Juremir Machado da Silva

Um velho copo de ternura

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Um velho copo de ternura Foto: Yannick Pulver/Unsplash

Aqui o que sempre pensei, escrevi e repito. O Festival de Gramado chega à sua quinquagésima edição. Eu estava lá, pela primeira vez, quando ele fez 15 anos. Eu envelheci. Ele se renovou. Tudo isso me fez remexer nas gavetas da memória.

Tenho andado com um gosto de goiaba passada em minha boca. O vento norte, às vezes, penteia os meus cabelos como se me arrumasse para a nostalgia. Entrei na idade das ilusões perdidas e dos afetos redescobertos. Aprendi, a duras penas, o que outros já sabiam só de olhar: a humanidade é como o carnaval carioca. Tem tudo para não funcionar, mas, de algum modo, continua sendo um grande espetáculo, embora, bem pensado, não funcione mesmo. Não me espantam as mentiras. Fazem-me rir as falsas verdades. O atentado contra o escritor Salman Rushdie não recomenda os homens para nenhum copo de ternura. Mesmo assim, sinto vontade de abraçar o mundo e de me resgatar por todas as vezes que deixei de confessar minha amizade por alguém. Estou com saudades de casa e da poesia.

Sinto uma vontade imensa de retornar sobre os meus passos para me encontrar onde nunca estive e ser, enfim, o que nunca fui nem serei. É tanta palavra não dita, tanto carinho escondido nas mangas de camisas arregaçadas, tanto abraço que não dei nem darei, tanto beijo que se perdeu no ar, como se beijar amigos fosse uma mera formalidade. Li uma anedota contada pelo magnífico escritor Romain Gary, um dos meus preferidos, que me estarreceu: qual a diferença entre os incultos e supersticiosos simbas e os alemães altamente civilizados da época de Hitler? Os simbas comiam as suas vítimas humanas; os alemães faziam delas sabão. Conclusão de Gary: “Essa necessidade de limpeza é a cultura”.

Essa anedota de mau gosto, duplamente incorreta, exalando preconceito contra simbas e todos os alemães, num velho refrão evolucionista, tem, contudo, a qualidade de afirmar um ceticismo inquietante. As limpezas étnicas continuam. Assim como persistem as guerras de cultura, as lavagens de dinheiro, as purificações totalitárias e a sujeira da violência desumana. Alguma cultura dita primitiva terá, algum dia, praticado os horrores que continuamos a perpetrar em nome de tudo um pouco? Acho que nenhuma civilização foi tão bárbara como a nossa insiste em ser. Sempre fomos os verdadeiros selvagens. Nossa grande malícia foi transferir essa marca pejorativa a outros. Faz parte do nosso arsenal.

Meu amigo Décio Freitas gostava de citar Charles Darwin para lembrar que um chacal dorme dentro de cada um de nós e pode despertar a qualquer momento. Estou com a sensação de que entramos na era dos chacais insones. Eu não queria repetir Raduan Nassar nem tentar plagiar o seu “copo de cólera”. Soltei meus dedos sobre o teclado disposto a deixar correr o meu vazio. Pelas janelas da televisão e do computador, porém, não param de entrar as sombras daquilo que a humanidade já nem pensa em esconder: “o horror, o horror”!

Quando a crítica atinge o seu limite, resta a ironia, sempre dizia Jean Baudrillard. Um velho adepto do marxismo científico confessava: “Agora, sou socialista utópico”. O único socialismo científico é o utópico. O outro, o da “práxis”, nunca suportou o teste da realidade e foi corroído pelo ácido do cotidiano. Imagino que só possamos nos refugiar numa frase de Getúlio Vargas: “O poder é a arte do esquecimento”. Só que Getúlio pretendia esquecer as mágoas e diferenças passadas para construir o futuro. Os poderosos de plantão, ao contrário, parecem sempre dispostos a esquecer o passado para se eternizar num presente perfeitamente maculado.

A maior tirania de um tempo consiste em nos aprisionar na esfera política, relegando o existencial a um fundo indefinido e tristonho. O gosto na minha boca, claro, não era de goiaba passada, mas de política apodrecida. Eu trocaria tudo, cada gota do sonhado, por um copo de ternura universal.

De 2004 a 2022 a humanidade me confirmou que não é confiável. O seu pecado maior chama-se antropocentrismo.

Em todo caso, como parte dela, ouso imaginar que saberá se reinventar reconhecendo que faz parte da natureza.

O gosto de goiaba na boca me fez crer no futuro.

Pena que não estarei por aqui quando o Festival de Cinema de Gramado completar cem anos e será, outra vez, jovem.

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