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Como a genética pode ajudar a compreender a Covid-19?

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Como a genética pode ajudar a compreender a Covid-19?

Entre as grandes dificuldades do enfrentamento da Covid-19 estão a pluralidade e a imprevisibilidade de efeitos que o SARS-CoV-2 pode ter sobre indivíduos infectados. Enquanto a maioria permanece assintomática ou com sintomas apenas leves, uma importante minoria desenvolve quadros graves a ponto de necessitar suporte de alta complexidade, o qual muitas vezes não é suficiente.

Entender o que faz com que um indivíduo pertença ao primeiro ou ao segundo grupo é um enigma, e muito esforço tem sido dedicado a tentar resolvê-lo. Já se sabe que comorbidades como diabetes melitus e hipertensão arterial sistêmica predispõem o indivíduo a riscos maiores perante este vírus. Idade avançada e sexo masculino igualmente são associados a piores prognósticos.

O perfil imunológico de cada pessoa também deve ter algum impacto, pois imunidades previamente desenvolvidas podem desempenhar um papel importante contra infecções futuras similares. As hipóteses, porém, são muitas, e as lacunas são correspondentemente enormes.

Uma das áreas mais promissoras a contribuir com esse desafio é a genética. Em linhas gerais, o que a genética oferece para a área da saúde é a possibilidade de entender de que modo o perfil genético de um indivíduo (ou população) predispõe a determinadas condições de saúde ou doença.

Essa é uma tarefa bastante complexa, pois a maioria das doenças resulta da interação de muitos genes. Ainda assim, hoje não resta dúvida de que compreender a genética de um indivíduo permite ter mais precisão e clareza sobre como determinada condição se manifesta nele.

Genomewide association studies

Um dos primeiros grandes estudos sobre genética e Covid-19 foi publicado no dia 17 de junho, no New England Journal of Medicine. Os pesquisadores analisaram o material genético de cerca de 2 mil pacientes graves em hospitais da Itália e da Espanha e concluíram que mutações em genes envolvidos na definição do tipo sanguíneo tinham relação com a gravidade do quadro desenvolvido.

Dizendo assim, pode parecer simples, mas esse não é um trabalho fácil. O método utilizado pelos pesquisadores é o que se convencionou chamar de genomewide association studies (estudos de associação de genomas completos, ou GWAS pela sigla em inglês). O princípio do método consiste em analisar o material genético de um grupo de indivíduos e tentar encontrar relações (ou estabelecer a inexistência de relação) entre uma configuração genética e uma determinada condição ou doença em estudo.

No caso específico do estudo do NEJM, os pesquisadores coletaram material genético a partir de células de pacientes graves da Covid-19 durante o auge da pandemia na Espanha e na Itália. Para constituir o grupo controle (grupo com o qual se comparam os pacientes graves), foi coletado o material genético de indivíduos infectados pela Covid-19 mas que não desenvolveram quadro graves.

Com o material genético retirado das células de todos estes indivíduos, é possível conhecer o DNA de cada um. O DNA humano é composto por aproximadamente 3,2 bilhões de pares de bases nitrogenadas, o que configura um oceano extremamente complexo de informações.

O que um estudo do tipo GWAS faz, portanto, é partir de determinadas variações genéticas previamente conhecidas e, de posse do material genético dos indivíduos, verificar de que modo essas variações se associam (ou não) a um quadro clínico. A conclusão é tradicionalmente exposta em um gráfico Manhattan, apelido dado ao formato que se assemelha a uma paisagem de arranha-céus.

Tipo sanguíneo e Covid-19?

Qual foi, portanto, a conclusão dos pesquisadores? Eles compararam variações do DNA (single-nucleotide polymorphisms, ou polimorfismos de nucleotídeos simples) e concluíram que havia duas regiões do genoma com mutações que se associavam a quadros mais graves de Covid-19. Trata-se de regiões do terceiro e do nono cromossomo.

