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Do que falamos quando falamos da Covid-19? 

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Do que falamos quando falamos da Covid-19? 

Existe uma abordagem jornalística chamada Jornalismo de Soluções. Tendo como princípio uma “cobertura rigorosa e baseada nas evidências das respostas a problemas sociais”, seu objetivo é fazer do jornalismo uma instituição com potencial para a transformação social. Isso envolve, de modo importante, a compreensão acerca do papel das próprias pessoas neste processo: municiar leitora ou leitor com conhecimentos concretos e reais, amparados nos seus contextos reais de vida.

A cobertura da Covid-19 é um terreno farto de desafios e de possibilidades para o Jornalismo de Soluções. Por um lado, a pandemia gerou um noticiário notavelmente marcado pela discussão de soluções práticas para a vida cotidiana de todos nós. Preciso usar máscaras? Que medidas de segurança devo adotar se precisar sair de casa? Que tipo de ajuda eu posso oferecer para minha vizinhança? Essas e inúmeras outras questões vêm sendo amplamente abordadas pelos meios de comunicação, com impacto real na vida de todos nós.

Por outro lado, a persistência da pandemia também fez do noticiário uma overdose de informações pesadas, tristes, confusas e não raro contraditórias. Todo dia, somos confrontados com novos números, recomendações, hipóteses, estudos e interpretações. Um dos maiores exemplos disso são as atualizações diárias com casos confirmados e mortes pela Covid-19. Por estarmos, ainda, em uma curva ascendente, é normal que toda semana tenhamos algum tipo de novo recorde triste, o que gradualmente parece nos amortecer ainda mais perante o mundo.

A questão jornalística que se impõe, portanto, é a seguinte: como seguir noticiando a pandemia? Muitas das notícias são tristes, o que gera impacto psicológico, sobretudo a longo prazo. Por outro lado, não parece adequado simplesmente parar de noticiar a pandemia, ou, pior, deturpar a realidade com supostas notícias boas, como defende o governo brasileiro. Como, portanto, manter o interesse do público? Como seguir fornecendo informações úteis para a realidade de cada leitora e leitor?

“Limitar-se a jogar informações para as pessoas é uma forma poderosa de frustrá-las e aliená-las”, escreveu Liz Neeley, ainda em março, no excelente artigo intitulado Como falar sobre o coronavírus. “Eu jamais saberei de que maneira minha divulgação científica pode ser a melhor possível se eu não souber em que minha audiência está pensando ou com o que está preocupada”.

Essa observação ganha especial sentido quando pensamos na cobertura da Covid-19 no Brasil. Além da evidente diversidade de contextos de leitores (qual é o sentido de dizer que “é importante ficar em casa” para tantos cidadãos que nem tem uma casa?), de que modo é possível estabelecer um canal de comunicação horizontal com o público? Quem é, afinal, o público, e no que ele acredita?

A cobertura da pandemia explicita uma crise social do próprio conhecimento

Se há um ponto de conforto para jornalistas imersos no desafio de divulgar dados científicos acerca de uma pandemia é o fato de que este desafio se origina em um problema cujas raízes ultrapassam o próprio terreno do jornalismo. Além das dificuldades em encontrar o tom e a maneira adequadas de comunicar números e hipóteses, o jornalismo de ciência também enfrenta o desafio de abrir diálogo com públicos nos quais, gradualmente, parece se sedimentar uma espécie de ceticismo com pressupostos básicos da comunicação.

“Como especialistas em divulgação científica vêm dizendo há anos, o mero ato de jogar fatos científicos a partir de uma posição superior não é suficiente: as pesquisas indicam que o mais importante é dar início a um diálogo”, escreveu Samantha Yammine em artigo sobre a cobertura da pandemia na Nature. “É particularmente importante compartilhar conhecimentos científicos acessíveis através das mídias sociais, porque trolls e conspiracionistas disseminam sementes da dúvida e da desinformação, que podem ter perigosas consequências”.

Os dados são assustadores. Como mostrou a jornalista Patrícia Campos Mello na Folha de S. Paulo, um estudo descobriu que canais do YouTube dedicados a veicular fake news sobre a Covid-19 são quase três vezes mais acessados do que contas comprometidas com notícias verdadeiras. Outro estudo, realizado nos Estados Unidos, chegou a dados similarmente preocupantes: quase metade de contas do Twitter que rotineiramente postam sobre Covid-19 são provavelmente perfis automatizados (bots, ou robôs).

É importante notar como esses perfis falsos e movimentos conspiratórios se ancoram em uma situação que é relativamente nova para a própria ciência. Sobre esse tema, Aleszu Bajak e Jeff Howe assinaram, em 14 de maio, um impressionante artigo no New York Times.

