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Dilemas éticos envolvidos nos “passaportes imunológicos”

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Dilemas éticos envolvidos nos “passaportes imunológicos”

Essa é a íntegra da entrevista com Nythamar de Oliveira, professor de Filosofia na PUCRS, concedida para ao artigo Bioética e Covid-19: como tomar decisões que afetam vidas?

“A universalização efetiva da saúde pública no Brasil através do SUS (…), é a meu ver, uma das maiores e incondicionais prioridades de nossas políticas de Estado.”

Nythamar de Oliveira é professor de Filosofia na PUCRS. Intelectual extremamente ativo, integra diversos grupos e iniciativas acadêmicas, entre as quais se destacam uma parceria com o Instituto do Cérebro, da mesma universidade, e sua presença como membro do Comitê de Bioética Clínica do Hospital São Lucas. Nesta conversa, feita por email, falamos sobre as contribuições da filosofia para a sociedade em termos de pandemia, dilemas éticos envolvidos nos “passaportes imunológicos” e os desafios do Brasil, em sua desigualdade e complexidade, na pandemia.

1. Para iniciar nossa conversa e situar nosso leitor, gostaria que você nos falasse um pouco sobre suas atividades acadêmicas. Sei que você se ocupa bastante com as áreas da filosofia moral, ética e política. Você também tem uma aproximação com o Instituto do Cérebro (São Lucas/PUCRS) e mantém um seminário (muito interessante, aliás) sobre filosofia e neurociências. Você poderia nos falar, brevemente, sobre suas atividades e principais interesses de pesquisa?

Desde 1994, tenho desenvolvido projetos de pesquisa em Ética e Filosofia Política, apoiado pelo CNPq (Bolsista de Produtividade em Pesquisa). Iniciei com um programa de pesquisa em teorias da justiça (autores contemporâneos como John Rawls, Jürgen Habermas, Seyla Benhabib, Axel Honneth e representantes da chamada Escola de Frankfurt) e nos últimos 10 anos tenho desenvolvido um programa de pesquisa sobre normatividade e naturalismo. Após 5 anos como professor de Ética e Filosofia Política na UFSC, iniciei minhas atividades de ensino, pesquisa e extensão na PUCRS em 1999, onde fui coordenador do PPG em Filosofia (nos últimos 10 anos, avaliado com nota 6 da CAPES, sempre entre os 5 melhores do País) e sou atualmente Editor-Chefe da revista Veritas (criada há mais de 60 anos), membro do Comitê de Bioética Clínica (Hospital S. Lucas) e membro da comissão coordenadora do Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia (que fundei em 2009). Fui convidado pelo fundador e Diretor do Instituto do Cérebro (InsCer), Dr. Jáderson da Costa, atual vice-reitor da PUCRS, a iniciar e coordenar um grupo de pesquisa interdisciplinar em Neurofilosofia (filosofia da neurociência) e desde 2012 tenho oferecido um seminário de pós-graduação nessa área (website: nythamar.com/neurophilosophy) em inglês (mas também com discussões em português) e desenvolvemos atividades de pesquisa, em torno do tema “Cérebro Social”, tendo organizado vários workshops, colóquios e seminários internacionais apoiados pelo CNPq, CAPES, FAPERGS, CDEA (Centro de Estudos Europeus e Alemães) e Fundação Humboldt (da qual fui

bolsista na Alemanha em 2004-05). Nossa pesquisa atual busca identificar e reparar os déficits

fenomenológicos da Teoria Crítica (reconstrução normativa da Escola de Frankfurt) e do naturalismo (na chamada neurociência cognitiva social), reformulando o que seria uma abordagem fenomenológico-analítica capaz de responder aos desafios normativos de modelos neurocientíficos que tentam explicar a socialidade em termos eliminativistas (por ex., Patricia Churchland), homeostáticos (António Damásio) ou psicossociais (Michael Gazzaniga). Esta etapa atual continua uma pesquisa interdisciplinar em "Mídias Sociais e Tomadas de Decisão: Razão e Emoção nas Relações Sociais" (apoiada pelo InsCer e pelo CNPq, Proc. No. 405998/2012-0), quando examinamos processos decisórios entre usuários de Facebook utilizando fMRI (neuroimagens de ressonância magnética funcional). O desafio consiste em evitar as leituras reducionistas dos condicionamentos neurobiológicos e socioculturais, assim como os pressupostos dogmáticos de modelos religiosos e metafísicos. Em nosso seminário atual, estamos explorando questões éticas de neurofilosofia e inteligência artificial, abordando também o papel das emoções e das atitudes proposicionais (como crenças e desejos) na formação da cognição, conjugando elementos cognitivos e não-cognitivos.

