Desapaga POA

Origens da divisão da cidade entre centro e periferia, a lenda da Maria Degolada e os conceitos de favela e maloca

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Origens da divisão da cidade entre centro e periferia, a lenda da Maria Degolada e os conceitos de favela e maloca Bondes na paisagem da Praça XV e atual largo Glênio Peres. Foto: Banco de imagens do Projeto Monumenta Porto Alegre – PMPA/IPHAN

A pesquisa e os textos do roteiro deste episódio da série PERIFERIAS do DESAPAGA POA são de Guilherme Maffei, Juliana Mohr, Valéria Fernandes e Vinicius Furini. A edição é de Vítor Ortiz. A locução dos áudios no podcast é de Lucas Samuel, Clara Falcão e Carlos Raimundo Pereira. A trilha sonora tem direção e criação de Bebeto Alves, com participação do professor de canto e dança guarani, Arlindo Kuarai.

O QUE É O DESAPAGA POA?

O DESAPAGA POA é um canal de podcast que tem como objetivo desapagar os apagados da história de Porto Alegre: negros, negras, negres, indigenas e periferias, às vésperas da cidade completar 250 anos de sua data oficial de fundação.

Neste espaço você pode ler e ver a bibliografia utilizada na pesquisa do episódio 1 da série PERIFERIAS DE PORTO ALEGRE, do canal DESAPAGA POA.

Este projeto foi selecionado no edital Criação e Formação – Diversidade das Culturas, da Secretaria Estadual da Cultura – SEDAC/RS – e Fundação Marcopolo e é realizado com recursos da Lei 14.017 de 2020 (a Lei Aldir Blanc).

Esta primeira série terá 10 episódios que estarão disponíveis nos principais agregadores de podcast, sendo os áudios transmitidos também, todos os sábados, às 9 horas, pela rádio FM Cultura (107.7), apoiadora do projeto.

O DESAPAGA POA tem ainda o apoio do Matinal Jornalismo, revista Parêntese e RogerLerina.com; e os conteúdos detalhados (o roteiro para leitura, a bibliografia e as imagens da pesquisa) ficam disponíveis no site www.matinaljornalismo.com.br/desapagapoa.

Eu te convido a considerar a possibilidade de contribuir para que o canal DESAPAGA POA possa se tornar permanente, o que você pode fazer na vaquinha digital que abrimos no APOIA-SE. O valor único de contribuição é de R$ 5,00 mensais. Digite APOIA-SE no seu buscador da internet e, estando já dentro do site, escreva na lunetinha: DESAPAGA POA. Todos os nossos conteúdos são de livre acesso e gratuitos.

Outra forma de colaborar com o projeto é compartilhando os episódios com seus amigos.

Neste episódio, vamos percorrer os perímetros de Porto Alegre nos seus primórdios urbanos; investigar o feminicídio que resultou na lenda de Maria Degolada, no Morro da Conceição, e debater os conceitos discriminatórios de favela e maloca que surgiram para designar o lugar onde os mais pobres foram alojados nas grandes cidades brasileiras.

ENTRA A TRILHA DO PODCAST PERIFERIAS
PERÍMETROS E PERIFERIAS NOS PRIMÓRDIOS DA CIDADE
ENTRA O NARRADOR (Lucas)

Museu de imagens Desapaga POA

PARTE 1:

OS PERÍMETROS E PERIFERIAS NOS PRIMÓRDIOS DA CIDADE

Os mapas históricos de uma cidade mostram bem as suas múltiplas espacialidades e temporalidades. O mapa é uma construção imaginária, mas que tem o poder não só de orientar o olhar e a percepção do real, como também, de criar a paisagem urbana que representa.

Há 249 anos, em 1772, segundo o testemunho de um documento do acervo do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, o Capitão Alexandre José Montanha foi convocado para demarcar as meias datas para os casais moradores do Porto de Viamão. Além disso, ele deveria deixar uma parte do terreno, que pertencia à sesmaria de Jerônimo de Ornellas, para criação de uma Freguesia, local onde futuramente surgiria então, a Vila de Porto Alegre.

Assim, podemos dizer que foi o capitão Montanha quem imaginou o traçado da cidade colonial e o colocou em prática. Porém, esse mapa primordial da cidade é um mistério. Embora há anos seja procurado, está desaparecido.

Em 1940, o historiador Paranhos Antunes publicou o que seria um esboço dessa primeira planta, o original, porém, permanece perdido.