As mutações do terceiro cromossomo estão todas relacionadas a um grupo (cluster) de genes (SLC6A20, LZTFL1, CCR9, FYCO1, CXCR6 e XCR1). Já as mutações do nono cromossomo estão relacionadas à definição do tipo sanguíneo dos indivíduos. Em termos práticos, os pesquisadores encontraram uma associação de maior risco perante a Covid-19 no tipo sanguíneo A (risco 1,45 vezes maior), enquanto indivíduos do tipo O teriam uma genética favorável à proteção contra quadros graves da doença (risco 0,65 vezes menor).

É importante fazer algumas observações. Primeiro, que este é o primeiro estudo a associar tipos sanguíneo à gravidade da Covid-19, de modo que mais estudos devem testar essa hipótese. Segundo, ainda não se sabe de que modo, em termos fisiológicos, o tipo sanguíneo explicaria uma reação distinta perante o SARS-CoV-2. Isso cabe a pesquisas futuras.

Mas os resultados por si só já são interessantes. Como observou o jornalista e escritor Carl Zimmer, em matéria no New York Times, o estudo não encontrou associação de mutações nos genes codificantes da proteína ECA (enzima conversora da angiotensina, fundamental na regulação da pressão arterial) à gravidade do quadro de Covid-19. A ECA é a proteína celular usada como porta de entrada pelo SARS-CoV-2, e seria bastante razoável que alterações estruturais da ECA estivessem relacionadas a uma maior ou menor facilidade para o vírus invadir a célula hospedeira.

Genética clínica e medicina personalizada

Este não foi o primeiro estudo de genética e Covid-19. No dia 26 de maio, foi publicado um artigo que explorou a associação entre mutações relacionadas à demência e piores prognósticos perante o SARS-CoV-2.

Já se sabe, através da observação empírica, que pacientes idosos e portadores de comorbidades são mais suscetíveis à Covid-19. Porém, o estudo mostrou que, independentemente disso, variações do gene APOe, que predispõem a alguns tipos de demência, também predispõem à Covid-19.

Mas essas não são as únicas contribuições da genética ao enfrentamento da pandemia. Além de lançar hipóteses sobre quais perfis genéticos podem pressupor um indivíduo a uma doença mais grave, os métodos genômicos foram essenciais para elucidar o próprio código genético do SARS-CoV-2 – passo necessário para compreender sua identidade virológica e os modos pelos quais ele ataca células humanas.

Outra frente de possibilidades que a genética abre é no âmbito de edição gênica. Um exemplo disso está sendo desenvolvido na USP: os pesquisadores exploram a ideia de modificar a expressão do gene que codifica a ECA. A ideia é modificar estruturalmente esta proteína de maneira a impedir que o SARS-CoV-2 consiga se ligar a ela e, ao mesmo tempo, mantê-la funcional no nosso organismo.

Como um todo, portanto, o que a genética faz é compreender as particularidades da interação a nível molecular entre indivíduo e doença, abrindo caminho para um entendimento mais específico e eficiente dos tratamentos disponíveis. É uma espécie de senso comum nas Ciências da Saúde que os estudos em genética são o caminho para o que está se convencionando chamar de “medicina personalizada”, ou seja: uma abordagem baseada nas singularidades bioquímicas e fisiológicas de cada indivíduo, o que abre a possibilidade de escolher tratamentos otimizados para seu contexto biológico e social.

Encontrar associações entre perfil genético e gravidade da Covid-19 é uma boa aposta, mas o trabalho não é simples. Como resumem os autores de uma ótima revisão sobre o assunto publicada na Cell no dia 12 de maio, descobrir determinada associação estatística não equivale a explicar por que essa associação existe. Tão importante quanto identificar associações entre determinado perfil genético (genótipo) e determinada apresentação clínica (fenótipo) é estabelecer os nexos de causa e consequência que expliquem essa conexão aos níveis molecular, celular, tecidual e sistêmico. 

A genética, portanto, abre caminhos fascinantes; porém, saber caminhar por eles requer ainda mais hipóteses testadas, estudos e evidências.

*Felipe é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS

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