“Mais de 10 mil trabalhos acadêmicos foram publicados sobre a Covid-19 desde janeiro, sendo 3,5 mil preprints [estudos sem revisão]. Em comparação, somente 29 estudos foram publicados antes que a epidemia de SARS [em 2003] terminasse”, escrevem. Os autores analisam este tumultuado ambiente de divulgação de ciência que se instalou em tão curto período e concluem que as incertezas – normais no processo de construção do conhecimento científico – foram utilizadas no ambiente virtual por grupos extremistas da direita norte-americana para desorganizar os debates sobre a pandemia.

“O que a cascata de hábitos de compartilhamento revelam, com base em nossa análise de quase 900 preprints sobre a Covid-19, é um conto sobre duas faces da internet: uma altamente ideológica, na qual a ciência é usada como alavanca ideológica, e outra que consiste no tipo de discussão e debate que é vital para as universidades – e para a democracia”, concluem.

Um bom exemplo deste ambiente de instabilidade ocorreu na última segunda-feira, 8 de maio, quando uma infectologista da OMS ponderou que seriam escassas as evidências de transmissão do SARS-CoV-2 por indivíduos sem sintomas. A declaração foi dada durante uma conversa com jornalistas, e, fora deste contexto, desencadeou grande e rápida repercussão. Nas mãos de críticos da OMS, a afirmação de Maria van Kerkhove ganhou ares de palavra definitiva sobre a transmissibilidade do novo coronavírus, que ainda é alvo de investigações. 

O problema da fala de van Kerkhove parece ter sido uma falta de clareza ao citar um tema tão complexo, o que abriu brecha para uma deturpação de toda a construção do conhecimento sobre a Covid-19. Criticada, a OMS esclareceu que há diferenças entre um indivíduo “assintomático” (que teve contato com o vírus, mas nunca desenvolverá sintomas) e um indivíduo “pré-sintomático” (que está infectado, mas ainda não apresentou sintomas).

Os pré-sintomáticos, tentou-se esclarecer depois, seguem sendo potenciais transmissores do vírus. O dano, porém, já estava configurado. Aqui no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que desde o início da pandemia adota uma postura contrária ao isolamento social e de menosprezo à Covid-19, abraçou o caos gerado, usando-o para desqualificar a OMS. 

Ciência, confiança e dúvida

Se é verdade que o uso político de estudos por grupos de extrema-direita se ancora num ambiente político crítico, também é verdade que a maior divulgação de preprints joga luz sobre como a ciência – e talvez em especial as ciências médicas – são construídas. De fato, a enormidade de estudos com que o jornalismo vem se deparando nos últimos meses atesta as limitações do conhecimento em Saúde e explicita o quão difícil – e recente – é o projeto da chamada Medicina Baseada em Evidências.

“Para sermos justos, a história da medicina em direção ao rigor científico não é muito longa”, escrevem Jeanne Lenzer e Shannon Brownlee no ótimo artigo A ciência da pandemia fora de controle. “A medicina tem uma tradição centenária de ser menos guiada por uma ciência cuidadosa e mais por observações e opiniões pessoais, especialmente de médicos famosos”.

As autoras revisam o esforço, realizado nas últimas décadas, em construir modelos de estudos confiáveis e reprodutíveis para avaliar intervenções básicas, como medicamentos e procedimentos cirúrgicos. Essa tentativa, porém, é recheada de erros, que se amplificam e ganham novos contornos em uma situação de urgência sanitária. “Especialmente em tempos de crise, pesquisas estatisticamente insignificantes, metodologicamente frágeis e até mesmo fraudulentas podem encontrar audiência em pacientes desesperados, médicos crentes e jornalistas desinformados”.

A dificuldade da Medicina em encontrar respostas para os problemas expõe limites e desafios do próprio método científico, mas isso não deve ser razão de descrédito da Ciência. Pelo contrário: talvez a pandemia seja uma oportunidade de aproximar a Ciência do público, não raro menosprezado como “leigo”.

É nesse sentido que Rachel Ankeny escreve o brilhante ensaio Ciência na era do ceticismo, publicado na Griffith Review. “Para haver confiança, é necessário haver condições de respeito mútuo. Infelizmente, uma crescente falta de respeito pelo público não-científico é frequentemente evidente tanto nas mídias popular e social como entre cientistas”, escreve ela.

A autora vai fundo no problema do ceticismo público com a ciência e em parte culpa o modo simplificado com que a ciência geralmente é vista na sociedade. Ela critica a preponderância de “narrativas triunfalistas” sobre “grandes descobertas” e “verdades” que ofuscam o próprio funcionamento da Ciência, baseado em pessoas reais que seguem métodos e processos que podem ser falhos ou, mesmo quando adequados, não chegar a resultados satisfatórios. Como parte da solução para esta crise de confiança, ela defende, em suma, maior envolvimento do público.

