Galeano e Woody Allen em Porto Alegre
Eram tempos inocentes. Eu podia soltar a imaginação. Escrevi uma crônica sobre um encontro fictício entre Eduardo Galeano e Woody Allen em Porto Alegre. Por que mesmo? Não sei. eram nomes que me diziam algo. Woody quer ia passear na Padre Chagas ao final da tarde. Eduardo preferia a Usina do Gasômetro.
– Vamos ver o rio e o sol – argumentava o uruguaio.
– Detesto sol. Prefiro dias chuvosos e tons neutros.
– Vamos ver o pôr do sol – insistia Galeano.
– Ah, bom, aí já fica melhor, menos utópico.
– Pode ser um pouco melancólico, mas bonito, como uma utopia que se renova justamente quando parecia extinta.
– É tudo tão diferente aqui, como se o ser encontrasse o não ser, um jogo de espelhos deformados – dizia Woody.
– Espelhos de uma história quase universal, penso.
– Adoro espelhos. No fundo, cada filme que faço é um espelho, mas um espelho que, em vez de refletir, esconde.
– Hummm… O cinema pode ser muito revelador. Só que nem sempre se está preparado para decifrar as imagens.
– Ajude-me a ver – pedia o cineasta, mostrando que lera Galeano. Ao menos, alguma frase perdida na internet.
– Continuamos com as veias abertas – lamentava Eduardo.
– Gosto desse trágico, desse barroco latino. É tão forte. Eu mesmo já pensei em cortar os pulsos. Foi na época em que fiz cinco sessões de psicanálise por semana.
– Cinco? Por que não fez logo uma por dia?
– Meu psicanalista não trabalha em final de semana. É sindicalizado. Leva muito a sério questões trabalhistas.
– Eu estava falando do coletivo, do nosso continente.
– Eu também. Na América, o indivíduo é um continente.
– Quando é que vocês vão parar de chamar os Estados Unidos de América? Usurpam até um nome que é de todos.
– Sem dúvida, a América deve ser dos americanos.
– Queria que me explicasse, Woody Allen, esta passagem do seu último livro: “Cada vez mais nos refugiamos na nostalgia quando sentimos que nos abandona a esperança, porque a esperança exige audácia, a nostalgia, não”. Eu sempre senti o contrário, uma necessidade de me refugiar na esperança nas poucas vezes em que a nostalgia me abandonou. A nostalgia sempre me exigiu muita audácia.
– Eu estava falando de futebol, da Celeste.
– Ah! Gosto muito de esportes. Mas nunca entendi realmente o futebol. É como sexo em grupo toda semana.
– Como assim? Não estou captando essa relação.
– Depende de muito esquema e de vigor físico.
– Sabe, continuo tendo saudades de um país que ainda não existe no mapa – diz Galeano, citando-se por reflexo.
– Engraçado, eu sempre tive saudades de um mapa que não existe em país algum. Devo ser mais pragmático.
– O mapa não passa de uma convenção.
– Sempre pensei que isso se aplicasse aos países.
– Eu continuo sonhando acordado, Woody Allen.
– Eu sofro de insônia. É um grande pesadelo.
– O que pensa do fim, Woody Allen?
– É sempre a parte que me toma mais tempo num filme.
– Eu estava pensando na ideia de fim das ideologias e em toda essa conversa sobre o fim das utopias. Com a crise mundial americana chegamos ao fim do neoliberalismo?
– Não sei. Mas o por do sol já acabou faz meia hora.
– Que tal pegar um cineminha?
– Que tem de bom pra ver?
– Vicky Cristina Barcelona.
– É um bom começo.
O tempo do cineminha passou. A Padre Chagas ainda existe? A Usina do Gasômetro nunca mais abriu. Woody Allen foi cancelado. Galeano morreu. As utopias viraram pizza. O Brasil foi tomado pelo bolsonarismo. O que sobrou?
A esperança. Nesta semana, com a leitura das cartas pela democracia, ela renasceu.
O que se espera? O fim de uma era que não devia ter começado.