Desapaga POA

A esquina do Zaire e a data de Zumbi

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A esquina do Zaire e a data de Zumbi Segundo a lenda do escravizado Josino, por clamar por justiça ao ser injustamente enforcado, ele teria espraguejado a construção da Igreja das Dores, que por conta disso levou quase cem anos para ser concluída. Na imagem, a igreja com apenas uma torre. Foto: Acervo Museu José Joaquim Felizardo e Banco de Imagens do Programa Monumenta

A pesquisa, os textos e a elaboração dos roteiros da série sobre a PRESENÇA NEGRA na história de Porto Alegre são de Pedro Vargas (autor deste trabalho sobre a esquina do Zaire) Jane Mattos, Manoel José Ávila, Regina Parente e Orson Soares.
A equipe de locução conta com Clara Falcão e Lucas Samuel.
Os áudios e a trilha sonora tem a direção e criação de Bebeto Alves, com participação do professor de canto e dança guarani Arlindo Kuarai.
A comunicação é do Marketing da Ju e a edição é de Vítor Ortiz.

Ministério do Turismo, Secretaria Especial de Cultura, Secretaria Estadual da Cultura e Fundação Marcopolo apresentam:

DESAPAGA POA / O podcast que chegou para desapagar os apagados da história de Porto Alegre: negros, negras, negres, indigenas e periferias, às vésperas da cidade completar 250 anos de sua data oficial de fundação.

Olá pessoal, estamos iniciando mais um episódio da série DESAPAGA POA..

Este projeto foi selecionado no edital Criação e Formação – Diversidade das Culturas, da Secretaria Estadual da Cultura – SEDAC/RS – e Fundação Marcopolo e é realizado com recursos da Lei 14.017 de 2020 (a Lei Aldir Blanc).

Esta primeira série terá 10 episódios que estão disponíveis nos principais agregadores de podcast, sendo transmitidos todos os sábados, pela rádio FM Cultura (107.7), e apoiadora do projeto.

O DESAPAGA POA tem o apoio também do Matinal Jornalismo, revista Parêntese e RogerLerina.com; e os conteúdos detalhados (o roteiro para leitura, a bibliografia e as imagens da pesquisa) ficam disponíveis no site www.matinaljornalismo.com.br/desapagapoa.

Eu te convido a seguir o Desapaga POA nas redes sociais e a colaborar com o projeto na nossa vaquinha digital no site APOIA-SE e também a compartihar os episódios com seus amigos.

A pesquisa, os textos e a elaboração dos roteiros da série sobre a PRESENÇA NEGRA na história de Porto Alegre são de Pedro Vargas, Jane Mattos, Manoel José Ávila, Regina Parente e Orson Soares.

A equipe de locução conta com Clara Falcão, Leila Mattos e Lucas Samuel.

Os áudios e a trilha sonora tem a direção e criação de Bebeto Alves, com participação do professor de canto e dança guarani Arlindo Kuarai.

A comunicação é do Marketing da Ju. A edição é minha e eu sou o Vitor Ortiz.

Toda a produção do projeto é realizada via on-line, com trabalho em home office e reuniões pela web, diante da necessidade de cuidados neste contexto de pandemia.

Neste episódio, vamos recordar onde e quando surgiu a expressão “Esquina do Zaire” para designar os encontros semanais de negros na esquina entre a Rua da Praia e a antiga Maçom.

Museu de Imagens Desapaga POA

PARTE 1

O ARTISTA NEGRO GAÚCHO WILSON TIBÉRIO

O ano de 1938 contava os 50 anos da data oficial do fim da escravidão no Brasil, da Lei Áurea, na verdade. A efeméride abriu espaço para que uma parte da intelectualidade da época assumisse, no seu modo de ver, uma espécie de anti racismo, o que na prática significava passar a propagar a ideia de democracia racial. Artur Ramos, um dos mais prestigiados intelectuais e críticos de arte do período assim pensava, e em seus estudos sobre a população afro-brasileira, alardeando que a democracia racial – processo histórico originado no Brasil — deveria servir de exemplo para outros povos.

