Juremir Machado da Silva

De Portalegre aos 250 anos de Porto Alegre

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De Portalegre aos 250 anos de Porto Alegre Foto: Giuliam Serafim / PMPA

Conta-se, como gosto de contar e já contei, que José Marcelino de Figueiredo teria decidido chamar nossa Porto dos Casais, debruçada sobre o que ainda era um rio, de Porto Alegre, nome que sorri como uma menina, num dia em que estava muito triste, morto de saudade da terrinha, o seu Portugal amado de onde tinha saído meio na corrida, graças a uma mãozinha do poder e à pressão, por outro lado, dos que queriam acertar algumas contas com ele. Não se pode eliminar facilmente a soma de deliciosos enganos e desencontros que ajudaram a construir a nossa sólida e “mui” valorosa e leal identidade.

Por que se conta o que talvez seja apenas uma lenda?

Ao que consta, Figueiredo, como bom português, ao menos na ideia que se podia fazer de uma cultura antes de esse tipo de percepção ser condenada como essencialismo e estereótipo, era um saudosista, um nostálgico, que, se tocasse algum instrumento, teria, quem sabe, inventado o fado, salvo se, contaminado pelas relações com os espanhóis e com a cultura do Prata, tivesse antecipado o tango. O gajo gostava de sonhar com “fatos do seu passado”, conforme a objetiva expressão do historiador Walter Spalding. Lembrava-se de Portalagre, localidade do Alto Alentejo, de origem romana, cantada em prosa e verso, ao que parece topograficamente semelhante a Porto Alegre.

O mais relevante ponto em comum entre Portalegre e Porto Alegre era o gosto por entreveros com espanhóis. No final do século XVIII, Portalegre vivia de matar abusados espanhóis em intermináveis guerras de fronteiras. Conhecemos esse filme. Spalding chega a citar uma expressão que se tornaria decisiva em nossa cultura. Segundo ele, Portalegre era “um marco de defesa”, uma “espécie de ‘tranqueira de Portugal’ na fronteira alentejana”. Tudo se associa quando a história é uma crônica: de tanto combater espanhóis, herdamos de Portalegre o nome meio estropiado e o gosto pelos ferrolhos (tranqueira). Deve ser daí que

vem, cientificamente, o nosso estilo de jogar futebol baseado na retranca e no gosto por massacar uruguaios e argentinos a botinadas. Nada como a pesquisa histórica para alcançar a origem das coisas! A astróloga Zora Yonara, que durante muito anos profetizou nas telas gaúchas, pronunciava Portalegre, em lugar de Porto Alegre, para divertimento geral. Não estava completamente errada. Talvez, em outra encarnação, tivesse sido também corrida de Portugal num dia ruim.

O certo é que José Marcelo de Figueiredo, que não era de Portalegre, mas a admirava e amava, resolveu batizar nossa Porto dos Casais, de onde também não era, mas pela qual também se apaixonou, de Porto Alegre. Marcelino era como um amante que chama a próxima amada pela nome da ex. Assim, no bom estilo da dor de cotovelo, Porto Alegre já nasceu de uma saudade e de uma vontade de provocar os hermanos que nos cercavam (e cercam) por todos os lados. Assim como o Guaíba é um lago chamado de rio, embora talvez não passe de um estuário, O Rio Grande é uma “ilha”, mesmo que se finja de continente.

Vivemos de (des)enganos e de conquistas heroicas.

No capítulo das controvérsias de historiadores sobre quem foi o verdadeiro fundador de Porto Alegre, matéria por demais árida para ser tratada em prosa quase poética, pode-se com certeza afirmar que José Marcelino de Figueiredo não foi José Marcelino de Figueiredo. Mas Manoel Jorge Gomes de Sepúlveda, nascido em Trás-os-Montes. Portanto, Porto Alegre foi batizada por um pseudônimo. A história é simples. o capitão Sepúlveda, nobre (um sapatênis da época) matou um oficial inglês que teria insultado Portugal e seu reino. Bom patriota e bom súdito, Sepúlveda apagou o oponente. Segundo as más línguas, o motivo era outro: um rabo de saia, o mais universal e intemporal motivo para um acerto de contas. Talvez o único realmente importante até hoje.

As fortes relações econômicas e políticas entre Portugal e Inglaterra exigiam a punição do assassino. Mas Portugal não queria perder um bom filho da elite nem brigar com a Inglaterra. As razões econômicas,

as mesmas que nos fazem, hoje, pagar caro pela gasolina, levaram os portugueses a propor uma saída. Mandaram Sepúlveda para o Brasil com o nome de José Marcelino de Figueiredo e uma promoção, o posto de coronel. Estava inventado o jeitinho e a salvação.

Com isso, Porto Alegre tornou-se Porto Alegre e capital da Capitania de São Pedro pelas mãos de um assassino e foragido, mas sob proteção das nações e das autoridades que deveriam persegui-lo e condená-lo. O caso de José Marcelino de Figueiredo inaugurou um estilo que seria a nossa marca: quando dá não para punir, promova. Figueiredo era bom homem que virou general e, conforme Spalding, morreu “serenamente”, em Lisboa. Com saudades de Porto Alegre.

Conta-se que nunca esqueceu o rio que não era rio.4

Continua...

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