O traçado das cidades coloniais portuguesas seguia alguns costumes que os colonizadores trouxeram de portugal: a construção do centro religioso e político em cima de morros, com as ruas principais utilizando as inclinações mais baixas, enquanto os becos secundários faziam a ligação do centro, ou cidade alta, com a área portuária, cidade baixa.

Outras cidades no Brasil refletem essa configuração colonial, em especial Salvador, que, por ser fundada dois séculos antes, tem suas ruas organizadas de forma ainda mais caótica que as daquele antigo Porto de Viamão ou Porto dos Casais.

Assim, foi imaginado e colocado em prática o mapa de Porto Alegre no final dos 1700: com ruas principais que percorriam o espigão (a elevação do morro que vai dar na atual praça da Matriz) de leste a oeste. Estas principais eram a Rua da Praia (atual dos Andradas), a Rua da Igreja (atual Duque de Caxias), e a Rua da Ponte (atual Rua Riachuelo); entre outras calhas secundárias que ligavam as principais, fazendo o caminho mais íngreme na direção norte-sul.

Claro que as ruas mais valorizadas eram aquelas principais, onde se erguiam os casarões da elite, enquanto nos becos se desenvolvia o espaço urbano popular.

Portanto, desde o primeiro mapa, a primitiva cidade de Porto Alegre é dividida entre centro (cidade alta) e periferia (cidade baixa). Entre estas duas cidades, surgiram os becos, as ruas secundárias, geralmente íngremes e que se tornaram local de vida e convivência social das camadas mais baixas da população.

Cidade baixa: camadas baixas da população. Logo tudo isso se tornou um estigma no imaginário das camadas dominantes: a sujeira e a pobreza da parte baixa da cidade, dos becos e da área portuária. A cidade já nasce, portanto, dividida entre ‘centro’ e ‘periferia’.

O CÓDIGO DE POSTURAS

Até meados do século XIX, a parte conhecida como Cidade Baixa era a região ao sul da colina da Igreja Matriz. Essa área abrange as proximidades do Gasômetro, a Rua do Arvoredo e o Areal da Baronesa. Seus extremos iam até a Olaria, na margem do Riachinho, tendo como limite a lomba da Independência. Nessa região, as moradias eram bem mais baratas por ter menos estrutura e estar mais sujeita às inundações do Guaíba e do Dilúvio.

Era também o local onde se praticavam as atividades consideradas sujas pela elite, que preferia esconder de si e dos visitantes diversas atividades essenciais para o funcionamento da cidade: como as lavadeiras, o abatedouro de gado e o depósito de lixo.

Tal divisão se refletia no código de posturas da cidade, que, por sua vez, ditava quais comportamentos eram adequados e em quais locais podiam ser exercidos. O código de 1831, por exemplo, estabelecia o que era cidade e o que não era. Nele, o “Centro Urbano” da época correspondia à área limitada pelas Ruas Bento Martins, Duque de Caxias e Marechal Floriano. Enquanto o restante, era considerado área rural.

O MURO NA LINHA CONTRÁRIA AO PORTO

Outro marcador forte do perímetro central, ou da cidade propriamente dita, foi, durante várias décadas, o Muro que delimitava a divisa contrária ao porto. Entre 1778 e 1845, Porto Alegre foi protegida por uma linha formada, em parte, por uma espécie de fortificação, seguida dos barrancos de difícil escalada entre o alto da cidade e a cidade baixa. O acesso terrestre era desse modo controlado por meio do chamado “Portão”.

Segundo três levantamentos feitos por José Simões e Pedro Paulo Pons, o referido portão se localizava em algum ponto onde hoje fica a confluência das avenidas João Pessoa e Salgado Filho, próximo à atual Praça Argentina. Área que seria radicalmente modificada com a construção do Viaduto Dona Leopoldina, nos anos de 1970, o que alterou inclusive a topografia da cidade, apagando resquícios provavelmente existentes do antigo portão.

Correlacionando aos pórticos de outras cidades fortificadas construídas por portugueses na região, podemos imaginá-lo como um portão estreito (a fim de permitir o controle), porém largo o suficiente para a passagem das cargas de abastecimento.Supõe-se que seja semelhante ao ‘Portão de Armas da Colônia de Sacramento’, projetado e construído por portugueses, naquele enclave no Uruguai no mesmo século 18 em que foi criada a Vila de Porto Alegre.

AS VÁRZEAS DO ESPAÇO EXTRAMUROS

A região ao redor do portão era um local de extrema importância, onde eram acolhidas as caravanas vindas pelo Caminho do Meio (hoje Av. Oswaldo Aranha e Protásio Alves), desde Viamão.

