Juremir Machado da Silva

Falar com as mãos

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Falar com as mãos A Catedral, de Rodin (Foto: Luisalvaz)

Tem dias em que eu contemplo as minhas mãos como quem olha uma catedral. Há tantos detalhes em cada linha, tantos vitrais que só meus olhos podem perceber, tantas veredas escondidas nessas conchas que estremecem ao som do piano do meu vizinho, tantas preces que se erguem aos céus em tardes de esperança ou melancolia. Outros dias, pesaroso, contemplo as minhas mãos como se fossem pontes em ruínas: avisto escombros, passagens, riachos, desvios, perdas e ganhos, meu passado.

Há tempos em que as minhas mãos são ferramentas de trabalho, esculpem, modelam, cinzelam, recortam, acenam, espalmam, espremem. Em certas estações, porém, essas mesmas mãos parecem tão cansadas: retorcem-se, esmolam, imploram, oprimem. Eu já as vi opulentas, não conseguindo carregar todas as minhas emoções e sacolas, já as vi vazias, sacudindo tristezas e afagando o vento, já as vi soberanas, indicando caminhos e dando o tom para uma orquestra invisível, já as vi crispadas, irritadas, furiosas, condenando de dedo em riste. Por vezes, nas madrugadas, eu afago uma mão com a outra num agradecimento silencioso por suportarem minhas ordens e alisarem o meu rosto quando me preocupo demais e preciso de um pouco de calma ou reconhecimento.

Quando penso que as trago carregadas de mágoas, tento lavá-las nas águas da minha infância e sinto que se enchem de vigor e de coragem. Então me levantam, carregam, seguram, me deixam em pé. Quando as vejo alegre, soltas junto ao corpo, descontraídas, quase batendo palmas pela alegria de ser, eu me agiganto para dizer: vivamos! Quanta coisas essas mãos já fizeram por mim. Quanto delas ainda espero!

Converso com minhas mãos como se falasse com duas amigas. Delas espero amparo, precisão e afagos. A elas destino cuidados de apaixonado ou de artesão. Há dias, porém, em que as maldigo por não fazerem o que peço, mando, imploro. É que elas não conseguem ser tão livres quanto a minha imaginação, essa mariposa que não se importa com minhas frustrações. Se dependesse delas, dessas mãos suaves e quase tristes, eu passaria a vida a escrever crônicas para aliviar meu coração dos anseios que nele circulam como orações em busca de lábios devotos. Minhas mãos parecem dizer: fazemos o que dá. Eu quero mais.

Quero tanto que nem sei o que quero. Elas, contudo, sabem que nem tudo é possível. Tem dias em que olho as minhas mãos como se contemplasse a minha memória: há tanto carinho nunca esquecido, tanto aperto que se estreita em lembranças vívidas, tantas piruetas, sinalizações, gestos decididos ou sutis, tantas pequenas façanhas espalmadas em expressões de deslumbramento ou delírio. Não, eu não as trago vazias. Eu as trago sempre cheias de comiseração e espantos.

Quando eu morrer, do que, por enquanto, não se pode fugir, eu as levarei junto ao peito, numa derradeira marca da nossa cumplicidade. Por que então, às vezes, elas me parecem tão estranhas, mãos que me acenam de longe como que dizendo: pare, alto, calado. Nessas horas, olho para elas como quem olha uma catedral que se perde nas alturas.

É isso que se chama, creio, falar com as mãos.

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