Mandei chamá-los para saber se querem ou não mudar-se para esta nova capital. E se não quiserem, desde já deixo-os presos até que se resolvam a atender minhas ordem”.

Todos, de bom grado, aceitaram. Porto Alegre, então, pôde contar com uma Câmara de vereadores leais e dedicados. Tanto é assim que o Vice-Rei, Marquês de Lavradio, elogiou o desprendimento dos nossos primeiros políticos: “Louvo a obediência com que prontamente executaram a ordem que lhes dirigiu o Governador desse continente mudando a residência da Câmara para a nova Vila de Nossa Senhora Madre de Deus”. Os edis ficaram comovidos com o reconhecimento das altas autoridades. E continuaram obedientes e solícitos por realismo e medo.

O nome Nossa Senhora Madre de Deus, da preferência do beneditino Dom Antônio do Desterro, que assinou a autorização de criação da Freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, não pegou, talvez por ser comprido demais. De qualquer maneira, era a soma de duas paixões pessoais, a do religioso por Maria e a de Figueiredo pelas glórias da sua terra. Outra vez, as péssimas línguas insinuam que Figueiredo fora apaixonado por uma bela alentejana de Portalegre, talvez o motivo de sua briga com um inglês que teve de apagar. Porto Alegre, em resumo, seria o resultado de uma paixão mal resolvida.

País do carnaval

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