Aliás, quem chegava por terra vindo do Rio de Janeiro ou São Paulo chegava por Viamão. arredor próximo ao portão havia um dos poços que servia também para o abastecimento de água da cidade. Era ali também que se separava o que era a cidade (intramuros), construídos com madeira e terra, do entorno formado por campos, várzeas, pântanos, florestas e fazendas.

Na área alagadiça ao redor, conhecida como Várzea do Portão (local onde futuramente se construiria o parque da Redenção) os tropeiros descansavam suas tropas. A várzea, contudo, era um local desprezado, usado também como depósito de animais mortos e de lixo, como atesta denúncia feita pelo Presidente da Província à Câmara no ano de 1878./

LAVADEIRAS FORAM LEVADAS PARA OS FUNDOS DA CIDADE

Ao sul dos muros, nos arredores do arroio dilúvio, havia também outra área periférica: o Areal da Baronesa, que por volta de 1870, era um matagal cerradíssimo onde“[…] negros fugidos” iam esconder-se de seus implacáveis e desumanos senhores […],” segundo nos conta Achylles Porto Alegre. Ali, os fugitivos do regime escravista encontravam frutas para se alimentar e um refúgio seguro pelo difícil acesso às matas cerradas, moitas, capões, árvores, macegas e depressões de terreno.

Mesmo dentro dos muros havia espaços de exclusão, e com o crescimento da cidade, as pessoas consideradas “indesejadas” pelas elites acabaram sendo empurradas cada vez para mais longe. As lavadeiras, por exemplo, que até as últimas décadas do século XIX movimentavam a beira da praia e as escadas do cais da Alfândega, onde estendiam as peças de roupa na calçada, piso da rua ou na vegetação do entorno.

Com o novo código de posturas da cidade, queriam ‘higienizar’ a região que era por onde chegavam os visitantes e comerciantes vindos de fora, ou seja, o Cais do Porto. Assim, as lavadeiras foram empurradas para o sul, passando a fazer seu trabalho nas margens do Arroio Dilúvio e do Riachinho, na hoje conhecida Cidade Baixa.

Sobre este contexto em que surge o referido “código higienista”, fomos buscar uma luz com o professor Charles Monteiro, doutor em História Social e Cultural, pesquisador e professor da PUC do Rio Grande do Sul:

CHARLES MONTEIRO

“A Porto Alegre da virada do século XIX para o XX é uma cidade que está inserida no contexto mais amplo de transformações da revolução técnico científica, de 1770, 1780, onde vamos ver um grande desenvolvimento técnico que chega ao Brasil através do Rio de Janeiro, São Paulo e também Porto Alegre. Vamos ver a primeira iluminação a gás, e posteriormente a elétrica, no início do século XX. Vamos ver os bondes, inicialmente com tração animal, no final do XIX, e a partir da virada pro XX, os bondes elétricos. Vamos ver as primeiras redes de distribuição de água, de esgoto. Uma transformação profunda das cidades, também nas comunicações com o surgimento do telégrafo e depois do telefone. Todas estas inovações, o fonógrafo, o cinematógrafo, a fotografia, etc, terão um impacto na forma das cidades também. Estas cidades passam, então, por um processo de grandes reformas urbanas, que era um projeto da República, um projeto elitista, burguês, de inserção do Brasil no capitalismo internacional. No Rio de Janeiro este momento se traduziu nas reformas do Prefeito Pereira Passos, na primeira década do século XX; em São Paulo, também. Belo Horizonte já havia sido construída na forma de uma cidade totalmente nova; e em Porto Alegre isto também vai ocorrer entre as décadas de 1910 e 1920. Ocorrem o alargamento das ruas do Centro, nova pavimentação, a transformação dos largos em praças ajardinadas, com canteiros, com bancos para toda uma sociabilidade destas elites, o que acompanha a nova iluminação pública, os bondes, uma cultura dos cafés, dos bares, dos restaurantes, ritmos musicais novos. Em paralelo, estas reformas são acompanhadas por reformas administrativas que visam redistribuir a organização política da cidade. Os impostos urbanos irão subir significativamente, expulsando as populações que viviam nos cortiços, nos porões, nos portões de vários lugares do centro, inclusive com os projetos das duas grandes avenidas que serão construídas em Porto Alegre que são a Júlio de Castilhos e a Borges de Medeiros, com seu viaduto.”