Wilson Tibério, artista visual negro e gaúcho, nascido em Porto Alegre no ano de 1916, admirado por Artur Ramos, assumiu, então, o que hoje seria chamado de lugar de fala, rebatendo Ramos ao declarar que a mestiçagem no Brasil é uma farsa para melhor dissimular a segregação racial triunfante no país.

O artista, com o tempo, fortaleceu sua visão sobre a sociedade brasileira como uma sociedade racializada e alguns anos depois declararia, quando da exposição de suas obras em Roma, na Itália, que (entre aspas) “os trabalhos que tenho apresentado expressam o homem que sou, brasileiro, homem do terceiro mundo, torturado pela opressão, barbárie e colonização, externa e interiormente”.

Tibério continua sua fala buscando demonstrar que a subalternidade da etnia negra era um movimento global: (outra vez entre aspas) “minhas obras encontram inspiração nos sofrimentos de hoje na África, do Congo, de Biafra, de Moçambique e do Brasil”.

A doutora em história da arte Franciely Dossin define Wilson Tibério como um artista anticolonialista ausente na historiografia, e que estabeleceu uma forte relação com o continente africano, fazendo com que seus trabalhos demonstrassem interesse na cultura afro-brasileira. Seu olhar para a cultura afro-brasileira surgiu antes mesmo de ele deixar o Brasil, em 1947, e sua experiência no exterior marcará ainda mais, na verdade, seu interesse por terras da África e de sua diáspora.

Para a professora Franciely a arte de Tibério está em um lugar fronteiriço entre a arte adjetivada como eurodescendente – modernista – e outra fundamentada em discursos explicativos que emergem das histórias dos povos subjugados. Duas de suas obras podem ser encontradas em Porto Alegre: uma na Pinacoteca Aldo Locatelli, no Paço Municipal, ou na Prefeitura Velha, como queiram; e outra na Pinacoteca Barão de Santo ngelo, na faculdade de Artes da UFRGS, na rua Senhor dos Passos. Outras seis obras de Wilson podem ser buscadas no Museu Afro Brasil em São Paulo.

Já no século XXI, a filósofa e ativista negra Djamila Ribeiro ao propor que a sociedade nacional é perpassada pela prática de racismo estrutural, recorre em seus argumentos ao trabalho da psicanalista Neusa Santos, que afirma que a sociedade escravista instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior.

A cor negra será o mote dos trabalhos de Tibério. O pintor e escultor teve a oportunidade de viajar pelo continente africano nos anos 1960, no final do processo de colonização dos países da África pelas potências europeias. Suas andanças se deram por barco, trens, automóveis e até mesmo a pé. No entanto, os trabalhos do artista não mostravam o que se poderia esperar de quem vivia aquela experiência de viagem: a exuberância e o colorido da paisagem africana. Não. Em sua técnica, já era caratcerístico de suas telas o destaque apenas do corpo negro, sem nenhuma concessão a qualquer outro elemento pictórico. Pois será justamente o corpo negro que irá surpreender, na década de 1970, um país como o Brasil, onde a maioria da população é negra.

De 1938, ano daquele cinquentenário da Lei Áurea, vamos então para 1974.

Copa do Mundo de Futebol na Alemanha – primeiro evento do futebol mundial a ser televisionado para todos os continentes, gerando imagens instantâneas para uma plateia de bilhões de pessoas ao redor do globo. Eis que pisa nos gramados a seleção do Zaire. Nome do país centro-africano, denominado de República Democrática do Congo, e que de 1971 a 1997 foi nominado como Zaire. O selecionado zairense é a grande surpresa: pela primeira vez o mundo acompanha uma seleção de futebol formada exclusivamente por atletas negros. O Brasil olha espantado, e o imaginário popular passa imediatamente a chamar lugares ou eventos associados com a comunidade negra de Zaire. Naquele lugar só tinha negros, parecia um Zaire, passou a ser expressão plenamente compreensível no meio poular.

Porém, ainda faltava um pequeno empurrão do destino para que o povo preto de Porto Alegre assumisse que o Zaire é aqui, ali na Rua da Praia, mais precisamente na esquina com a Av. Borges de Medeiros, também chamada de Esquina Democrática.

