Juremir Machado da Silva

Plantar e colher

Change Size Text
Plantar e colher Tempo de lutar pelo mais básico | Foto: Freepik

Era o tempo das colheitas e ele ainda não tinha plantado o suficiente para se retirar. Era o tempo das frutas maduras e ele continuava a semear em terra árida onde, por vezes, verdejava uma erva daninha. Era o tempo das cicatrizes e ele ainda curava as suas feridas com a lentidão dos que não têm pressa de partir. Nada, contudo, abalava a sua certeza de que o tempo só passa para quem não tem medo de desbravar os sertões da sua existência. Era o tempo do silêncio e ele ainda salpicava palavras nas páginas pelo prazer de auscultar os ecos dos corações. Era o tempo da vertigem e ele balançava na sua rede.

Certos dias, duvidava do que fazia e questionava os cronistas do passado com angústias do futuro. Era o tempo da dormência e ele agitava o cotidiano com a sua doce loucura de cavaleiro desandante. Queria prender a lua para iluminar a noite dos que não dormem. Queria voar como o pássaro para sentir o ar da eternidade. Queria tudo o que não fosse mentira para sentir o gosto da verdade nos seus braços e na sua boca. Era o tempo da gravidade e ele se sentia leve como uma pluma. Era o tempo das definições e ele continuava sem saber como conceituar o fim, a finalidade, pois andava a esmo, embora na maior retidão. Era o tempo da solidão acompanhada e ele se fartava de multidões provisórias.

Sabia o que não sabia e isso lhe bastava como moeda de troca. Era o tempo das impressões e ele contemplava o sol levante como quem vê a hora de partir contrariando a lógica do horizonte. Era o tempo da juventude e da sua pressa e ele se deliciava em ser o que era sem fazer concessões nem se desculpar por suas escolhas. Era o tempo de falar no tempo, de dizer “no meu tempo”, de sonhar com algo intemporal e de fazer o balanço dos tempos que não voltarão, mas ele se sentia eterno, apesar das dores que antes não existiam, pronto para abrir caminho.

E assim se passavam os anos, que ele não contava para não despertar Cronos, o deus dos cronistas e patrono da crônica, isolado no seu retiro longe dos calendários. Era o tempo das utilidades e ele só acreditava no “valor das coisas sem preço”, apreciáveis por tudo aquilo que não vale no mercado dos objetos e dos bens simbólicos. Era o tempo de consumir e do consumar e ele só queria se consumir na tranquilidade dos sonhos e na repetição das utopias. Se tudo se mostrava fato consumado, a sua persistência na consumição produzia um mundo paralelo.

Era o tempo da reflexão sobre o tempo, esse tempo que já não flui, esfarela-se, já não corre, escorre entre os dedos, já não passa, repassa o que se foi e salta no abismo da incontinência. Só lhe restava falar consigo mesmo para evitar a dispersão das vozes. De resto, tudo era alegria na profusão de discursos. Como dizia uma canção, “todas as vozes, todas”, exceto as que mandam calar quem as contraria. Era o tempo de falar, de dizer tudo, de gritar, de soltar a voz, as vozes, de contradizer-se, mas de sempre dizer o que ainda não podia morrer. Era o tempo de lutar pelo mais básico dos fundamentos: a democracia.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.