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Imunidade populacional na Covid-19: um longo caminho pela frente

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Imunidade populacional na Covid-19: um longo caminho pela frente

Ao longo de maio, tivemos importantes resultados de testes da imunidade na Covid-19 em nível populacional. Estes testes são fundamentais para as políticas públicas de combate à pandemia, pois fornecem um vislumbre sobre o real avanço do vírus em uma comunidade (cidade, estado ou país). Sem isso, é impossível decidir sobre como seguir agindo, coletivamente, frente à pandemia.

Para isso, no entanto, precisamos entender o que são os testes de imunidade e qual é o significado dos seus possíveis resultados. Em um teste de imunidade, pega-se uma amostra do sangue de um indivíduo e procura-se por um anticorpo contra um invasor (no caso da pandemia de Covid-19, um anticorpo contra o SARS-CoV-2). Os chamados “testes rápidos”, que recentemente foram aprovados para serem realizados em farmácias, são testes imunológicos.

Quando o teste tem resultado “positivo”, isso indica que o indivíduo tem anticorpos. Ou seja, em algum momento do passado, ele esteve contaminado com o SARS-CoV-2 e desenvolveu uma resposta imunológica adaptativa adequada – em outras palavras, gerou anticorpos. (Se já dispuséssemos de uma vacina contra o SARS-Cov-2, um teste imunológico positivo poderia igualmente indicar que o indivíduo foi vacinado, e não necessariamente contaminado).

Quando não encontramos anticorpos no sangue coletado, o resultado é “negativo”. Isso pode significar muitas coisas. A mais provável é que esse indivíduo não tenha anticorpos simplesmente por nunca ter estado contaminado. Mas também é possível que ele, apesar de contaminado, não tenha desenvolvido uma resposta imunológica eficiente, ou seja, não formou anticorpos. Uma terceira possibilidade, ainda, é que ele tenha se contaminado, mas ainda não tenha tido tempo de formar anticorpos.

Além de todas essas possíveis leituras, existem limitações técnicas inerentes aos próprios testes. Para achar um anticorpo em uma gota de sangue, precisamos de produtos específicos para realizar o teste. Um anticorpo é uma estrutura proteica complexa de aproximadamente 10 nanômetros (10 x 10-9m), em média. Para termos uma ideia, um anticorpo é menor do que o diâmetro das membranas das nossas células.

Para achar esta molécula, usamos técnicas de laboratório baseadas em características biofísicas da mesma, e essas técnicas são dependentes de insumos bioquímicos altamente especializados, muitas vezes caros, e nem sempre disponíveis. Além disso, o SARS-CoV-2 é um vírus novo, de modo que ainda estamos aprendendo qual é a melhor forma, tecnicamente falando, de encontrar seu anticorpo. Estamos todos aprendendo, não é mesmo?

Vale observar que essas incertezas técnicas – um pouco angustiantes em uma urgência sanitária – são inerentes a qualquer teste de laboratório. Nenhum exame fornece um resultado 100% confiável. Isso é tão fundamental que todo teste é classificado de acordo com sua precisão, que é medida, principalmente, através dos parâmetros de sensibilidade (capacidade de identificar corretamente um indivíduo com a doença) e especificidade (capacidade de identificar corretamente um indivíduo sem a doença).

Um teste, em suma, é uma ferramenta de acesso à realidade. Em outras palavras, quando fazemos um teste sobre a presença de um anticorpo, nós não estamos vendo o anticorpo de modo imediato. Nós estamos fazendo uso de um meio técnico para averiguar algo do mundo concreto.

Assim, os resultados são sempre probabilidades. Todo teste tem uma chance, maior ou menor, de indicar um resultado positivo (que pode ser verdadeiro positivo ou falso positivo), do mesmo modo que pode indicar um resultado negativo (que igualmente pode ser verdadeiro negativo ou falso negativo). Esta tétrade combinatória foi estudada por Epiteto.

Ter o anticorpo significa estar imunizado?