BECO DO JACQUES, CANDOMBLÉ DA MÃE RITA E O CARNAVAL DE 1899

Desde os primórdios, alguns espaços do que hoje chamamos de centro eram, também, lugares de expressão artística, de festas e de música. Segundo os antigos cronistas, os batuques nos domingos eram rotina em locais como o Beco do Poço (a atual avenida Borges de Medeiros), o Beco do Jacques (onde hoje é a Rua 24 de Maio) e na Rua da Floresta (atualmente conhecida como Cristóvão Colombo).
No Campo do Bom Fim (atual Redenção) havia o batuque ao ar livre; e na Cidade Baixa, o famoso Candomblé da Mãe Rita.

Nos novos bairros que iam se constituindo afastados do centro da cidade, as expressões culturais também foram ganhando forma, e cada vez de forma mais intensa à medida que esses locais iam sendo habitados. No Partenon, um dos primeiros arrabaldes (forma como se referiam aos bairros periféricos na antiga Porto Alegre), houve um carnaval no final do século 19 digno de nota.

Segundo o cronista, poeta e historiador Athos Damasceno, em seu livro Carnaval Pôrto-Alegrense, no ano de 1889, logo após a Lei Áurea e no ano do golpe que leva à fundação da primeira República, o carnaval na cidade sofreu “sensível queda de temperatura” (expressão de que Damasceno utiliza para descrever o evento pouco animado).

Os blocos no centro da cidade traziam carros alegóricos que representavam o novo momento da sociedade brasileira, após o fim oficial do regime de escravidão. As alegorias e fantasias, porém, pareciam não empolgar os foliões daquele ano, que aplaudiam os esforços, mas friamente, segundo o autor. Os que estavam gostando e queriam mais carnaval contudo rumaravam para a periferia depois dos desfiles do centro onde esperavam, como diz Damasceno: “mergulharem ali raízes profundas”…

Do Arraial do Partenon, vem um comunicado à quem possa interessar:
“O Clube Partenon tem a honra de avisar aos senhores sócios burlescos, tudescos e carnavalescos, que a reunião para o grande passeio terá lugar domingo na casa do sócio Ricardo José de Oliveira, às 8 horas da noite.”

Da casa do sócio Ricardo Oliveira, onde hoje é esquina da Bento Gonçalves (antiga estrada do Mato Grosso) com a Luiz de Camões, saiu o cortejo com um carro triunfal e um esquadrão de lanceiros, carro este que seguindo a estrada em direção ao centro, pela Rua da Azenha (atual João Pessoa) foi até a antiga estação de Bondes que então havia próximo da Redenção, na esquina com a Sarmento Leite.

PARTE 2

MUDANÇA NA TRILHA PARA NOVO TEMA NO EPISÓDIO
A LENDA E DEVOÇÃO À MARIA DEGOLADA OU MARIA DA CONCEIÇÃO
ENTRA A CLARA FALCÃO NA NARRAÇÃO

OS PERÍMETROS E PERIFERIAS NOS PRIMÓRDIOS DA CIDADE

Com o tempo e o crescimento da cidade, as periferias foram crescendo, surgiram novos lugares de moradia, especialmente nos vários morros da cidade, como o da Conceição, onde ocorreu o fatídico feminicídio de Maria Degolada, a Maria Conceição… Morro ou mulher?

Na Casa das Meninas de Rua é possível ouvir uma contrariada dizer: “Olha que me baixa a Degolada e eu não sei o que faço!”

Para Pedro Antônio de Souza: “por que duvidar dos milagres? Na Vila, tudo gira em torno dela…”

Para Carmem Maria Bica dos Santos: “ela era uma mulher normal, mas no fundo ninguém sabia ao certo. O que importa é que fazia o bem para os membros da comunidade”.

O livro Os Sete Pecados da Capital, de 2008, da historiadora Sandra Pesavento, traz esses depoimentos. É da autora a seguinte afirmação:

“a história estabelece regimes de verdade, e não certezas absolutas.”

E se cada ponto aumenta o conto, o da Maria Degolada, ao longo de mais de cem anos, recebeu muitos pontos.

Maria, para alguns, é referência geográfica: lá no morro da Maria.
Para outros, é a santa milagreira.
Para muitos: um conto ou uma lenda.
Para cada interpretação, o resultado de uma sociedade apinhada de preconceitos.
No caso de Maria a construção de diferentes verdades para o mesmo fato no passar do tempo reaviva o imaginário social.
A memória expressa na oralidade aproximou de diferentes formas a personagem da comunidade que se desenvolveu ali onde morou e padeceu Maria.