2. Apesar das medidas de isolamento social, você segue atuante, seja como professor e como autor. Quais são suas impressões gerais, enquanto pesquisador da filosofia, sobre a pandemia? O que lhe chama atenção?

A PUCRS tem mantido todas as atividades acadêmicas (reuniões, bancas de mestrado e doutorado, aulas, orientações e alguns eventos) através do formato online (via Skype, Zoom, Hangouts, Moodle etc), respeitando o isolamento social e recomendações da OMS. Em se tratando da maior crise global (epidemiológica, política e econômica) já enfrentada pela Humanidade nos últimos séculos, creio que a pandemia da COVID-19 já nos ensinou muitas coisas, tanto num nível individual e familiar (por exemplo, sobre a higiene e cuidado pessoal, a

solidariedade, o recurso de Home Office, a valorização da vida humana e das relações interpessoais) quanto num nível coletivo e governamental (por exemplo, a devida valorização da Saúde Pública, uma maior conscientização das desigualdades sociais e econômicas e da falta de infraestrutura adequada (especialmente, saneamento básico) entre os segmentos menos favorecidos da sociedade, a importância da integração de políticas públicas sociais, incluindo o cuidado com as populações vulneráveis (idosos, portadores de doenças crônicas, minorias étnicas) e a tão negligenciada gestão da pesquisa acadêmica e científica em nosso País). Sem dúvida, houve também importantes aprendizados para a Humanidade, de forma planetária, por exemplo, de que há uma interdependência global para além de visões de mundo, ideologias e orientações políticas, que o ser humano é finito, efêmero e vulnerável, que somos uma espécie genérica única (Homo sapiens) e que compartilhamos emoções sociais e direitos humanos. Descobrimos, em última análise, que os maus governantes podem causar danos a populações inteiras, como ficou patente com os resultados aberrantes do número de casos e óbitos pelo novo coronavírus nos EUA e no Brasil, onde seus respectivos presidentes oscilaram entre o negacionismo e as tomadas de decisão confusas e ineficientes, muitas vezes dando um mau exemplo para os cidadãos desses dois grandes países.

3. Muitas pessoas não mantêm contato com a área de filosofia e talvez até mesmo estranhem que, em uma pandemia, estejamos discutindo assuntos filosóficos. De que maneira a filosofia pode nos ajudar numa situação como a que estamos vivendo? Você poderia dar exemplos?

A filosofia ocidental tem mais de 2.500 anos de atividades e interlocuções com as ciências, as artes e as religiões, tendo contribuído de forma decisiva para o seu desenvolvimento através de processos civilizatórios complexos, notadamente os que resultaram nas nossas democracias atuais e nos valores ético-morais compartilhados por bilhões de pessoas no mundo inteiro. A filosofia pode sempre nos ajudar a cultivar uma atitude crítica, de questionamento sobre tudo que tem sido imposto por dogmatismo, subjetivismo ou imposição autoritária através dos séculos. Por exemplo, vários filósofos contemporâneos desenvolveram interessantes análises sobre o fenômeno atual da emergência de movimentos fascistas e extrema direita, assim como a propagação de fake news e as novas formas de manipulação de grupos sociais. Infelizmente,