O ano agora era 1982. Copa do Mundo na Espanha. Novamente a paixão e atenção nacional estava voltada para “ver o escrete brasileiro jogar”, como bem diz o samba de Sergio Sampaio, Fala Zé Bedeu, marcado pela voz de Luiz Melodia. Pela primeira vez na história deste torneio mundial de futebol, Brasil e Zaire disputariam uma partida. Este acontecimento dividiu os corações e mentes da população negra que marcava seus encontros no centro da cidade. Uma parte significativa decidiu torcer para a seleção do Zaire, houve intensa mobilização e foi distribuído um impresso alternativo que recebeu o título de Boletim do Zaire, que ao falar do país africano estava era falando dos negros daqui, ou seja, buscava um encontro com suas verdadeiras raízes étnicas.

PARTE 2

A ESQUINA DO ZAIRE

Diversos estudos acadêmicos nas áreas da geografia e da antropologia tem sido dedicados, nos últimos anos a identificar os teoricamente existentes “territórios negros de Porto Alegre”, como aqueles que se constituíram a partir dos encontros semanais que se davam após às 18h das sextas-feiras, no centro da cidade -na conhecida “Esquina Democrática” – que a partir da Copa de 1982 também passou a ser chamada de “Esquina do Zaire” – e em diversos outros pontos, como defronte à Loja Maçon e, mais tarde, defronte também ao Shopping Rua da Praia.

Um destes estudos mais conhecidos viu nestes encontros uma forma de retorno ao território ancestral por parte das comunidades negras, afastadas para as periferias pelos diversos processos de urbanização. Retorno este que se deu, a partir dos anos 1980, na forma de encontros depois do trabalho, marcados pela pluralidade cultural dos diversos grupos formadores do universo negro e do meio urbano popular contemporâneo. Encontros estes que gestaram ideias e propostas que, nos anos a seguir, acabariam por influenciar definitivamente as lutas antirracistas em todo o país, criando novos e potentes símbolos.

O pesquisador gaúcho Yosvaldir, que promove um destes estudos, nos explica o contexto da torcida pelo Zaire:

DEPOIMENTO DO JORNALISTA E MESTRE EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PELA UFRGS YOSVALDIR BITTENCOURT:

“…Podemos pensar também que estes territórios negros não são homogêneos, que eles também se caracterizam pelo que se dá no âmbito destes territórios do ponto de vista cultural e social, e que fundam uma historicidade a partir da presença das suas ações e conquistas ao longo do tempo, o que talvez eu possa firmar aqui como conquista maior é a evocação do 20 de novembro que se deu no Grupo Palmares, a partir de muitas discussões que se deram na Esquina Democrática. Esta esquina foi chamada também de Esquina do Zaire por que também ali se promove a Descida da Borges com as escolas de samba, com uma muamba riquíssima do ponto de vista cultural, que pra mim deve ser mantido e que consolida estas memórias e histórias com interesses diversos, e que vão se atualizando porque a cultura negra também não é uma cultura frIgorificada. Ela tem também uma dinâmica de ressignificações e de mudanças de acordo com as demandas contemporâneas. E também com as novas percepções políticas que se dão. Mas eu falava Esquina do Zair e por que teve um momento ali que os negros, acho que em 1982 (foi na verdade em 1974), que os negros celebravam muito a África, as matrizes africanas, pra fortalecer esta identididade negra urbana, negro-brasileira, e a seleção brasileira foi disputar um jogo pela primeira vez com uma seleção africana do Zaire e se estabeleceu um dilema para aqueles negros e carnaveslescos e outros que se encontravam ali que era o de ‘para quem torcer, afinal?’ E eles optaram por torcer pelo Zaire, e aí surgiu um jornal desta rede de comunicação chamado FOLHETIM DO ZAIRE, que consolidou estes valores todos. Por conta disso, a seleção do Zaire sofreu uma derrota, se não me engano de 3 a 0 para a seleção brasileira, mas a despeito desta derrota o espaço acabou recebendo esta outra denominação na perspectiva negra, de Esquina do Zaire.”