Como acabamos de ver, um teste pode ser algo bastante complexo. Além das próprias limitações técnicas que todo teste possui, seu resultado sempre deve ser interpretado de acordo com o contexto clínico do indivíduo. (É por isso que se repete exaustivamente o mantra de que um médico ou uma médica não devem sair pedindo exames indiscriminadamente para qualquer paciente, sob o risco de não saber o que fazer com os resultados.)

Mas vamos agora supor que você fez um teste imunológico para a Covid-19. Isso pode ter ocorrido em uma farmácia, ou em uma empresa, ou em sua casa (caso você tenha sido um dos sorteados pela Universidade Federal de Pelotas). Vamos agora supor que o teste tenha tido resultado positivo, e vamos aproveitar e supor que, apesar de todas as limitações do teste, este é um verdadeiro positivo, isto é: você realmente tem, em seu sangue, anticorpos circulantes contra o SARS-CoV-2. Isso significa que você está imune à Covid-19?

Até agora, as evidências indicam que a melhor resposta a essa pergunta é: provavelmente sim, pelo menos por um tempo. O zelo envolvido nessa resposta se deve a todo um outro universo de questões que precisam ser ponderadas quando pensamos em um teste de imunidade. Isso acontece porque, além de todos os desafios envolvidos na realização e interpretação de um teste imunológico, a resposta com a qual lidamos placidamente até agora (“ter ou não ter um anticorpo”) pode não ser, também ela, muito simples.

Um anticorpo é uma molécula complexa produzida em resposta a uma infecção. Ele é construído a partir de um pedaço do vírus que foi apresentado ao sistema imune adaptativo, e é a essa porção do vírus que ele pode se ligar. Dito de outra forma, esse pedaço do vírus (que recebe o nome de epítopo) funciona como uma espécie de isca ou ímã: o anticorpo é formado para se acoplar única e exclusivamente ao epítopo a partir do qual foi gerado, pois compartilha características biofísicas com esta parte do vírus.

Isso tudo pode ser (e é) bastante complexo, mas a mensagem principal aqui é: nós nem sempre formamos um único tipo de anticorpo contra um mesmo vírus. Fiquemos no exemplo do SARS-CoV-2: o código genético deste vírus é capaz de gerar 29 proteínas, muitas das quais são usadas para formar sua estrutura. Assim, quando nosso corpo apresenta um epítopo do SARS-CoV-2 ao sistema imune adaptativo, ele está estimulando a formação de um anticorpo que só poderá atuar contra uma pequena parte do vírus, e não contra “todo o vírus”.

Mais do que isso: dependendo do tipo de anticorpo formado (isto é, dependendo do epítopo viral ao qual ele vai se ligar), este anticorpo poderá exercer funções diferentes. Há anticorpos, por exemplo, que somente “grudam” no invasor e ligam uma espécie de luz de alerta. Ao fazer isso, eles estão chamando a atenção das defesas do corpo para este invasor, e assim ajudam na nossa tarefa de eliminá-lo.

Mas há anticorpos que se ligam ao invasor de um modo tão específico e eficiente que acabam por inutilizá-lo. Quando isso acontece, o anticorpo pode impedir que o vírus infecte células – e, ao fazer isso, ele virtualmente controla e inviabiliza a infecção. Estes anticorpos são os famosos anticorpos neutralizantes, tão fundamentais para uma resposta imunológica bem sucedida.

Em busca dos anticorpos da Covid-19

O cenário descrito acima talvez pareça um pouco anárquico demais, mas a realidade não é tão confusa assim. Embora seja verdade que o corpo pode formar anticorpos contra qualquer porção de um patógeno, é igualmente importante observar que ele tem a tendência a formar anticorpos contra aquilo que parece ser mais abundante neste patógeno. Dito de outro modo: aquilo que o corpo mais reconhece como sendo o invasor tende a ser usado como epítopo para a formação de anticorpos contra este invasor.