temos conhecido no Brasil hodierno esse fenômeno da manipulação de massas e de crenças coletivas, como as de rebanhos de evangélicos fundamentalistas que se prestam a plataformas políticas e de charlatanismo explícito. A filosofia pode nos ajudar, assim como a psicologia social, a tentar entender por que tantos movimentos de massa, que paradoxalmente surgem com o fito de desafiar o status quo (no nosso caso brasileiro, de acabar com a corrupção e combater o fisiologismo político), terminam por fomentar ideais particulares que eventualmente levam ao fanatismo entre líderes e seguidores, sobretudo em movimentos religiosos (como o fundamentalismo) e políticos (como o nacionalismo e o fascismo). Muitas das críticas de filósofos dirigidas à religião de uma maneira geral nos remetem a esse tipo de fenômeno social,

já explorado em autores como Spinoza, Marx, Nietzsche, Freud e Russell, que viam no comportamento subserviente do rebanho de crentes a mais nítida expressão da opressão e manipulação do ser humano através de emoções coletivas como o medo e a insegurança. Não é à toa que tantos filósofos e filósofas (no Brasil, podemos pensar nos mais midiáticos, tais como Djamila Ribeiro, Viviane Mosé, Márcia Tiburi, Luiz Pondé, Mário Sérgio Cortella e Leandro Karnal) estão sendo tão solicitados e visibilizados nesse momento crítico.

4. Adentrando agora nossa realidade concreta, muitos pontos têm me chamado atenção, do ponto de vista ético. Um deles é o tema dos “passaportes da imunidade”, que seriam obtidos por indivíduos já comprovadamente imunes. A próprias revistas médicas têm levantado este debate. Qual sua visão sobre o assunto?

Os chamados “passaportes da imunidade” (immunity passports) seriam certificações emitidas por órgãos competentes de países ou entidades transnacionais de que uma pessoa contraiu e se recuperou da COVID-19 ou, quando isso for exequível, de que foi efetivamente vacinada contra esse novo coronavírus. Alguns países como Alemanha, Reino Unido, Chile e EUA já estão implementando ou deliberando sobre a iminente adoção dessas certificações, sobretudo para controlar a entrada de pessoas vindo do exterior e que deveriam eventualmente ficar em quarentena (pelo tempo médio recomendado de 14 dias). Na verdade, para obter vistos para entrar em vários países, já são exigidos hoje os comprovantes de vacina por uma questão de vigilância sanitária e de saúde pública, por isso os defensores dessa ideia enfatizam que, ao final e ao cabo, trata-se apenas de implementar políticas públicas através de licenças baseadas em imunidade (immunity-based licenses). Como todo processo decisório em bioética e ética aplicada, podemos pensar em aspectos positivos (tais como o melhoramento estrutural do sistema de saúde pública e as garantias constitucionais de liberdades e direitos individuais) e negativos (tais como a estigmatização, sobretudo de grupos minoritários e já tradicionalmente vitimizados, e as desigualdades e injustiças decorrentes de gestão pública que privilegia os segmentos economicamente privilegiados para o acesso à saúde) para a implementação de tais medidas. Afinal, decisões dessa envergadura nos remetem à pergunta programática “como devemos viver?”, formulada nas mais diversas tradições religiosas e codificações da conduta humana de povos e civilizações antigas, sendo que os diferentes modelos de ética e de filosofia moral buscaram através dos séculos os mais variados argumentos que pudessem justificar racionalmente os princípios da ação moral e do bem viver. A bioética e a ética aplicada

revisitam, destarte, o que hoje rotulamos como “politicamente correto”, o multiculturalismo e a chamada condição pós-moderna em que se encontra a nossa hodierna aldeia global, quando subscrevemos às recomendações da OMS, da UNESCO e da ONU, por exemplo, para asserir que a vida humana é preciosa e que os direitos humanos (incluindo o direito à água potável, à saúde pública e à educação básica) devem ser respeitados universalmente, ou para condenar o assassínio (a morte violenta perpetrada contra seres humanos), assim como o estupro, o roubo, o racismo, o machismo e a homofobia são moralmente errados e podemos justificar nossos posicionamentos de forma racional, objetiva e cognitiva, sem necessariamente recorrermos a crenças religiosas (por exemplo, aos Dez Mandamentos da tradição judaico-cristã) ou a argumentos metafísicos (tais como a imortalidade da alma humana ou a liberdade).