Zaire – que na língua quicongo significa “rio que traga todos os rios” – foi o lugar em Porto Alegre que fez formar com certeza uma onda que sacudiu o país carregando o grito de uma consciência negra. O antropólogo negro Iosvaldyr Bittencort assinala que o Movimento Negro se instalou em Porto Alegre na Esquina Democrática – agora Esquina do Zaire – entre as Avenidas Borges de Medeiros e Rua da Praia, naquele contexto. Tal movimento, em especial do Grupo Palmares, também se articulou contra a discriminação racial, sendo um dos principais mentores da ideia de tornar a data de 20 de novembro, em que se comemora a morte de Zumbi, ocorrida em 1695, como uma data histórica e importante referência cultural e política para a população afrodescendente brasileira.

O professor e poeta gaúcho Oliveira Silveira (1941-2009) costumava dizer que a história da contribuição dos negros em nosso país recém começou a ser contada. Na sua antevisão, tratava-se de um esforço que perpassaria gerações. Foi com esse intuito que, no final dos anos 1960, ele propôs como pauta ao Grupo Palmares – pequeno grupo de militantes sem sede e que se reunia na Rua da Praia – a necessidade de pesquisar o protagonismo de mulheres e homens negros no RS e no Brasil.

O ponto de partida era a insatisfação com as celebrações pelo dia 13 de maio de 1888, data da promulgação da Lei Áurea. Para aqueles militantes, a data homenageava a Princesa Isabel e não o povo negro. Em outras palavras, não fazia justiça à luta contínua empreendida pelos negros brasileiros. Partiu-se então para a pesquisa visando encontrar um personagem negro que historicamente representasse o papel ativo e constante da população negra em prol da sua emancipação. Antes de se chegar à figura de Zumbi dos Palmares foram homenageados o escritor, jornalista e historiador Luiz Gama (1830-1882) e depois José do Patrocínio (1853-1905).

Mas chegar a proclamar a odisseia de Zumbi como exemplo da luta e do protagonismo do negro na história do país não foi tarefa fácil, em razão do apagamento da memória negra na nossa história. Mesmo na década de 1960, os livros didáticos e a literatura histórica em geral pouco ou nada referiam sobre a existência de Zumbi e a árdua luta levada no Quilombo dos Palmares, que se localizava na Serra da Barriga, em Alagoas, no século XVII. Oliveira relata que durante o processo de pesquisa encontrou a data de 20 de novembro de 1695 como dia e ano da morte de Zumbi. No entanto, pela falta de dados, não se poderia ter certeza. Diz que a primeira vez viu esta data foi num dos fascículos da Editora Abril, tendo buscado então a confirmação no livro Quilombo dos Palmares, de Edson Carneiro, edição de 1947, e no trabalho do historiador português Ernesto Ennes, intitulado As Guerras de Palmares, publicado em 1938.

Essas parcas informações tiveram que ser buscadas na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, pela dificuldade de acesso a fontes que destacavam o papel dos negros na história nacional. Nesta procura, Oliveira Silveira encontrou o historiador e jornalista gaúcho Décio Freitas, que, durante seu exílio no Uruguai, escreveu Palmares – a Guerra dos Escravos. De posse desses dados o Grupo Palmares prosseguiu em sua estratégia de marcar uma data evocativa que representasse a luta dos negros no período escravagista e na condição contemporânea. Assim no dia 20 de novembro de 1971, no clube negro chamado Clube Náutico Marcílio Dias, aconteceu a convocação, publicada nos jornais da época, para uma sessão em homenagem a Zumbi dos Palmares. A nova data queria ser uma inflexão do olhar da história para o papel do negro na sociedade e exaltar a negritude.

Negritude – que pode ser compreendida como uma afirmação cultural, política e estética do povo negro. Negritude, contudo, era uma palavra pouco utilizada na década de 1970, mas que novamente aproximava os negros gaúchos de Wilson Tibério (1916-2005), que havia participado na França, dez anos antes, em conjunto com um grupo de intelectuais africanos, da criação do movimento negritude. Oliveira Silveira, que não conheceu Wilson Tibério pessoalmente, foi responsável por dar um passo importante para o desapagamento da biografia do artista visual. Foi Oliveira – que era professor de francês – que fez a primeira tradução de uma entrevista de uma amiga do artista contando sua história de vida e quem apresentou documentos com o conjunto de sua obra até então pouco conhecida.

