Juremir Machado da Silva

Galeano e Woody Allen em Porto Alegre

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Galeano e Woody Allen em Porto Alegre Foto: Fábio Del Re/VivaFoto/PMPA

Eram tempos inocentes. Eu podia soltar a imaginação. Escrevi uma crônica sobre um encontro fictício entre Eduardo Galeano e Woody Allen em Porto Alegre. Por que mesmo? Não sei. eram nomes que me diziam algo. Woody quer ia passear na Padre Chagas ao final da tarde. Eduardo preferia a Usina do Gasômetro.

– Vamos ver o rio e o sol – argumentava o uruguaio.

– Detesto sol. Prefiro dias chuvosos e tons neutros.

– Vamos ver o pôr do sol – insistia Galeano.

– Ah, bom, aí já fica melhor, menos utópico.

– Pode ser um pouco melancólico, mas bonito, como uma utopia que se renova justamente quando parecia extinta.

– É tudo tão diferente aqui, como se o ser encontrasse o não ser, um jogo de espelhos deformados – dizia Woody.

– Espelhos de uma história quase universal, penso.

– Adoro espelhos. No fundo, cada filme que faço é um espelho, mas um espelho que, em vez de refletir, esconde.

– Hummm… O cinema pode ser muito revelador. Só que nem sempre se está preparado para decifrar as imagens.

– Ajude-me a ver – pedia o cineasta, mostrando que lera Galeano. Ao menos, alguma frase perdida na internet.

– Continuamos com as veias abertas – lamentava Eduardo.

– Gosto desse trágico, desse barroco latino. É tão forte. Eu mesmo já pensei em cortar os pulsos. Foi na época em que fiz cinco sessões de psicanálise por semana.

– Cinco? Por que não fez logo uma por dia?

– Meu psicanalista não trabalha em final de semana. É sindicalizado. Leva muito a sério questões trabalhistas.

– Eu estava falando do coletivo, do nosso continente.

– Eu também. Na América, o indivíduo é um continente.

– Quando é que vocês vão parar de chamar os Estados Unidos de América? Usurpam até um nome que é de todos.

– Sem dúvida, a América deve ser dos americanos.

– Queria que me explicasse, Woody Allen, esta passagem do seu último livro: “Cada vez mais nos refugiamos na nostalgia quando sentimos que nos abandona a esperança, porque a esperança exige audácia, a nostalgia, não”. Eu sempre senti o contrário, uma necessidade de me refugiar na esperança nas poucas vezes em que a nostalgia me abandonou. A nostalgia sempre me exigiu muita audácia.

– Eu estava falando de futebol, da Celeste.

– Ah! Gosto muito de esportes. Mas nunca entendi realmente o futebol. É como sexo em grupo toda semana.

– Como assim? Não estou captando essa relação.

– Depende de muito esquema e de vigor físico.

– Sabe, continuo tendo saudades de um país que ainda não existe no mapa – diz Galeano, citando-se por reflexo.

– Engraçado, eu sempre tive saudades de um mapa que não existe em país algum. Devo ser mais pragmático.

– O mapa não passa de uma convenção.

– Sempre pensei que isso se aplicasse aos países.

– Eu continuo sonhando acordado, Woody Allen.

– Eu sofro de insônia. É um grande pesadelo.

– O que pensa do fim, Woody Allen?

– É sempre a parte que me toma mais tempo num filme.

– Eu estava pensando na ideia de fim das ideologias e em toda essa conversa sobre o fim das utopias. Com a crise mundial americana chegamos ao fim do neoliberalismo?

– Não sei. Mas o por do sol já acabou faz meia hora.

– Que tal pegar um cineminha?

– Que tem de bom pra ver?

– Vicky Cristina Barcelona.

– É um bom começo.

O tempo do cineminha passou. A Padre Chagas ainda existe? A Usina do Gasômetro nunca mais abriu. Woody Allen foi cancelado. Galeano morreu. As utopias viraram pizza. O Brasil foi tomado pelo bolsonarismo. O que sobrou?

A esperança. Nesta semana, com a leitura das cartas pela democracia, ela renasceu.

O que se espera? O fim de uma era que não devia ter começado.

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