5. Outro assunto que vem ganhando corpo é a unificação das filas do SUS e dos serviços privados de saúde no atendimento a pacientes da Covid-19. Pelo que leio, isso já está ocorrendo em muitos hospitais, mas há resistências. O próprio ministro da Saúde defendeu, recentemente, que os leitos privados não podem ser “tomados”. Qual sua visão sobre o assunto? Como a filosofia e a bioética podem nos ajudar a entender esta questão?

Como todos sabemos, não há consenso entre filósofas e filósofos sobre os mais variados assuntos. Mas mesmo os desacordos epistêmicos entre pares (isto é, que pessoas devidamente qualificadas possam estar em desacordo) devem ser regrados através da racionalidade, que envolve o bom senso (o chamado senso comum), a clareza, a objetividade e a coerência dos argumentos (por exemplo, não podem contradizer os princípios lógico-semânticos básicos) e a aplicabilidade desses argumentos a casos concretos. No caso da racionalidade prática da bioética e questões afins, acredito que devemos levar em conta a nossa realidade social. O Brasil, como todos sabem, é um dos países mais desiguais do planeta, tendo sido o último a abolir a escravidão, após um longo processo violento de colonização e autoritarismo sistêmico, lembrando que a nossa democracia constitucional tem pouco mais de 30 anos (o regime militar perdurou de 1964 a 1985 e a Constituição cidadã é de 1988). A universalização efetiva da saúde pública no Brasil através do SUS, assim como da educação básica (escolas públicas de ensino fundamental e médio), é a meu ver, uma das maiores e incondicionais prioridades de nossas políticas de Estado. Vale ressaltar que políticas públicas de Estado não se confundem com políticas de governo, por exemplo, vinculadas a partidos que estejam circunstancialmente no poder: o governo atual não deve desmantelar políticas de Estado comprometendo o futuro de milhões de brasileiras e brasileiros, ameaçando a qualificação do SUS e de nossas redes públicas de ensino, assim como o meio ambiente e a pesquisa científica e acadêmica no País (que inclui as universidades e as instituições públicas de ensino superior). Portanto, embora eu apoie as parcerias público-privadas e reconheça o retorno social dos serviços privados de saúde no País, acredito que seja possível manter e aumentar os investimentos em saúde e educação públicas, em particular no SUS, sem deixar de valorizar as iniciativas privadas, que vale lembrar, devem sempre responder à sociedade enquanto shareholders e stakeholders através de condutas éticas condizentes com a responsabilidade corporativa social. O Brasil entrou nos manuais de Business Ethics no mundo inteiro por causa dos péssimos exemplos de empresas brasileiras como a Petrobras, a Odebrecht, a Vale do Rio Doce, a JBS e tantas companhias e empreiteiras envolvidas em malfeitos, vinculados ou não a governantes corruptos. Assim como a bioética, a ética empresarial vinculada a redes hospitalares e a prestadores de serviços privados de saúde no País também integram o grande campo filosófico da ética aplicada, que inclui também a ética ambiental e a ética da engenharia, tecnologia e inteligência artificial. Para a questão específica dos leitos privados em plena pandemia, temos aqui o clássico problema da triagem em bioética, que parte do princípio de que os profissionais de saúde têm o dever de tratar, incluindo o consentimento informado, expresso e implícito, o treinamento especial, a reciprocidade e os códigos profissionais de conduta ética (como o juramento hipocrático). No caso atual da pandemia da COVID-19, os profissionais de saúde têm, portanto, o dever de tratar todos, independentemente de serem cobertos por um plano de saúde, pela rede pública ou sistema hospitalar provado, utilizando os critérios objetivos para determinar a prioridade no atendimento de pacientes em serviços de emergência hospitalar, sistematizando a classificação de pacientes de acordo com a sua urgência médica. Na prática, tudo isso se torna muito mais complicado e sofrível, quando muitas cidades hoje que já atingiram o limite de sua capacidade hospitalar e não dispõem mais de leitos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) da rede pública, engendrando esses dilemas bioéticos, que se tornam verdadeiras “escolhas de Sofia”. Ora, sabemos que somente 44% dos leitos de UTIs do País estão no SUS, responsável pela assistência médica de três quartos da população brasileira e que corre o maior risco de sobrecarga por conta do novo coronavírus. No Brasil, apenas 25% da população tem convênio médico e acesso à rede privada, sendo que os demais dependem exclusivamente da rede pública. Se a vida humana está sendo priorizada acima de tudo e de todos, eu não hesitaria em defender a alocação de leitos privados para atender pacientes do SUS, sempre respeitando os critérios éticos evocados acima.