A ação do Grupo Palmares iluminou a pauta a ser levada em conjunto por todas as organizações negras que se encontravam na Rua da Praia e ruas vizinhas até chegar sete anos depois, em 1978, a ser declarada Dia Nacional da Consciência Negra, contra a discriminação racial no Congresso do Movimento Negro Unificado. O justo incômodo dos negros do país com as celebrações no circuito escolar do dia 13 de maio em homenagem a “princesa redentora” que havia libertado os escravizados, ganhou guarida em 2003, quando a data de 20 de novembro passou a fazer parte do calendário escolar junto com a Lei 10.639, que institui o ensino de história e cultura afro-brasileira, e finalmente no ano de 2011, com a promulgação em lei federal do Dia Nacional da Consciência Negra, consagrando a luta começada na Esquina do Zaire com um alcance para todo o território brasileiro.

As ações empreendidas pela população negra no centro histórico de Porto Alegre, por meio de táticas de movimento, encontros, fruição e exercício da negritude. mesmo em práticas contemporâneas, como. por exemplo, do movimento Hip Hop, também naquela esquina do Zaire – em 1983 – torna a população negra (entre aspas) “praticantes do espaço”, como veria o filósofo e historiador francês Michel de Certeau.

Este movimento foi interpretado pelo antropólogo negro Iosvaldyr Bittencourt como a formação de um território negro urbano, pois nestas ocupações do Mercado Público, da Esquina do Zaire e de diversos pontos comerciais e ruas circundantes da Rua da Praia existe uma ideia ou sentimento de pertencimento vinculado as raízes históricas de escravizados, pretos forros e livres, negras mina e quitandeiras, que percorreram por dois séculos os mesmos lugares, a mesma área da cidade.

Reiteremos aqui, do trabalho do doutor Iosvaldyr, as ideias de territorialidade de residência, que é o lugar de moradia e vivência das populações negras, que foram em sua grande maioria deslocadas para as periferias da capital e o conceito de territorialidade transicional, que está relacionado às atividades efêmeras de fora do local de moradia, mas que se revitalizam e se reconstroem todos os dias, como os terreiros, as quadras das escolas de samba entre outras deste tipo. Por este prisma, as ações e as práticas de sociabilidade dos negros e negras no centro de Porto Alegre estariam também vinculadas a uma memória histórica e afetiva.

Esse movimento acaba com o retorno ao território de moradia e recomeça sempre no outro dia no território negro urbano transicional. O doutor e antropólogo negro Iosvaldyr Bittencourt fez para o DESAPAGA POA um riquíssimo depoimento sobre estes temas que vamos veicular neste e no próximo episódio sobre a questão negra em Porto Alegre:

YOSVALDIR BITTENCOURT

“… Com o tempo, diante da necessidade de integração social, de encontro, acabou promovendo um fenômeno sociocultural que foi a constituição de territórios negros na área central da cidade, notadamente no Centro Histórico de Porto Alegre, instituindo aquilo que veio se denominar territórios negros urbanos. Na minha dissertação na área de antropologia, na UFRGS, eu procurei desenvolver algumas análises sobre o que chamei de relógios da noite, uma antropologia de identidade e território negro urbano. O que observei é que nesse período, entre os anos 1970 para os 1980 quase chegando nos 1990, os negros valiam-se muito das linhas de transporte de ônibus que sucederam os bondes, e que tudo afluía para o centro da cidade, e como forma de promover encontros na área central, num tempo em que as comunicações se davam na forma da telefonia não móvel, então combinavam os encontros, vindo eles de diversos pontos, sendo muitos negros vindos de diferentes lugares, da Grande Porto Alegre, Esteio, Sapucaia, Canoas, enfim, como também de diversos bairros periféricos, da Grande Lomba do Pinheiro, da Grande Partenon e também da Vila Nova, Belém Velho, Restinga, e também da Santana e outros bairros que têm uma densidade populacional negra. Marcavam estes encontros após às 17h ou 18h, coincidindo com o fim dos expedientes de trabalho. Este tempo ordinário cotidiano que se dava, acabava se transformando num tempo cósmico a partir das 18, em que os negros afirmavam uma sociabilidade urbana, ocupando esquinas, bares, galerias, os shoppings centers também que depois foram surgindo, notadamente na Rua dos Andradas. Eram negros estudante, negros militantes do movimento negro, que já tinham uma participação quando havia os encontros ali na confluência da Rua dos Andradas com a Borges de Medeiros, que viria a se consolidar depois como a ‘Esquina Democrática’, portanto aberta a diversos grupos que tentam transformar a sociedade do ponto de vista democrático, de conquista de direitos civis, sociais e de cidadania, e o movimento negro ali inclusive com o Grupo Palmares, do Oliveira Silveira, que nesse lugar realizava suas reuniões ali, com troca de idéias até para poder consolidar essa evocação do 20 de novembro, que agora estará no seu cinqüentenário.