Recorrendo aos registros escritos da época, do ano de 1899, encontramos o processo criminal e as notícias de jornais. Nas diferentes narrativas, o que se conta é que em 12 de novembro daquele ano, um grupo de homens do Primeiro Regimento de Cavalaria da Brigada Militar foi ao morro do Hospício, no arraial do Veiga, fazer um pic-nic.

No evento havia homens e mulheres, dentre estes, o Cabo Bruno Soares Bicudo e Maria Francelina Trenes.

Com toda a certeza, aqueles que lá estavam, não imaginaram que o final deste dia festivo terminaria com uma mulher degolada – Maria; e com o Cabo Bruno Bicudo ferido e preso. Muito menos poderiam imaginar que mais de 120 anos depois, a história daquele pic-nic continuaria sendo contada e reinterpretada pelos porto-alegrenses.

Maria é ponto geográfico pelo local que viveu e morreu.
Maria é jovem, loira, branca e vítima.
O jornal A Gazetinha, de 13 de novembro daquele ano de 1899, descreveu a cena da tragédia: “A infeliz vítima achava-se sobre o capim, debaixo de uma grande árvore, usava vestido e casaco azul, tendo os cabelos todos soltos. Em redor de si, achavam-se alguns vizinhos que, como nós, lamentavam aquele tristonho quadro, obra talvez, diziam eles, de uma destas tantas tragédias de ciúmes, de que são autores os mais bárbaros dos homens.”

Em outra versão, Maria é culpada, sendo vista como uma mulher solteira, de vida fácil, prostituta sem honra, apresentada como amiga ou amásia de Bicudo.

Segundo os autos do processo, o crime ocorreu depois que José, funcionário de uma olaria próxima ao pic-nic, se agregou ao grupo em seu horário de almoço.

José e Maria teriam se afastado para terem um “intercurso sexual” próximo ao arroio Cascata.

A situação complicou-se quando o Cabo Bruno Bicudo descobriu o fato. O casal, Bruno e Maria, entram em atrito após Maria ter expressado sua preferência por José em detrimento do Cabo e desferido um ataque físico, com uma barra de metal ou madeira contra Bicudo.

Na sequência, o Cabo realiza, subitamente, a degola de Maria e, em seguida, uma tentativa de suicídio.

A alegação de que ele “defende sua honra” faz parte de sua defesa no processo.

Também nos autos da peça jurídica, Maria é descrita como bela e de vida sem honra, enquanto Bicudo deixa de ser o cabo rústico, de aparência rude, para ser o homem que defende virilmente a instituição de segurança e o direito de limpar sua honra.

Somente em 2021, o Supremo Tribunal Federal modificou o entendimento jurídico válido para este tipo de crime no Brasil, anulando a possibilidade da “limpeza da honra” ser considerada um fator para o inocentamento nos casos de feminicídios.

Sobre este ponto, conversamos com a historiadora Carine Trindade, que é assistente técnica do Memorial do Judiciário no Rio Grande do Sul e pesquisa justamente o tema “o judiciário e as relações de poder”, com foco em processos de repercussão, como foi este, de Maria Francelina.

Carine Trindade, formada em História pela UFRGS e assistente técnica do Memorial do Judiciário do RS e que desenvolve sua pesquisa trabalhando sobre processos judiciais de grande repercussão, como o caso da Maria Degolada, comentou a questão para o DESAPAGA POA:

CARINE TRINDADE

O Bruno, logo que mata a Francelina, a única coisa que ele diz é que ele teve que se defender de um ataque violento dela. As testemunhas, e eu saliento que só os homens que estavam neste pequinique é que testemunharam, eles confirmam que a Maria Francelina havia tentado bater no Bruno com um pedaço de madeira e depois com um pedaço de metal, e ele se defendeu e acabou degolando-a. Mas já durante o processo, em relato que ele faz para a Polícia, em 10 de dezembro de 1899, quase um mês depois do crime, Bruno acresce detalhes. Ele diz que conheceu Maria Francelina e que a cerca de um ano estavam morando juntos e que ela já era prostituida. Ele diz também que naquele dia do piquenique, Maria tinha tido relações sexuais com outro homem e passou a falar na frente de todos que preferia ficar com o José da Olaria do que com ele, por que o José era melhor do que ele. Bruno então diz que já estava embriagado e que a Maria Francelina passou a provocá-lo muito e por isso ele cabaou atacando ela. Essa fala, demonstra uma tentativa de colocar a culpa na vítima – e nesse caso, frustrada – por que ele foi unanimemente condenado no Tribunal do Júri a cumprir 30 anos com trabalho – dos quais ele vai cumprir somente seis porque acaba morrendo na prisão – essa sua fala, que diz que ela já era prostituída, que ela envergonhou a ele defronte de todo mundo, ela expressa a busca da defesa da honra para legitimar o homicídio. Ela mata a mulher, então, para defender a sua honra, por que ele acredita que a mulher é guardiã da sua honra, que ela, ao se desonrar, também desonra o seu homem. Esta tentativa de culpabilizar a vítima foi e ainda é encontrada em defesa de homens que mataram suas companheiras, chegando ao ponto de, somente agora, em pleno século XXI, em fevereiro de 2021, o STF ter declarado a inconstitucionalidade da alegação de defesa da honra em feminicídios. Lá em 1899, nós temos um caso em que um homem foi autor de um crime, que somente homens foram testemunhas no processo e que outros homens, outra vez somente homens, foram julgadores deste crime cometido contra uma mulher, em que pese a condenação havida.