No caso do SARS-CoV-2, os estudos que encontrei na pesquisa para este artigo mostram que nosso corpo produz anticorpos principalmente contra a proteína S. A proteína S é uma proteína estrutural abundante na superfície deste vírus. Sua abundância provavelmente se deve ao fato de ser usada para invadir as células humanas. Isso ocorre através da ligação da proteína S com a enzima conversora de angiotensina 2, presente em células do sistema respiratório.

(Em tempo: a proteína S recebe este nome do inglês “spike”, “espinho”, pois é esta proteína que confere o aspecto de coroa ao vírus.)

Isso é uma boa notícia, pois, produzindo anticorpos que se liguem à proteína S, estamos atuando diretamente sobre a porção do vírus que têm por função nos infectar. Nesta linha de investigação, um estudo muito interessante foi publicado na Science no dia 13 de maio. Os pesquisadores estudaram quatro anticorpos encontrados no sangue de um paciente infectado e concluíram que todos eles (nomeados B38, B5, H4 e H2) têm função neutralizante. Cada um recebe um nome diferente porque se liga a uma porção diferente da proteína S. Os autores do estudo também descobriram que dois destes anticorpos (B38 e H4) podem atuar simultaneamente, amplificando o poder neutralizador.

Há muitos estudos nessa linha. Um artigo publicado no dia 14 na Cell identifica cinco epítopos do SARS-CoV-2 e mostra que alvos dos anticorpos neutralizantes estão na proteína S. Três dias depois, na mesma revista, um estudo descobriu 14 anticorpos com força neutralizadora, e identificou um deles (denominado BD-368-2) como o mais potente de todos.

Nós poderíamos passar mais alguns parágrafos falando sobre estes e outros resultados, mas o mais importante é ter em mente a importância dos estudos. Descobrir qual é o anticorpo com maior potencial neutralizador abre caminho não apenas para entender e executar melhor os testes de imunidade, mas também para desenvolver estratégias terapêuticas.

Dito de outra forma: sabendo qual é o anticorpo mais eficiente, é possível isolá-lo em laboratório, fabricar cópias suas e então usá-las como tratamento. Esta estratégia – já utilizada em outras doenças – recebe o nome de anticorpos monoclonais, isto é: são feitos clones de uma única linhagem de anticorpo (o que se diferencia da nossa resposta imunológica natural, que, por produzir vários anticorpos diferentes, é policlonal).

Por enquanto, os testes imunológicos esboçam um longo caminho pela frente

Agora que completamos nossa longa jornada pelos desafios de um teste imunológico e pelo universo fascinante dos anticorpos, podemos voltar à primeira frase deste texto. Em maio, tivemos importantes resultados de testes de imunidade em nível populacional. E, no geral, os resultados não foram muito animadores.

Na Espanha – um dos países europeus mais fortemente atingidos pela Covid-19 –, estima-se que apenas apenas 5% da população tenha produzido anticorpos contra o SARS-CoV-2. Na Suécia – país que não optou pela estratégia de isolamento físico –, um estudo apontou que somente 7,3% dos habitantes de Estocolmo teriam sido infectados. Na França, o cenário também é de uma baixa imunidade obtida até agora.

No Brasil, o cenário é similar. Em Manaus, que se tornou uma das cidades brasileiras mais duramente atingidas pela Covid-19, estima-se que 11% da população esteja imunizada. Esta estimativa é do grupo de epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que está liderando um esforço nacional para mapear o cenário da pandemia no Brasil. Uma nova rodada de dados referentes ao Rio Grande do Sul deve ser publicada em breve.

A situação não é muito animadora porque, mesmo considerando que os portadores de anticorpos estejam imunizados, os dados mostram que grande parte da população mundial ainda é suscetível ao SARS-CoV-2. Isso indica que longos períodos de isolamento físico e distanciamento controlado serão necessários até que tenhamos uma vacina disponível ou atinjamos uma imunidade populacional substancial, que muitos estimam em torno de 60%.