Se quisermos entender essa prática transicional do espaço urbano como uma espécie de ritual, poderemos nos amparar, por similitude, nas observações que o antropólogo cabo-verdiano José Carlos dos Anjos fez sobre a Tradição Bará do Mercado. Observa o estudioso que a prática ritualística no interior do Mercado instaura um “sempre aí” – que é um presente profundo de ex-escravos circulando o centro da cidade na forma por vezes de jovens negros na Esquina Democrática, nas sextas-feiras á noite, ou, em outros dias, de pretas minas vendendo quinquilharias.

No entanto, o ritual não evoca as velhas minas. Elas não são lembradas, uma vez que o ritual é uma reiteração, é a repetição do “sempre já aí”. Em outras palavras, a repetição cotidiana da presença negra no centro de Porto Alegre, mesmo que a maior parte dos negras resida na periferia, reitera que eles sempre estiveram ali. Ou seja, nunca saíram dali, nunca deixaram de estar desde que chegaram, trazidos à força.

PARTE 3

MUSEU DE PERCURSO DO NEGRO

O TAMBOR > No Centro Histórico de Porto Alegre, mais precisamente na Praça Brigadeiro Sampaio, entre a Igreja das Dores e a Usina do Gasômetro, existe um Tambor amarelo gravado de figuras que contam a trajetória do negro na cidade. O amarelo vem das águas de Oxum e suas figuras mostram silhuetas de negros que dela emergem marcando sua presença no território da capital do século XVIII aos nossos dias. No tambor estão escravizados, portuários, negas mina, capoeiristas, quilombolas, lanceiros, estudantes e intelectuais negros. Ele percute a voz sincopada de negros que já vivenciaram naquela praça o Largo da Forca, a vizinhança com o pelourinho colonial, e hoje, levanta o som do batuque que toca no coração de quem cada vez mais a chama de Praça do Tambor. Monumento síntese do Museu de Percurso do Negro, projeto concebido por um coletivo de artistas e memorialistas, na tradição civilizatória da África Negra, conhecidos como griôs. Nas discussões criativas que o antecederam, surgiram os subsídios de pesquisas formuladas por intelectuais e pesquisadores negros e realizadas em roda ou círculo como preconizam os valores civilizatórios do continente africano, tudo para que não houvesse esquecimento das origens e para que o museu de percurso do negro em Porto Alegre fosse entendido também como um ato político.

Da Praça do Museu do Trabalho, onde está o Tambor, andando na direção do Mercado Público, na altura da Praça da Alfândega, na borda do leito da Rua da Praia, está a Pegada Africana. Esta marca – a pegada – é o símbolo deste Museu, ressaltando a ideia de percurso de caminhada, ao mesmo tempo em que torna perene a presença negra em Porto Alegre.

A obra de arte, um mosaico no chão, ao mostrar um pé negro impresso com o formato do continente Africano reforça os laços de origem da comunidade negra. A proposta de lembrar de percursos provém da intenção de marcar esta forte presença negra, constante nas andanças nas praças, ruas, pontos de comércio, fontes de abastecimento de água, porto e atividades culturais e religiosas, presença esta que foi aos poucos sendo apagada da história da cidade e da memória de seus habitantes.

A presença e atuação negra não se traduzem apenas naquelas acontecidas nos séculos XVIII e XIX, quando uma expressiva maioria formou territórios e enclaves negros no antigo cais do porto, hoje Praça da Alfândega, nos pontos de venda como o Mercado Público, ou nas igrejas como as do Rosário e das Dores, ou ainda nos percursos dolorosos ou de punição como o Largo da Forca.