6. Gostaria agora de sair um pouco do contexto médico e hospitalar da pandemia e propor olhar para a sociedade como um todo. Diariamente, estamos nos confrontando com decisões individuais (como usar uma máscara ou evitar aglomerações) que tem um impacto no coletivo. Isso sempre ocorre, mas agora, na pandemia, se tornou mais evidente. Como você enxerga essa tensão entre o individual e o coletivo, no Brasil?

O Brasil tem sido conhecido pela sua terrível confusão entre o público e o privado, em nível das atitudes individuais de seus cidadãos e em nível coletivo de seus governantes, parlamentares, magistrados e pessoas públicas. Historiadores, filósofos sociais e cientistas políticos têm mostrado que um dos legados do autoritarismo de nossa formação como povo foi justamente o patrimonialismo, referindo-se a uma forma de poder na qual as fronteiras entre as esferas pública e privada ficam tão turvas que acabam confusas. Como disse Lilia Schwarcz, o patrimonialismo que tinha uma origem burocrática weberiana acaba por designar, no imaginário autoritário brasileiro, “o uso de interesses pessoais, desprovidos de ética ou moral, através de mecanismos públicos.” Assim, a própria formação de nossas elites (a bizarra República de Bachareis que somos até hoje), desconectada dos laços culturais que nos ligavam à metrópole europeia (Portugal), substituiu a hegemonia estrangeira através da criação de faculdades de Direito (Recife e São Paulo, as mais antigas do País) que supostamente seriam responsáveis ​​pelo desenvolvimento do pensamento brasileiro e pela criação de uma nova nação, acabaram promovendo uma sociedade racializada (daí o mito da “democracia racial”) e paternalista, tendo o darwinismo social e as escolas evolucionistas raciais (eugenia e ideologias de branqueamento da população miscigenada) como seus grandes modelos de análise após a abolição da escravidão e o nascimento de uma “república”, no final do século XIX. De fato, o patrimonialismo no Brasil se tornou a forma pública de um ethos patriarcal, hierárquico e autoritário, no qual tremendas desigualdades sociais e econômicas revelam uma conjugação interseccional de racismo estrutural com uma sociedade dominada por quem detém o poder e o dinheiro: “sabe com quem está falando?” Assim, observamos que as decisões individuais em tempos de pandemia sobre o uso público de uma máscara ou a prática procedimental de evitar aglomerações variam muito de acordo com cada região e o nível de educação da população, por exemplo, entre os mais pobres e com menos escolaridade há sempre a ideia de que tudo isso deve ser mais uma medida autoritária do governo (o que é público é sempre ruim), assim como não me surpreende que o Rio Grande do Sul esteja se saindo tão bem com relação a tais medidas de prevenção, na medida em que as pessoas parecem subscrever a tais procedimentos como algo que visa ao seu próprio bem-estar.

7. No início da pandemia, alguns políticos e economistas argumentaram que “a economia não pode parar”, em crítica aos defensores das medidas de fechamento do comércio e isolamento social. Como a filosofia – e, em especial, bioética – podem avaliar esse dilema entre “saúde” e “economia”?

