Juremir Machado da Silva

Tempo de recontar

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Tempo de recontar Foto: Biblioteca Nacional da Argentina
O tempo talvez seja a única questão realmente importante. É ele que passa ou nós que passamos? Ou os dois? Se há o tempo de semear e o tempo de colher, há certamente também o tempo de silenciar.

Há também o tempo de rever conceitos.

É sabido que Jorge Luís Borges apresenta, em “Evaristo Carriego”, algumas versões de um improvável duelo entre dois gaúchos prováveis, ou vice-versa. A moral dessa história aparentemente imoral é a nobreza gaúcha. Homens que não podem escapar ao destino são capazes, no entanto, de agir dignamente até o fim, o que já é uma forma de cumprir o próprio destino e dar sentido ao tempo do vivido. Eu mesmo, fadado ao meu destino, já contei certa vez outra versão desse duelo infinito e repetitivo. Enquanto relia Borges em São Miguel dos Milagres, embora isso possa parecer mais improvável que os duelos que se repetem, recebi um e-mail com uma nova e singela versão do combate, desta vez, creiam, em Palomas. Sim, na minha Palomas.

Na minha primeira versão do duelo, o fato também acontecia em Palomas. A chegada do forasteiro também se repete. Ele desce do trem, todo de preto, atravessa a vila silenciosamente, na metade de uma tarde em que se pode ouvir o canto das cigarras quase tão forte quanto o apito da locomotiva, e hospeda-se na casa de um homem que nunca viu. Conversam ao cair da tarde, tomando mate, sentados em bancos de três pernas cobertos com pelegos, e sentem-se bem um na companhia do outro. Nesta versão que me chegou por e-mail, a meu ver com um endereço criado para a circunstância, os dois levantam-se muito cedo, mateiam novamente e saem a cavalo para recorrer os campos. O anfitrião tendo cedido o seu melhor cavalo ao visitante, que assim manda a etiqueta.

Não entrei nas considerações do autor de “História Universal da Infâmia”, ou do incontornável texto “poesia gauchesca”, sobre a natureza dos duelos ou sobre os duelos da natureza. Disse apenas, seguindo o relato que me foi enviado em hora tão propícia, que, pelas sete horas da manhã, os dois companheiros apearam dos cavalos, na frente de uma casa com uma janela de vidro, de onde se podia ver o cemitério, desataram os cinturões com seus revólveres, que depositaram à sombra de um umbu, e enfrentaram-se munidos apenas de longas adagas. Teria sido uma luta rápida. O forasteiro avançou sem qualquer temor. O palomense o colheu com a sua adaga de modo frontal, furando-lhe a buchada. Uma golfada de sangue ensopou o “pano verde do campo”.

Em seguida, o palomense persignou-se, fechou os olhos do morto e deu-lhe sepultura cristã à beira da estrada, onde, durante muitos anos, se viu uma cruz de madeira, que, depois da morte do palomense, o tempo consumiu. No mesmo dia, o “assassino” apresentou-se à polícia e confessou ter matado um homem de quem tudo desconhecia, inclusive o nome. Não conseguiu, ou não quis, apresentar qualquer justificativa para o ato. Fez questão, porém, de salientar a sua certeza de que o morto era um homem honrado. Por ser primário e não representar perigo social algum, sendo mais improvável do que tudo a sua fuga, o réu confesso ficou em liberdade. O processo arrastou-se por anos.

Enfim, o palomense, de nome Bento, morreu ao cair de um cavalo. A única testemunha, na frente de cuja casa o duelo acontecera, nunca foi ouvida. O e-mail não me forneceu o nome dessa pessoa, mas, pela descrição feita, não posso me enganar. O forasteiro foi morto na frente do rancho do velho Borges, o cego, que da sua janela de vidro parecia gastar a vida vendo chover nos longos invernos de Palomas.

Certo mesmo é que cada homem acrescenta alguma coisa a uma mesma história. Palomas, no passado, chamava-se Samarcande, cujo nome significa “lugar do encontro” ou “lugar do conflito”. Depois, virou Macondo. Essa história é sempre a da morte. Sommerset Maughan falou dela num conto. Antes dele, um sábio persa tratou dela num poema. O último avatar desse duelo envolve dois argentinos e dois brasileiros de nomes estranhos: um deles se chama Juremir. Esse Juremir jurava que os palomenses são mentirosos. Ora, Juremir era palomense. Logo, Juremir mentia. Logo, Juremir falava a verdade...

No tempo da espera, recontar é como plantar.

Faz sonhar com alguma colheita.

Continua...

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