A presença negra é ainda atuante e vibrante em territórios negros contemporâneos como é o caso da Esquina Democrática, ou melhor, Esquina do Zaire, e como no Largo Zumbi dos Palmares. Pode-se dizer, que a prática de realizar percursos é uma das características de expressão da comunidade negra.

Seguindo o percurso, chegando-se ao Mercado Público, torna-se impossível evitar a atração do ponto central daquele edifício ou melhor, do epicentro da encruzilhada formada pelo seus corredores, onde está o cruzeiro do Bará.

Neste ponto, um mosaico de pedras amarelas e vermelhas, encimado por sete chaves e igual número de correntes de ferro, marcam um círculo excêntrico, ou seja, sem um centro definido. Está o monumento, pode-se dizer, “assentado” no centro das quatro entradas da edificação do Mercado. Este marco é fruto das demandas e organização das entidades religiosas de matriz afro-brasileira, registrando neste que foi sempre um dos lugares mais negros de Porto Alegre a presença de uma tradição e de um culto centenário, que por gerações foi cimentando à força das religiões de matriz afro-brasileiras na cidade.

Para as yalorixás e babalaorixás, importa sobremaneira a manutenção da Tradição Bará do Mercado, tradição imemorial, caracterizada pelo Ritual do Passeio, onde são apresentados ao Bará os novos sacerdotes que darão continuidade aos conhecimentos ancestrais de todos os ramos religiosos oriundos do Brasil e de Mãe África. O Mercado é ainda reconhecido como marco para a cultura negra na cidade pelos militantes do movimento negro por ter sido construído com mão de obra escravizada, sendo considerado um monumento e um território negro.

Por fim, ao sair do Mercado Público pelo Largo Glênio Peres, no muro do Chalé da Praça XV, se pode encontrar instalado o Painel Afrobrasileiro. O mosaico nas tonalidades ocre, laranja, verde, preto, amarelo e cinza é cruzado por linhas curvas, que lhe dão precisamente a ideia de movimento. O monumento quer deixar vivo aos olhos dos que por ele passam que sim, na formação da cidade também estava a presença negra.

Suas cores funcionam como um magneto que vai brilhando aos olhos dos passantes:“os negros estão aqui, não são invisíveis”. A arte é também mobilização, luta e reivindicação.

A atual Praça XV de Novembro é o cenário onde há dois séculos pisavam centenas de escravizados e, algumas décadas depois testemunhava o murmúrio dos estivadores nas proximidades do porto, os religiosos a irem reverenciar o Bará e os militantes e população negra nas suas andanças pelos arredores.

BIBLIOGRAFIA

  • Trecho do histórico dos jogos do Brasil na Copa de 1974, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n1sT02H7DrE
  • Narração da Rádio Nacional do RJ do jogo Brasil x Zaire, na Copa do Mundo de 1982, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z4ckFM58PRA
  • ANJOS, José Carlos dos. A Reterritorialização do Negro no Centro de Porto Alegre. IN: Oro, Ari Pedro. A Tradição Bará do Mercado. Secretaria Municipal da Cultura – SMC- Porto Alegre, 2007
  • BITTENCOURT JR, Iosvaldyr. Os territórios do Negro em Porto Alegre. IN: VILASBOAS, Ilma; BITENCOURT JR, Iosvaldyr; SOUZA, Vinicius Vieira de. O Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre Editora Porto Alegre: Porto Alegre, 2010
  • DE CERTEAU, Michel. Andando pela cidade. IN: Revista do IPHAN nº 23. Brasília, 1994
  • DOSSIN, Francielly Rocha. Entre Evidências Visuais e Novas Histórias: sobre a descolonização estética na arte contemporânea. Tese de Doutorado. PPG Artes Visuais; UFSC. Florianópolis, 2016
  • POMPEU, Fernanda. O negro de alma negra: uma entrevista com Oliveira Silveira em junho de 2008. Portal Geledés Disponível em:https://www.geledes.org.br/o-negro-de-alma-negra-uma-entrevista-com-oliveira-silveira-2/
  • RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019
  • SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983
  • ZAMINI, Diogo Raul. O quinto elemento do Hip Hop: o percurso dos manos do Bairro Mário Quintana em Porto Alegre. Dissertação de Mestrado, PPG em Antropologia. UFPEL: Pelotas, 2017
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