Juremir Machado da Silva

Contra o frio e o Putin

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Contra o frio e o Putin Foto: Kremlin

Sinto que o frio vem aí. Começo a sentir os seus prenúncios. Sempre me antecipo. Ele vai chegar. Não posso fugir para São Miguel dos Milagres. Terei de enfrentá-lo novamente. Todo ano eu escrevo contra o frio. O tempo passa, as imagens também, o frio retorna.

Nenhum assunto é mais importante do que o tempo que faz. Nem o futebol. Nem a política. Nem o fim da era Bolsonaro. Nem o massacre do Inter, por um a zero, no último Gre-Nal. Nem a religião. Nem os lábios da Angelina Jolie (ainda se fala nela?). Nem a voz da Joss Stone (continua maravilhosa). É um dos poucos assuntos dominados por todos, exceto pelos meteorologistas. Esses, embora até acertem algumas previsões, não se ocupam do essencial, a natureza subjetiva do clima. O tempo é um estado de espírito. Eu sou contra o frio.

Meu estado de espírito exige temperaturas a partir de 25 graus. Detesto o frio com todas as minhas forças, que são poucas, quase iguais às da Ucrânia contra a Rússia. Sei que cada um tem convicções sobre frio e calor. Mas garanto que são falsas convicções. Tão falsas quanto a afirmação de que a Ucrânia é um país nazista. No inverno, o sujeito reclama do frio. No verão, reclama do calor. Eu também tive a minha fase bipolar. Acabou. Hoje, sou um homem resolvido: colorado, mas já fui gremista, favorável a trocar de clube a cada cinco anos e adversário do frio. Meu inimigo maior é o frio úmido.

Já examinei todos os argumentos em favor do frio e não me convenci. Assim como não me convenceram os argumentos a favor do autocrata Putin. Há os que sustentam ser mais fácil se proteger do frio que do calor. Bastaria colocar roupas quentes, tapar-se com um cobertor (de orelhas ou não), acender fogo numa romântica lareira, ligar o ar-condicionado, usar cuecão, duas meias ou até meia-calça e muita lã. Não concordo.

Qualquer solução racional para um problema recorrente que passe pelo uso de cuecão já me parece prejudicada na base. Até meia-calça me parece algo menos vexatório e mais prático. Nenhuma das providências acima elimina o vento, a umidade, a diminuição da luz natural, a gripe, o resfriado, os problemas respiratórios e a vontade de só acordar ao meio-dia. O frio é para gente civilizada, esse pessoal que inventou a calefação, a OTAN, a guerra e aquece os ambientes privados e públicos para um longo e penoso inverno. Somos primitivos (eu sou, primitivo e simplista). Necessito de calor. Existe também o argumento do bom vinho. Se eu for me proteger do inverno gaúcho com um bom vinho, viro alcoólatra.

Acho extremamente mais fácil se proteger do calor. Basta ficar pelado, ligar o ar-condicionado, sentar numa barra de gelo, mergulhar numa piscina, no mar, no rio, numa banheira ou num lago de um bom parque público.

Quando formos de fato civilizados, ninguém entre nós usará terno e gravata no verão. Isso é coisa de colonizado. Sou decolonial desde o inverno passado. Sei que cada organismo reage de modo diferente ao clima. Tem gente que sufoca no verão. Na França, a canícula mata centenas de pessoas a cada ano. Entendo tudo isso. No passado, já tivemos práticas culturais extremamente eficientes contra o pior do calor, entre as quais a sesta. Sou a favor do retorno da sesta. Como nem todos podem ir até em casa tirar uma soneca, defendo que as empresas devem instalar sestódromos para seus funcionários. É só uma questão de nova mentalidade. Parece que o Google já faz isso. O Uber nunca fará.

Tudo me parece mais razoável do que o frio. A violência do Rio de Janeiro fica menos perigosa. Não vejo grande vantagem em passar alguns meses encolhido, tossindo e com o nariz escorrendo. É a única fase do ano em que eu reconheço o heroísmo dos gaúchos. Somos muito valentes mesmo. Apesar de tudo, os gaúchos tomam banho.

Olhem que a maioria dispõe do equivalente das famosas duchas corona: três pingos quentes a cada cinco minutos, até estourar a resistência e tudo se transformar num pesadelo gelado. É realmente um povo bravo, aguerrido e asseado. Nessas condições, qualquer europeu racional adotaria três medidas igualmente radicais: migraria, reinventaria o aquecimento central ou aboliria o banho da estação. Não contem comigo para defender o frio. Eu sou contra o aquecimento global. Exceto de junho até o final de agosto. Sou contra o Putin também: ele é gelado, glacial, impiedoso, cruel.

Sou contra também bares na Redenção.

Sou do contra.

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