Juremir Machado da Silva

Saudade de um lugar que não existe

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Saudade de um lugar que não existe Foto: Carmen Tehillah/Unsplash

Tem certos dias em que penso em nossa gente e me dá uma vontade de ir embora, ir morar no mato, em qualquer lugar. Já disse que para mim a humanidade se divide em dois grupos: os que querem ir para longe de casa, tipo Portugal, e os que sonham em voltar para a aldeia natal, como eu. O único problema é que a aldeia natal é uma miragem, algo que não existe mais, salvo como fantasia, evocação, lembrança. Eu queria mesmo era voltar para a minha infância e ainda assim se pudesse fazer algumas reformas e adaptações: água encanada, luz elétrica, internet, banheiro (na campanha só tinha a latrina, chamada de patente, na cidade o vaso sanitário atendia pelo nome singular de bateclô).

Pura antropofagia.

Eu queria mesmo era ter uma casinha branca, um mato de framboesa, um pomar com pessegueiros, canarinhos e sabiás, meus livros, a Cláudia, meus amigos, minha família e a voz de Mercedes Sosa para dizer: “Gracias a la vida que me ha dado tanto”. Não precisava, porém, exagerar me dando, sem que eu pedisse, Bolsonaro e seu bando.

Eu quero é dar fora, como dizia aquele rapaz, bom compositor e cantor, antes que seja tarde, que a vaca vá pro brejo, se já não foi, e o boi fuja com a corda, que ele não é bobo. Por que este desencanto? Ora, bolas, precisa explicar? Só a possibilidade de que tudo se repita funciona como um pesadelo. De novo? Bis? Tá louco. Pode parar.

E se eu me mandasse, se apagasse a luz, se dissesse adeus, se metesse o pé na estrada, se caísse fora, se desse no pé, se corresse, pernas pra que te quero, Zé, o que você diria, faria, contaria para os netos, bisnetos, apelidos da história? Sei que assim falando achas que estou confundindo 2022 com 1976, mas ando mesmo apavorado, chorando por nada, acordando sufocado, olhando de viés, desesperadamente eu grito em português e até em francês: Basta! Ça suffit! Deu pra ti.

Retirada

Vou me embora pra Palomas
Vou me embora pra Palomas,
Lá serei amigos de todos.
E viverei, enfim, sem um rei.
Terei a Cláudia que eu amo
Nos pelegos que escolherei.
Vou me embora pra Palomas,
Aqui eu até fui muito feliz,
Mas lá viverei como sempre quis
Fazendo aquilo que ninguém me diz.
Irei da monarquia à anar
Fundarei uma nova dinastia,
A casa sagrada da flor da pampa
Cujo brasão aparecerá na tampa
De uma lata velha de biscoitos.
Montarei como na minha infância
Um valente cavalinho de taquara,
Que não fustigarei com uma vara,
E vibrarei com minha irrelevância.
Soltarei pandorga de cima do cerro
Acenarei para a ex-rainha louca
Se eu quiser, dormirei de touca.
Falarei com Napoleão e Sabugosa,
Enfiarei de viés o dedo na mucosa
Devolverei peixes vermelhos à agua
Espiarei nos varais alguma anágua.
Experimentarei balé, trova e cordel
Rabiscarei poemas num maço de papel.
Vou me embora pra Palomas,
Lá terei um gato branco preguiçoso,
Que chamarei de jovem Schopenhauer,
E um cachorro preto tão teimoso,
Atendendo por Nietzsche e Adenauer,
Que me fará dormir até mais tarde,
Afastando as visitas sem alarde.
Em Palomas, terei o meu i-phone,
Que guardarei embaixo de um cone,
Passearei pelos campos a pé
Darei sem problemas marcha-à-ré.
Deitarei na grama pra ler Eliot
Ou me lembrar de algum saiote.
Em Palomas tem milho verde,
Gaita de fole, burro xucro,
Moinhos de vento e o que precisar.
Se algo faltar, posso até inventar.
Vou me embora pra Palomas,
Onde plagiarei o grande poeta
Antes ou logo depois da sesta.
Só pelo prazer de desafinar,
Farei versos de pé quebrado,
Pois conheço o cego dormindo
E até mesmo o rengo sentado.
Vou me embora pra Palomas
Assim que comprar uma chácara.
Pagarei com dinheiro de poeta.
Nunca mais ouvir falar de Bolsonaro.

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