Juremir Machado da Silva

Perdas e danos

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Perdas e danos

Ao longo desta vida na atribulada “esfera pública” já perdi mais dedos do que anéis, até porque nunca usei essas argolinhas simpáticas ou solenes que vejo nas mãos de muitas pessoas. Perdi ilusões, esperanças, alegrias, projetos, projeções, empregos e companheiros de estrada. Só não perdi essa certeza intuitiva de que não posso ser o que não sou. Jamais me tatuei, embora aprecie certas tatuagens suaves, mas já me tatuaram no peito tantas imagens que eu poderia fazer com elas um álbum (virtual). Perdi dedos e apostas. Vi surgir no horizonte e crescer como um meteoro tanta coisa que me parecia impossível. Vi os militares voltarem ao poder pela via civil. Vi a palavra fascismo ganhar sentido, novos sentidos, tantas metamorfoses do vampiro.

Vi golpe (“há golpes na vida tão fortes, eu não sei!”, escreveu Cesar Vallejo), mentira defendida como liberdade de expressão, negação da ciência, extremistas me rotularem de comunista, fanáticos se apresentarem como moderados, pessoas ditas de bem defendendo o mal, ignorantes sacando seus revólveres contra a cultura, a universidade sendo atacada por produzir conhecimento, a retórica da Guerra Fria sendo recuperada para aquecer polêmicas geladas. Por tudo isso e mais o que ruge em minhas entranhas eu tenho tristezas tão grandes que ardem dentro de mim como passados que não se apagam. É a vida. Fica melhor em francês, dizem: c’est la vie. Então me vejo sonhando em frases grandiloquentes: meus fantasmas almoçam e jantam comigo.

Nas madrugadas, alguns deles me mandam insistir, enquanto outros juram vinganças que jamais executarão, pois, no fundo, sou dos que seguem em frente carregando pedras do passado como meras recordações, manso de alma, saudoso das boas lutas, acordado para fazer balanços que se convertem em brinquedos para embalar crianças. Outros fantasmas, mais cultos, citam Albert Camus enquanto me puxam pelos pés: o papel do jornalista em tempos sombrios é manter-se lúcido, defender ou atacar pela ironia, saber recusar certas coisas e, fundamentalmente, ser perseverante. Então eu viro de lado e durmo.

Às vésperas de completar 60 anos, idade que me parecia impossível de alcançar sem perder as mãos, eu me vejo seja de bicicleta seja contemplando as águas que se jogam no abismo para depois fluírem tranquilas. Entre Janis Joplin, Belchior e Beethoven, eu gostava de uma letra gaudéria, de um pessoal que nunca soube da minha existência ou talvez não gostasse de mim, que diz: “Bagual que nunca se amansa por mais golpeado que seja”. Bem pensado, os golpes, em algum momento, se não me amansaram, me tiraram as forças. Ainda assim, penso na gente da minha rua, da qual andei tão distante, enquanto tentava fazer com meu braço o meu presente, e sigo em frente.

Não tiro prazer da tristeza nem faço da nostalgia uma profissão de fé. Há tanto para fruir, tanta beleza espalhada por aí, família, amigos, grandes livros, a arte que transfigura, a poesia que queima e acalma, a Cláudia e suas flores plantadas no meio da avenida. Então eu me levanto, sou inundado pelo sol que banha a minha sala e digo:

– Avante, pois!

Sexagenário.

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