“Uma parte essencial para se descobrir um melhor caminho para a ciência é definir objetivos sociais de maneira apropriada: mais que restabelecer a ‘confiança’ na ciência, nós poderíamos, ao invés disso, nos focar em aumentar o engajamento das pessoas com a prática científica”, defende. “Inúmeros estudiosos mostraram, de modo muito convincente, que o conhecimento científico possui um importante sentido que é produzido, conjuntamente, por cientistas e por não-cientistas, no contexto de uma sociedade ampla”.

O paradoxo de Stockdale

Tudo isso traz de volta o início da discussão: como seguir noticiando e falando de uma pandemia que já está, para muitos, se tornando um assunto saturado, pesado e cansativo? Muitos jornalistas esboçam indiretamente suas respostas quando preparam, rotineiramente, um novo material a ser entregue, mas essas questões serão certamente melhor compreendidas enquanto pudermos, todos nós, manter um canal de comunicação aberto. É por isso que esta coluna possui um endereço de email disponível.

O cenário, afinal, é de mudanças muito rápidas. Nesta primeira semana de maio, por exemplo, após muitas críticas, os autores retiraram o estudo publicado na Lancet que associava o uso de hidroxicloroquina a complicações cardíacas. A comunidade científica observou que não havia informações suficientemente claras sobre alguns pacientes e hospitais recrutados pelos pesquisadores, o que tornava o resultado final pouco confiável. Esse estudo havia sido mencionado na nossa coluna do dia 26 de maio.

A repercussão deste caso é particularmente útil para pensarmos as relações entre jornalismo e ciência. Por um lado, o estudo realmente tinha falhas, as quais tornavam seu resultado inconsistente. Por outro, o caso em quase nada alterou a situação do hidroxicloroquina. É verdade, sim, que o impacto do estudo causou interrupção temporária em um braço do Solidarity, estudo conduzido no âmbito da OMS, mas o fato é que muitos outros estudos seguem sendo conduzidos e concluindo que este medicamento não é eficaz contra o SARS-CoV-2.

O erro de um estudo, nesse caso, não alterou o rumo geral do conhecimento sobre as terapêuticas para a Covid-19, que seguem sendo estudadas. Mas, talvez mais importante que isso, este erro não deveria se tornar um atestado de fraqueza ou descrédito da Ciência, sobretudo num contexto onde o tipo de conhecimento que ela fornece é tão fundamental e urgente. Assim, se a Ciência se vê fragilizada em uma esfera pública cética e hostil ao diálogo, talvez caiba a ela própria a tarefa de revisitar seus próprios fundamentos para conseguir reafirmar sua importância e legitimidade no mundo atual.

“Com tantas noções não científicas espalhadas na internet, particularmente durante a pandemia da Covid-19, eu sinto fortemente que nós, como cientistas, devemos reforçar as virtudes anônimas do método científico, tal como manter uma mente aberta, preparada para modificar nossa visão quando chegamos a um entendimento mais profundo acerca de um assunto ou quando somos iluminados por novos dados ou observações”, defendeu Jim Al-Khalili em um debate na Nature. “Uma característica que muitos, na sociedade em geral, veem erroneamente como uma fraqueza, é a maneira como os cientistas valorizam a dúvida.”

Liz Neeley, no artigo citado no início deste texto, dá exatamente isto como dica aos jornalistas envolvidos com a cobertura da pandemia: aceitem o que não sabem e se permitam dizer o que não foi possível averiguar. Isso é válido para o jornalismo, para a ciência e para todos nós.

Ela finaliza suas dicas citando o paradoxo de Stockdale. O paradoxo é uma referência a James Stockdale, militar estadunidense que foi mantido prisioneiro e repetidamente torturado durante a Guerra do Vietnã. Depois de libertado, contou que somente conseguira sobreviver por encontrar um balanço interior entre o realismo (sabia que seria torturado muitas vezes) e o otimismo (igualmente sabia que precisava pensar em um desfecho bom para sua situação). 

Quando falamos de Covid-19, portanto, estamos falando de todas estas questões. Noticiar a Covid-19 passa por encontrar uma harmonia entre a dura divulgação sobre a pandemia, o foco naquilo que cada um de nós pode fazer, e a necessidade de se manter um diálogo compromissado com a realidade. Porém, pensando nos abismos sociais e econômicos existentes no Brasil, a cobertura tende a se tornar mais rica em soluções à medida que o jornalismo entende o que um trabalhador ou trabalhadora informal, sem salário e com uma ajuda emergencial de R$ 600 (que ainda nem chegou para muita gente), pensa e sente e sonha quando ouve sobre um vírus que já deixou mais de 35 mil mortes no seu país.

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