A SANTA DEGOLADA, POR PAULO KOETZ E DESENHOS DE MOTTINI

O crime jamais caiu no esquecimento da comunidade e novos pontos foram sendo colocados na história. Em texto de Paulo Koetz, com desenhos de João Mottini, em 1964, o jornal Última Hora produziu uma série de folhetos ilustrados, entre os quais estava o de 14 de março daquele ano com o título: “Maria da Conceição – a santa degolada.”

Nesta versão, há um jovem casal. Ela: loira, linda e indefesa. Ele: rude, feio e mau. Um homem que, ao retornar da guerra, não se adapta ao modo pacato da vila, pois era “muito pesada sua herança de sangue”.

Ele – conhecido na região pelo apelido de Sabino Homem-Mau, frequentador de botequins e com fama de desordeiro e ela, sua redentora, quiseram se casar. A família dela, especialmente o pai e o irmão que conheciam o Praça – não abençoa o relacionamento. Por este motivo ela decide fugir e na cerimônia aparece somente a família do noivo.

O casamento se desenvolve marcado pelo ciúme de Sabino Bicudo para com sua esposa.
Existem, contudo, os dias de festa, como o do almoço que organizam com os antigos companheiros de farda do soldado. O encontro é relaxante e induz o casal a cochilar à sombra de uma figueira. Sabino Bicudo se debate em seu sono, revive uma sede de sangue do período de guerra, e em delírio realiza novamente o ato da degola, dessa vez em de sua jovem esposa que jazia em seu colo.

A SANTIFICAÇÃO DE MARIA FRANCELINA

Mas quando foi que Maria virou santa?
Para isso se passaram mais de 60 anos.
Em 1961, Ary Veiga Sanhudo escreveu diversas crônicas sobre o passado de Porto Alegre, seus bairros, sua população, suas manias, seus jeitos de ser e viver. E é ele quem resgata esta história perdida.

Sandra Pesavento, em seu livro de 2008, analisa os escritos de Sanhudo sobre Maria Degolada afirmando que ele:
“ao rememorar sobre uma vila marginal da cidade – a vila da Conceição, situada no antigo Morro do Hospício, cheia de malocas – dá a conhecer aos leitores suas origens trágicas”.

Entretanto, o cronista coloca novos pontos neste conto. Para ele, o ocorrido teria se dado em 1929, num lugar deserto, junto a uma pedreira e à sombra de uma frondosa figueira que servia de mirante para a cidade. Ali se formou o palco do encontro entre um praça da Brigada Militar e uma moradora da rua Doze, atual rua Carlos de Laet.

O Praça acusava a moça de infidelidade, tendo-a matado com aquilo que trazia a mão: uma faca. O corpo da jovem teria sido encontrado degolado no dia seguinte e a comunidade, desolada com o ocorrido, teria erguido uma cruz no local, passando a velar o lugar, o referenciando como o local onde Maria foi degolada. Nesse momento, teve início sua santificação.

Sanhudo complementa a crônica trazendo informações de uma sessão espírita ocorrida numa das casas da comunidade. Nesta sessão, Maria Francelina teria se apresentado, afirmando entristecer-se ao ser chamada de “Maria Degolada”.

As mulheres que estavam na sessão sugeriram, em coro, que ela continuaria a se chamar Maria, mas Maria da Conceição. Com o novo nome aclamado, surgiu no suposto local do crime um oratório, e em seguida devotos e crentes em busca da proteção da assassinada, que, segundo afirmavam, vez ou outra fazia aparições na forma de uma jovem vestida de branco.