Enquanto isso não ocorre, há desafios pela frente. É necessário dispor de testes imunológicos mais confiáveis para evitar os altos números de falso positivos ou falso negativos. Também é fundamental compreender melhor a natureza da ação dos anticorpos que estão sendo encontrados no soro dos pacientes que superaram a doença.

Fora dos laboratórios e hospitais, as incertezas sobre imunidade também podem ter impacto social. Uma reportagem da Scientific American recuperou a história do conceito do que hoje chamamos de passaportes de imunidade, isto é: pessoas que são comprovadamente detentoras de determinados anticorpos, o que as autoriza a sair de casa e executar atividades. Para mencionar apenas um aspecto problemático e sombrio dos passaportes, sabe-se que durante a escravidão, pessoas escravizadas “aclimatadas” a determinadas doenças endêmicas em uma dada região tinham mais valor no mercado porque “durariam mais”.

Devemos pensar nisso sobretudo num cenário arrastado de lenta conquista da boa imunidade populacional. Em sociedades muito desiguais e com fracas redes de amparo ao trabalhador, indivíduos ameaçados pelo desemprego podem se sentir obrigados a se expor ao vírus para contrair a doença, a despeito do risco de morte, e assim desenvolver imunidade para poder retornar às ruas.

“Há certamente um risco de estigmatização e se trata inequivocamente de um privilégio relativamente à permissão de ir e vir”, diz o médico e professor de Filosofia Marco Azevedo, em entrevista concedida para este espaço na semana passada. “O problema é que, após a epidemia, certamente teremos muitas pessoas sem imunidade, especialmente em países ou localidades que se mantiveram eficazmente afastadas dos centros do contágio. A medida, se usada por largo prazo, certamente implicará preconceitos e limitações injustificadas à liberdade daqueles que ficaram protegidos da contaminação. Isso poderá atingir inclusive grupos vulneráveis e pobres, sem protegê-los.”

Por fim, o fim da hidroxicloroquina?

Se você chegou até aqui, queremos mais uma vez agradecer a leitura dedicada 🙂 Por fim, as últimas e importantes notícias da hidroxicloroquina:

No dia 21 de maio, o governo brasileiro se baseou em evidências fictícias para defender a administração deste medicamento em fases iniciais. A situação rendeu um artigo na Nature. “No Brasil, cientistas precisam não apenas combater o coronavírus, mas também a posição anticiência  do governo”, escreveu Barbara Fraser.

A defesa bolsonarista da hidroxicloroquina, que já havia custado o curto período de Nelson Teich à frente do Ministério da Saúde, talvez não pudesse ter vindo em pior momento. Poucos dias depois, circularam dois estudos que reduzem ainda mais as já parcas evidências do remédio no contexto da Covid-19.

O primeiro foi uma revisão sistemática seguida de metanálise, publicado na última edição do Diabetes & Metabolic Syndrome: Clinical Research & Reviews. O segundo, um grande estudo observacional com 96 mil pacientes, publicado no Lancet. Ambos concluíram que não há benefício no uso da hidroxicloroquina. Pior: há inclusive evidência, prevista por pessoas acostumadas ao trabalho com a hidroxicloroquina, de associação do seu uso a um maior risco de complicações cardiovasculares.

Poucos dias depois, veio a público que o contestado estudo francês que dera origem às especulações em torno do remédio havia sido retirado do ar por seus autores. E nesta segunda-feira, a Organização Mundial da Saúde anunciou a interrupção do braço do estudo Solidarity que envolvia a hidroxicloroquina.

Ou seja: embora ainda haja pesquisas sendo conduzidas sobre este tratamento (e seus resultados serão importantes para que haja, cada vez mais, mais evidência disponível) o cenário atual, neste final de maio, indica que a hidroxicloroquina não ajuda no tratamento da Covid-19.

Mas vale lembrar que este não é o fim da droga. Ela segue sendo útil  no tratamento de outras doenças, em especial malária e lúpus eritematoso sistêmico, e pacientes destas patologias têm o direito de seguir tendo acesso ao melhor tratamento possível.


*Felipe é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS. Você pode contatá-lo pelo [email protected] 


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