Entendo que essa seja uma equação complexa, na medida em que sem vida humana não temos economia nem mercado, mas também sem dinheiro não podemos adquirir bens, incluindo medicamentos e insumos que são exigidos para manter nossos sistemas de saúde, públicos e privados. O ex-ministro da saúde estava fazendo um excelente trabalho, assim como os governadores, prefeitos e secretários de saúde de várias partes do País, e foi somente graças à resposta imediata desses gestores e dessas instâncias de gestão pública que evitamos um cenário muito pior do que o quadro atual que temos hoje no Brasil, onde foram adotadas medidas sérias de higienização, isolamento e distanciamento social logo no início de março. Infelizmente, temos assistido a um embate midiático entre um presidente despreparado que desprezava a gravidade da pandemia e lideranças políticas que defendiam medidas severas de fechamento do comércio e de isolamento social, traduzindo uma oposição entre seguidores do negacionista Donald Trump (o nosso presidente é, como todos sabem, o seu maior e mais fiel seguidor no planeta) e os seguidores da OMS e da comunidade médico-científica mundial, que sempre alertavam para os perigos de uma grande crise epidemiológica global. A filosofia e a bioética têm contribuído para qualificar esse debate entre saúde e economia, assim como médicos, cientistas e pessoas com senso crítico, como temos assistido, lido e ouvido em vários eventos televisivos, editoriais, reportagens, debates, podcasts, vídeos, blogs e postagens nas redes sociais. Hannah Arendt defendia o juízo político embasado na reflexividade de quem julga uma determinada situação: a banalização do mal consiste justamente em esvaziar essa racionalidade dos juízos reflexivos, como se deu com os burocratas e carrascos nazistas que diziam que apenas seguiam ordens, sem demonstrar nenhum senso crítico de reflexividade. Infelizmente, os adeptos de seitas fundamentalistas e os apoiadores de governantes desvairados não cultivam esse senso de reflexividade e de julgamento crítico, que como já dizia Descartes, está ao alcance de todo ser humano, ao menos de toda pessoa com um cérebro funcional.

8. Recentemente, o filósofo francês Michel Maffesoli escreveu artigo apostando que o mundo sairá melhor da pandemia. Na visão de Maffesoli, a pandemia nos fará reencontrar valores esquecidos, como solidariedade, afeto e alteridade. É uma visão otimista. Por outro lado, me lembro de Adorno, dizendo que, depois de Auschwitz, a educação é impossível. É evidente que  uma pandemia é um fenômeno muito distinto de um governo totalitário, mas tenho a sensação que a pandemia está expondo o que há de mais visceral na nossa sociedade. Pensando nisso, de que maneira você acha que a pandemia afetará nossa sociedade? Sairemos “melhores”? Aliás, em que sentido é possível falar em “melhor” nesta situação?

Eu tendo a ser muito cético com relação a sermos melhores ou piores do que já fomos no passado – essa era a postura nietzschiana adotada por Michel Foucault, que muito marcou a minha formação na pós-graduação. Mas acredito que, sem dúvidas, podemos mudar o mundo para melhor, assim como acreditamos que é melhor vivermos sem racismo e num mundo mais igualitário, com mais inclusão social e mais justiça e igual liberdade para todos. O meu ceticismo metodológico consiste em duvidar que tenhamos uma fórmula mágica ou que alguma teoria ou concepção filosófica possa resolver todos os problemas da Humanidade. Eu conheci o Professor Maffesoli em Porto Alegre, através do colega e amigo Juremir Machado da Silva, e pude debater com ele e conversar bastante, em mais de uma ocasião, sobre vários assuntos, inclusive sobre a sua interessante aplicação de conceitos nietzschianos à sociologia política e à sua análise do tribalismo brasileiro. Eu admiro muito Adorno e entendo o que quis dizer sobre o futuro sombrio da educação num mundo pós-totalitário. Mas embora continue cético com relação a utopias sociais, acredito que devemos continuar lutando por mais reconhecimento social e mais esclarecimento em nossos sistemas educacionais. Nesse sentido, eu acredito que o futuro de um Brasil melhor depende inteiramente de maiores investimentos na área da educação, desde a qualificação de nossas escolas públicas (em nível de ensino fundamental e médio) até as instituições de ensino superior e os programas de pós-graduação. Portanto, seria precipitado dizer que depois da pandemia as pessoas estarão mais compromissadas com um projeto social de bem comum para o nosso país, dedicando-se mais à tarefa de promover a educação e o igualitarismo social em nossa sociedade. Mas eu espero que sim, torcendo para que não seja apenas um wishful thinking – ah, se o Brasil fosse como a Noruega, a Suécia ou algum país que tem um excelente sistema público de educação, e por tabela, um excelente sistema público de saúde e melhores condições de vida para a maior parte de seus cidadãos.