As três versões que apresentamos aqui relembramosque o assassinato de um jovem pelo seu companheiro foi frequentemente justificado pelo ciúmes, pela defesa da honra do homem e pelo sentimento de propriedade com a mulher. Maria Degolada ou Maria da Conceição? Morro ou Mulher?

PARTE 3

MUDANÇA NA TRILHA PARA NOVO TEMA NO EPISÓDIO
FAVELAS, NO RIO; MALOCAS, EM PORTO ALEGRE
ENTRA CARLOS RAIMUNDO NA NARRAÇÃO

FAVELAS NO RIO E MALOCAS EM PORTO ALEGRE

Desde seu surgimento até as primeiras décadas de nosso século, Porto Alegre atravessou inúmeras mudanças em seu espaço, transformando-se em metrópole nacional com acentuado crescimento econômico, urbano e populacional.

E nesse contexto, o que aconteceu com os chamados “espaços malditos” que sempre existiram, desde os primórdios? Os lugares de boemia – os becos, cortiços e porões, lembrados, por exemplo, na obra da historiadora Sandra Pesavento?

Tais “lugares malditos”, em verdade, sempre serviram também como lugar de moradia para os trabalhadores e os de baixa renda em geral, em busca de um aconchego para dormir que seus salários pudessem pagar. Seus moradores e usuários, portanto, não eram tão somente os boêmios, os comerciantes ou os que viviam da noite, da farra, como também de forma pejorativa o preconceito rotulou a prática notivaca.

Os territórios negros urbanos como a Ilhota, a Colônia Africana e o Areal da Baronesa foram sempre, em primeiro lugar, espaços de moradia e ao mesmo tempo lugares de resistência cultural de escravizados, livres e libertos.

Porto Alegre teve um processo um pouco diferente de crescimento da sua periferia se comparada a outras metrópoles nacionais, como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, por exemplo, chegando até mesmo a cunhar expressões próprias para representar os lugares onde foram se estabelecer os mais pobres.

No Brasil, diversos termos surgiram para designar os lugares vistos pelas elites como “marginais” à cidade formal: “favela” e “maloca”, por exemplo, foram utilizados praticamente como sinônimos, que pesem tenham significados diferentes.

As favelas do Rio de Janeiro foram se formando a partir do processo de modernização urbana implementado na então Capital nos anos que marcam a virada do século XIX para o XX, sob forte influência da Belle Époque parisiense e no contexto de uma visão higienista, que responsabilizava os cortiços pelo atraso da capital, pela proliferação de doenças e epidemias, o que justificava sua demolição e o despejo de seus moradores.

A destruição do Cabeça de Porco a mando do Prefeito Pereira Passos, o cortiço mais famoso do Rio, conforme Sidney Chalhoub no livro Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial, foi um marco deste momento da história do urbanismo no país:
O cortiço, situado nas proximidades da atual avenida Rio Branco era considerado pela imprensa e autoridades como um “antro de suspeitos” e foi posto à baixo com grande e espetacular violência.

Para a socióloga Lícia do Prado Valladares, autora de A invenção da favela – favelas são lugares complexos, não percebidos devidamente pelas interpretações generalizadas e reducionistas, que em geral às colocam apenas como território de violência ou como bolsão de pobreza e exclusão social.

Para Alba Zaluar e Marcos Alvito, “[…] apesar do que se afirma com frequência na literatura sobre a favela, ela já começa a ser percebida como um ‘problema’ praticamente no momento em que surge, muito embora, a despeito dessa clara oposição à sua presença, a cidade tenha continuado a crescer sem interrupções”.

Jailson de Souza Silva e Jorge Luiz Barbosa, autores do livro Favela: alegria e dor na cidade, propõem como primeira questão que a identificação da favela como um problema – essa noção tão presente no senso comum do país – é algo ainda a ser superado. Para eles, a favela também não é um espaço idealizado e de resistência ao mundo urbano. Favela faz parte da cidade, da sua vida e da sua história. “Só teremos uma cidade democrática e fraterna, marcada pela possibilidade do encontro das diferenças, quando tivermos apenas uma cidade e um cidadão, sem que se deixe de reconhecer a pluralidade das práticas sociais e dos diversos territórios – ou seja, a diversidade”, destacam os autores./

O “mito fundador” da representação social das favelas ou seu mito de origem está diretamente relacionado à imagem do povoado de Canudos descrita por Euclides da Cunha em Os Sertões (1902). Essa imagem, segundo Lícia Valladares, “também corresponde àquela vislumbrada pelos primeiros visitantes da favela do Rio, quando transpuseram em suas descrições a dualidade ‘litoral versus sertão’ para a dualidade ‘cidade versus favela’. A similiaridade das casas construídas no Morro da Providência, depois conhecido também como Morro da Favella, com as descritas pelo literato, a presença da mesma vegetação e a instalação de soldados regressos do combate à Antônio Conselheiro para aquela região do Rio foram características e circunstâncias que contribuíram para o surgimento da expressão e do conceito de favela. Afora isso, houve também um forte impacto da obra de Euclides da Cunha no meio político e intelectual da Capital da época, o que foi fundamental para a construção social do termo, posteriormente popularizado.

