Juremir Machado da Silva

Uma manhã de Salman Rushdie em Paris

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Uma manhã de Salman Rushdie em Paris Foto: Greg Salibian/Divulgação Fronteiras do Pensamento

Salman Rushdie foi alcançado pela ira de um fanático 34 anos depois de ter sido condenado à morte pelo aiatolá Khomeini. Prova de que o ódio nunca se apaga depois de ter sido disseminado pelos que se apresentam como representantes de uma verdade revelada a ser protegida. O atentado contra o escritor me faz lembrar da única vez em que estive perto dele. Como esquecer as cenas que vou relembrar agora, leitor?

Era domingo, 19 de março de 1995, e o 15º Salão do Livro de Paris, na Porta de Versalhes, trepidava com a presença de Salman Rushdie, que daria uma entrevista coletiva para jornalistas. Como correspondente do jornal Zero Hora na França, corri para o encontro. O escritor ainda vivia os anos mais duros da “fatwa”, a condenação à morte imposta pelo regime fundamentalista iraniano sob a acusação de ele ter blasfemado contra o profeta Maomé no livro Versos satânicos, publicado em 1988. Poucas vezes vi um esquema de segurança tão pesado. Nem mesmo numa coletiva de Fidel Castro promovida pela Unesco na capital francesa.

Entrar no Salão do Livro naquela manhã ensolarada exigiu paciência com a revista policial minuciosa. O principal motivo da presença do escritor anglo-indiano ali era um debate intitulado “Escritores em dificuldade”, com a participação dos filósofos Claude Lefort, então presidente do Comitê Francês de Apoio a Salman Rushdie, e Alain Finkielkraut, além dos editores Hubert Nyssen, da Actes-Sud, e Christian Bourgois, responsável pela publicação dos Versos satânicos em francês, de Franses D’Suza, membro do Comitê Internacional de Defesa de Rushdie, e do cineasta Claude Lanzmann. Chegar perto de Rushdie foi uma operação de paciência e força de vontade. Lefort, que eu havia entrevistado e sempre se mostrava simpático comigo, prometera ajudar se possível.

Salman Rushdie entrou sorrindo na sala de conferências, como se a vida não lhe trouxesse qualquer preocupação. Isso aconteceu minutos depois de o local ter sido vasculhado por agentes de segurança acompanhados de cães farejadores de explosivos. Ah, se eu tivesse um celular na época. Cláudia, “minha fotógrafa”, não pudera me acompanhar. Sem registros fotográficos, o importante era ouvir o homem e tentar falar com ele. Houve uma batalha entre câmeras de televisão, repórteres e organizadores para decidir como as coisas se passariam: os profissionais de imagem queriam ficar em pé na frente de todo mundo. Um jornalista da TF1, a Globo francesa, pedia prioridade para a imagem.

Claude Lefort e Alain Finkielkraut, pensadores iluministas e muitas vezes críticos da espetacularização da arte, duelavam com os “oponentes” como cavaleiros desesperados em meio a uma turba descontrolada. Lefort pedia, ordenava, implorava: “Ordem, por favor”. Foi então que o próprio Rushdie, de microfone em punho, derrubou a resistência dos teimosos com uma tirada de humor: “Tem um aspecto positivo nisso: é como se eu voltasse à vida normal e participasse sem problemas de uma briga banal”. O riso espalhou-se generosamente. Os renitentes recuaram. Sobraram dois câmeras na frente. Era hora de falar.

Vitorioso, Claude Lefort retomou a palavra, saudando Rushdie em nome dos “amantes da liberdade”. Aos desavisados, como se pudesse haver algum por ali, lembrou que se tratava de um “evento político histórico”. Dias depois, ele me diria que o evento lhe deixara a sensação de que seria difícil a vida dos encarregados de proteger o escritor. Rushdie, por seu turno, seria direto, destacando a incoerência dos países ocidentais, bons de discurso e ruins de práticas capazes de funcionar:

– Até hoje a comunidade internacional não se propôs a expulsar o Irã da ONU ou a adotar verdadeiras sanções contra uma nação que atenta contra os direitos humanos.

Houve desconforto na plateia. Nem todos eram jornalistas ali. Havia intelectuais, diplomatas, escritores e sabe-se lá quem mais.

O escritor cuja morte valia prêmio milionário mostrou sua língua afiada apontado negligências, desinteresse e demagogia:

– Seria melhor que os políticos admitissem a primazia dos negócios, do dinheiro e do poder em relação à liberdade e à dignidade humana.

Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, invadida pela Rússia de Putin, poderia repetir essa afirmação integralmente. Rushdie vivia sob proteção da Inglaterra, tivera um encontro com o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que lhe prometera toda a segurança possível. Os líderes europeus faziam o mesmo. Só não podiam atropelar interesses políticos e econômicos por causa de uma só pessoa.

