Juremir Machado da Silva

Morte da crítica

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Morte da crítica "A crítica morreu. Se não gosta, cale-se" (Foto: Kristina Flour/Unsplash)

Nada mais velho do que o último artigo sobre a morte da crítica. Morreu mesmo. Hoje, todo crítico é confundido com um hater. É verdade que o hater é um crítico que prescinde de fundamentação. Nem por isso erra sempre. O problema do hater é a perseguição. A crítica morreu com o fim da legitimação inquestionável de uma hierarquia de gostos. Cada um gosta do que gosta e acabou. Não há mais melhor nem pior ainda que todo dia, como no Oscar, saia uma lista dos melhores. Isso quer dizer apenas que determinada obra conquistou mais corações do que outras. Eu odiei Tudo no mesmo lugar ao mesmo tempo. Um dos filmes mais chatos que vi nesta minha vida de já tão expandido andar. Sou velho.

Outro dia, vi uma lista dos mais celebrados palestrantes brasileiros. É pura autoajuda. Aliás, a autoajuda venceu. Estamos na era do quarto, na era do coach, na era do aprenda com quem possa lhe ensinar os melhores truques para ir direto ao ponto. Tem até coach de machismo. Acabou-se o tempo do faça você mesmo. Fazer por si, sem um coach, parece arrogante. Colocar-se na posição de quem pode conduzir os outros pelas montanhas é sabedoria. Paga. Não há conselho grátis, assim como não existe almoço grátis, nem diamante, segundo o impagável Rubens Ricúpero, aquele mesmo que em outra época foi pego em setembro de 1994 dizendo que no governo de qual fazia parte não havia hesitação: “Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”. Bolsonaro queria esconder joias da coroa.

A crítica morreu. Se não gosta, cale-se. Se falar, aguente o tranco. Crime de lesa-gosto alheio. A crítica existia de um ponto de vista superior, o do julgamento seguro. Restou a opinião dos especialistas. Em cada área, um diz uma coisa e o outro diz o oposto. Exemplo disso é a economia. Essa minha crítica aos economistas não tem evidentemente legitimidade: não sou especialista nem tenho lugar de fala. De resto, o lugar de fala parece ser o último bastião do olhar crítico autorizado. Se fala é por ter vivido. O depoimento expulsou a análise do seu pedestal. Lembrar saudosamente da crítica revela a idade da pessoa e sua vontade de resgatar privilégios críticos.

Tudo passou a ser medido pela audiência. Bom é o que vende. Vende o que é bom. Variações sobre um tema clássico de Guy Debord, de Jean Baudrillard e dos frankfurtianos em geral, aquela turma liderada por certo Theodor Adorno, que forjou o conceito de “indústria cultural” e mostrou que tudo podia ser medido como mercadoria. Neste ano, cem anos da Escola de Frankfurt. Um século de crítica a caminho do abismo. Como contrariar o gosto do público? O crítico é um ancião que não para de pensar na sua juventude gloriosa, quando se podia distinguir o bom do ruim e o joio do trigo. Na literatura, o melhor caminho para ser bom é publicar no lugar certo, com o marketing certo, com o público-alvo certo, com a mídia certíssima. Dito assim cai na vala-comum do ressentimento. Pretendia ser uma constatação.

A crítica morreu. Não teve velório. Jean Baudrillard, um dos críticos mais sofisticados do século XX, era visto no começo do século XXI como um velho rabugento. O crítico via-se como alguém que vê mais longe. Talvez a crítica ainda persista no futebol, mas só com lugar de fala – jogadores como comentaristas – ou com modernidade: neotáticos. Ou seja, aqueles que continuam a amar o colonizador e ainda sustentam que ele é mais desenvolvido. Em outros tempos, o colonizado desafiava o colonizador. Agora, paga milhões para tê-lo como coach. O comentário de futebol faz parte da ciência do século XIX: determinista, positivista, anticomplexo, incapaz de reconhecer o papel do acaso, do imprevisto, do erro. O crítico morreu nas redes sociais da vida.

Foi atingindo pelo vírus da autoajuda.

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