Já a expressão “maloca”, segundo Laudelino de Medeiros no livro Vilas de malocas (ensaio de sociologia urbana), escrito em 1951, obra precursora sobre o tema, designa, no Brasil, a casa que aloja várias famílias, a habitação indígena.

As chamadas vilas de malocas apareceram no cenário porto-alegrense no começo da década de 1940, sendo resultado do problema da habitação popular da capital decorrente da migração de trabalhadores do campo para a cidade e também da produção endógena de pobreza, conclui Vinicius FURINI em seu Trabalho de Conclusão do curso de História da UFRGS, sobre o Mato Sampaio, escrito em 2018.

Laudelino de Medeiros já apontava a dificuldade de definir o termo “maloca” e seu novo sentido associado ao fenômeno urbano. Sua transposição da habitação indígena para ser para a casa dos mais pobres e excluidos: maloca é uma “habitação miserável que nem é cortiço, nem espelunca, nem choupana, nem casebre, nem cubículo… Talvez tugúrio, talvez choça, talvez palhoça, mas que popularmente todo mundo entende como sinônimo de ‘favela’ e de ‘mocambo’.

A partir do aparecimento da expressão “vilas de malocas”, /seu sentido depreciativo foi atribuído também às pessoas que nela viviam, classificando inclusive um tipo de comportamento supostamente mal educado no ambiente social: “os maloqueiros”, designação altamente pejorativa.

Os historiadores Álvaro Klafke, Rodrigo Weimer e Vinícius Furini, em obra conjunta e ainda inédita, indicam algumas diferenças entre os termos “malocas” e “favela”, sendo que o primeiro, em Porto Alegre, se refere à núcleos localizados em áreas alagadiças, nas periferias cada vez mais afastadas de seu centro; enquanto o segundo, no Rio de Janeiro, representa os enclaves nos morros entre os bairros e o asfalto.

FECHAMENTO

Este foi o primeiro episódio da série PERIFERIAS do canal DESAPAGA POA / O podcast que chegou para desapagar os apagados da história de Porto Alegre: negros, negras, negres, indigenas e periferias, às vésperas da cidade completar 250 anos de sua data oficial de fundação.

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No próximo episódio, vamos revisitar a lenda do escravizado Josino e o largo da Forca na Porto Alegre colonial, analisar o mito da escravidão branda no Sul do Brasil e saber mais sobre a irmandade do Rosário dos negros, de onde emergiram lutas, conquistas e direitos para os negros de então.

Acompanhem, em breve estaremos aqui outra vez para mais um episódio do canal DESAPAGA POA.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DA PESQUISA

  • CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. 2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • FURINI, Vinícius Reis. “Visita pitoresca ao Mato Sampaio”: Estigmas e representações sobre os “maloqueiros” do Mato Sampaio através da narrativa jornalística porto-alegrense (Década de 1950). Porto Alegre: UFRGS, 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação – Licenciatura em História).
  • KLAFKE, Álvaro Antonio; WEIMER, Rodrigo de A.; FURINI, Vinícius R. A cidade que devora “malocas”: habitação popular e o espaço urbano de Porto Alegre (c. 1943 – c.1973). No prelo.
  • MEDEIROS, Laudelino de. Vilas de malocas (ensaio de sociologia urbana). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1951.
  • PESAVENTO, Sandra Jatahy. “A cidade maldita”. In: SOUZA, Célia Ferraz de; PESAVENTO, Sandra Jatahy. Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano. 2.ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. pp. 25-42.
  • ___________. Os pobres da cidade: vida e trabalho – 1880-1920. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994.
  • VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela. Do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005.
  • ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Introdução. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (Orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
  • PESAVENTO. Sandra J. Os Sete Pecados da Capital. Ed. Hucitec: São Paulo, 2008.
  • ROIZ. Diogo da Silva. A Nova História Cultural: questões e debates. Pensamento Plural: Pelotas [02]:181-186, janeiro/junho 2008.
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