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Diário da espera: Na Restinga, Parte II

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Diário da espera: Na Restinga, Parte II Por Neila Prestes Araujo Este diário continua contando os dias de quarentena publicados pela autora na Matinal News. Veja o primeiro relato da autora. 21 de março (sábado) O bairro se movimenta como em um dia de férias. Em uma saída rápida de carro para compras necessárias visualizo o trânsito na rua que se comporta como em uma rotina normal: pessoas se avolumam no mercado, se reúnem para o jogo de bola, conversam nas esquinas. No grupo de whats do Fórum de Segurança seguem postagens sobre como o hospital se organiza para atender o bairro. Já existem denúncias de uma onda de “gripe” não identificada que atinge os moradores. De minha casa escuto o som do bairro. Há festas. Elas imprimem o quadro de ignorância sobre as consequências do vírus. Um debate com meu filho mais velho descreve a divisão que enfrentamos entre quem defende o isolamento e quem não. Eu olhando pelos olhos do trabalhador. Ele pelos olhos dos empregadores. O neoliberalismo cria raízes, labirintos informativos com versões que se estendem como abismos entre os sujeitos. Como familiares com opiniões opostas, só resta a tentativa de respeito sem maior aprofundamento do tema. 22 de março (domingo) Minha mãe de 79 anos liga e de forma intransigente cobra a pouca atenção que ganha. Ela mora sozinha e não a visito faz cinco dias, quando no portão entreguei máscaras e álcool em gel. Contrariando minhas orientações neste período, ela foi ao mercado desprotegido sem os cuidados necessários. Para o almoço buscamos churrasco, em um pequeno negócio do bairro. O dono comenta que a vigilância e a guarda municipal já tentaram fechar o seu estabelecimento. Como estava com tudo em ordem, ele manteve o atendimento.  Meu companheiro busca o alimento no balcão, eu não saio do carro. Com cuidado o atendente usa máscara e luvas, passa álcool em gel na máquina para efetuar o pagamento. Ele reclama que pode vir a passar fome com a família se continuar assim, pois terá que fechar o comércio. Ao retornar para o carro, meu parceiro (que é microempreendedor) não esconde a preocupação. Lembra que talvez tenhamos dias difíceis, aperta minha mão e diz “vamos ficar bem”. Para minha surpresa, à tarde um casal de amigos vem me visitar. Meio constrangida os recebo de dentro de minha sala e os oriento a ficar na garagem. Ele cuida da mãe doente e vive com a aposentadoria dela. Seu olhar vago frente à incerteza do que vai acontecer me provoca um aperto no peito, uma vontade de chorar. O máximo que consegui foi oferecer a ele e à namorada uma fatia de bolo. E a promessa de que faria o possível para ajudar sem saber se nossa família também precisaria de ajuda. 23 de março (segunda) Hoje vou levar comida para Tales, meu filho mais novo. Ele faz Ciências Política na UFRGS e mora com amigos mais próximo da Universidade (na Cidade Baixa). Hoje não vou abraçá-lo.  A viagem até o Centro mostrou uma outra cidade: vazia e silenciosa. […]

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Por Neila Prestes Araujo Este diário continua contando os dias de quarentena publicados pela autora na Matinal News. Veja o primeiro relato da autora. 21 de março (sábado) O bairro se movimenta como em um dia de férias. Em uma saída rápida de carro para compras necessárias visualizo o trânsito na rua que se comporta como em uma rotina normal: pessoas se avolumam no mercado, se reúnem para o jogo de bola, conversam nas esquinas. No grupo de whats do Fórum de Segurança seguem postagens sobre como o hospital se organiza para atender o bairro. Já existem denúncias de uma onda de “gripe” não identificada que atinge os moradores. De minha casa escuto o som do bairro. Há festas. Elas imprimem o quadro de ignorância sobre as consequências do vírus. Um debate com meu filho mais velho descreve a divisão que enfrentamos entre quem defende o isolamento e quem não. Eu olhando pelos olhos do trabalhador. Ele pelos olhos dos empregadores. O neoliberalismo cria raízes, labirintos informativos com versões que se estendem como abismos entre os sujeitos. Como familiares com opiniões opostas, só resta a tentativa de respeito sem maior aprofundamento do tema. 22 de março (domingo) Minha mãe de 79 anos liga e de forma intransigente cobra a pouca atenção que ganha. Ela mora sozinha e não a visito faz cinco dias, quando no portão entreguei máscaras e álcool em gel. Contrariando minhas orientações neste período, ela foi ao mercado desprotegido sem os cuidados necessários. Para o almoço buscamos churrasco, em um pequeno negócio do bairro. O dono comenta que a vigilância e a guarda municipal já tentaram fechar o seu estabelecimento. Como estava com tudo em ordem, ele manteve o atendimento.  Meu companheiro busca o alimento no balcão, eu não saio do carro. Com cuidado o atendente usa máscara e luvas, passa álcool em gel na máquina para efetuar o pagamento. Ele reclama que pode vir a passar fome com a família se continuar assim, pois terá que fechar o comércio. Ao retornar para o carro, meu parceiro (que é microempreendedor) não esconde a preocupação. Lembra que talvez tenhamos dias difíceis, aperta minha mão e diz “vamos ficar bem”. Para minha surpresa, à tarde um casal de amigos vem me visitar. Meio constrangida os recebo de dentro de minha sala e os oriento a ficar na garagem. Ele cuida da mãe doente e vive com a aposentadoria dela. Seu olhar vago frente à incerteza do que vai acontecer me provoca um aperto no peito, uma vontade de chorar. O máximo que consegui foi oferecer a ele e à namorada uma fatia de bolo. E a promessa de que faria o possível para ajudar sem saber se nossa família também precisaria de ajuda. 23 de março (segunda) Hoje vou levar comida para Tales, meu filho mais novo. Ele faz Ciências Política na UFRGS e mora com amigos mais próximo da Universidade (na Cidade Baixa). Hoje não vou abraçá-lo.  A viagem até o Centro mostrou uma outra cidade: vazia e silenciosa. […]

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