Irônico, Salman Rushdie comentou:

– O problema parece que é a tal da geopolítica.

Ninguém estava ali para brincar.

Rushdie meteu o dedo inteiro na ferida:

–  É triste estar numa feira do livro cercado de policiais, a não ser que agora a polícia se interesse por literatura. Agradeço a proteção. Queria não apenas ser defendido, mas ver o Ocidente partir para a ofensiva. O Irã possui um regime impopular, tem grandes dificuldades econômicas e teria de ceder diante de fortes pressões internacionais. Falta vontade política.

Nada de novo no front. Rushdie seria recebido pelo primeiro-ministro francês Edouard Balladur e pelos candidatos à presidência da França, o socialista Lionel Jospin e o conservador Jacques Chirac, que ganharia a eleição. O presidente François Mitterrand, em fim de mandato, não se motivara para encontrar Rushdie. Estava ocupado com a badalada e criticada na mídia visita do cubano Fidel Castro, que desfilou com seu uniforme militar, como um mito em exposição, diante de olhos incrédulos como os meus. Não é todo dia que se vê um Fidel Castro em carne e osso. Nem toda semana que se está em sala com Castro e Rushdie. Paris, naqueles dias, não era uma festa: era pura polêmica.

Alain Finkielkraut, autor de A derrota do pensamento, best-seller no qual triturou a sociedade do entretenimento, disparou sua artilharia contra o obscurantismo islâmico. Rushdie sorria. Na sala, dentes rangiam. O filósofo considerou o islamismo radical mais “selvagem do que a inquisição” e deplorou o seu alcance planetário. Um muçulmano levantou-se e, quando a palavra parecia não ter dono, questionou:

– Por que o senhor insiste em atacar o nosso profeta?

Vi perplexidade nos olhos de alguns jornalistas que eu conhecia de outras coletivas, de verdadeiras coletivas, pois estávamos ali numa situação singular, inédita, embasbacados com a presença de Rushdie. O escritor respondeu como que procurando lentamente as palavras:

– Eu não faço isso. Contei nos Versos satânicos a história de um encontro do profeta com o diabo. Nada inventei. Isso consta nos textos sagrados. Meu livro trata antes do problema da imigração e critica muito mais o Ocidente.

O homem que o havia questionado parecia não crer no que ouvia. O seu lábio inferior tremeu. O seu contra-ataque foi curto e seco:

– É blasfêmia. Todo muçulmano sabe disso.

Visivelmente desalentado, Salman Rushdie preferiu evitar o confronto. Falou da sua tristeza por viver na clandestinidade, de não ter horizonte quanto ao tempo em que seria obrigado a esconder-se e da rapacidade dos editores, inclusive no Irã, dispostos a tudo para ganhar dinheiro com sua obra, pirateando-a sem o menor constrangimento. Nessa pegada, aproveitou para tocar num ponto sensível: o relativismo. Não poder criticar os costumes dos outros, disse, significa legitimá-los. Um homem levantou-se e saiu da sala. Rushdie estava trocando de editor na França. Bourgois não pode nem entrar no leilão pelo novo livro do autor de Haroum e o mar de história. A explicação veio direta e implacável:

– Bourgois não é um herói. Várias vezes, recusou-se a publicar os Versos satânicos e só o fez sob pressão. Esse é o motivo da ruptura.

A franqueza do convidado pareceu chocante. Ele se explicou:

– Falar para mim é viver. O silêncio será a minha morte, pois me alimento de palavras e não tenho outra saída. Mas ainda creio que tudo vai mudar. Quero ouvir dos presidenciáveis franceses que o eleito tomará providências para acabar com o tamanho escândalo que me envolve.

O Comitê Francês de Apoio a Salman Rushdie lançou nota clamando por novo sopro, nova energia, novo élan, na luta contra a “estupidez” do islamismo radical. A palavra liberdade arrancou sorrisos e produziu alguma agitação. Mãos foram levantadas. Havia indignação no ar. Rushdie citou Lolita e Ulisses como exemplos de obras atacadas pela ignorância da época, sem, contudo, que Nabokov e Joyce tenham sido condenados. Pediu que os ofendidos com o seu livro não o lessem ou o criticassem. Por fim, confessou o grande desejo da sua vida de então:

– Viver como um homem normal.

Publiquei pela primeira vez esse relato em meu livro Visões de uma certa Europa (Edipucurs). Anos depois, encontrei Claude Lefort num supermercado em Paris (intelectuais também compram comida). Perguntei-lhe se ainda lembrava daquela manhã de março com Salman Rushdie:

– Como esquecer um grande escritor encurralado pelo fanatismo?

Insisti num ponto: o que mais lhe chamara a atenção:

– A entrada e a saída dele. Foi um dos maiores aparatos de segurança que vi na vida. Ainda assim, ele parecia tão vulnerável diante de todos.

Parecia certo que um dia a mão de um fanático o alcançaria.

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