10. Gostaria de finalizar nossa conversa lhe agradecendo a atenção e deixando um espaço livre de manifestação sua, caso haja algo que não abordamos e você gostaria de mencionar ou reforçar.

Se fosse para usar poucas palavras, como no Twitter, usaria apenas duas hashtags:

#FiqueEmCasa #ForaBolsonaro

Posso justificá-las sem nenhuma polarização ideológica e sem nenhum compromisso com quaisquer plataformas político-partidárias (não sou e nunca fui filiado a nenhum partido). O problema brasileiro que ficou mais evidenciado com essa crise da COVID-19 foi, decerto, o da exacerbação da polarização, já existente, entre bolsonaristas (apoiadores do atual presidente) e o restante da população do Brasil, em torno do negacionismo do primeiro, que desafiou a OMS e toda a comunidade médico-científica internacional (exatamente como fazia o seu role model estadunidense Trump), inclusive promovendo aglomerações desnecessárias e a utilização de medicamentos sem nenhum embasamento científico, através de fake news e sensacionalismo midiático. O chamado bolsonarismo é um termo genérico usado para designar uma plataforma populista que se autodeclara de “direita” (embora a maior parte dos conservadores e liberais sérios a repudiem), antipetista e sistematicamente antagonizante com todas as ideias, opiniões e ideologias de “esquerda”. Uma das mais salientes características do bolsonarismo é o seu personalismo messiânico vinculado à pessoa do atual presidente, ao ponto de predispor que seus adeptos mudem de partido se ele assim o fizer –o que de fato está acontecendo com vários bolsonaristas que estão defendendo currais eleitorais ou migrando para o “centrão”, sobretudo depois da exoneração de um aliado importante como foi o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro e da crise com a Polícia Federal. Todo mundo sabe que o guru ideológico do bolsonarismo (juntamente com significativos segmentos dos militares, neoliberais econômico-pragmáticos e evangélicos ultraconservadores) sempre foi o Olavo de Carvalho, um autodidata que reside em Richmond, Virginia (EUA, por coincidência epicentro do moral majority e de movimentos fundamentalistas naquele país) e que promoveu uma verdadeira guerra cultural (como as culture wars importadas dos EUA) contra o globalismo, o marxismo cultural, o feminismo e quaisquer ideias filosóficas supostamente “de esquerda”. Como eu sempre rechacei uma “esquerda burra” (por exemplo, da patrulha ideológica lulista) assim como uma “direita burra” (elites que defendem ainda hoje o sistema de capitanias e um sistema de castas no Brasil) em nome de valores democráticos –muitos deles comuns a conservadores, liberais, socialistas e centristas que não sucumbem ao obscurantismo e à polarização radical de ideologias e posições filosóficas, tenho me dedicado ao debate público de concepções de ética, filosofia social e política e à promoção do pluralismo na filosofia e opinião pública brasileiras. No Brasil não temos, decerto, a mesma coerência ideológica ou partidária de nações politicamente mais desenvolvidas do que a nossa (somente uma pessoa mal informada ousaria ainda associar o nazismo alemão ou o fascismo italiano ou espanhol à esquerda e não à direita). Mesmo assim, para um país que nunca conheceu o republicanismo, o liberalismo ou um movimento revolucionário exitoso, o Brasil conheceu muito bem (e apoiou) movimentos populistas de direita e de esquerda (por exemplo, o varguismo, o lulismo e o bolsonarismo). O que o nosso povo mais necessita é de educação pública de qualidade, de forma que as nossas crianças e adolescentes possam aprender a cultivar valores ético-morais universalizáveis (como a liberdade, a igualdade e a solidariedade cívicas) e valorizar a riqueza natural e cultural de nosso país, desenvolvendo seus projetos de vida pessoais de forma saudável, autônoma e segura.


*Felipe é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS. Você pode contatá-lo pelo [email protected] 

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