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Julia da Rosa Simões: Vó certa, nome incerto

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Julia da Rosa Simões: Vó certa, nome incerto

Talvez o que leve uma pessoa a se debruçar sobre a história da própria família seja a necessidade de entender a si mesma.

Para Katja Petrowskaja (1970), uma simples tentativa de apresentação poderia ser o ponto de partida dessa pequena jornada de autoconhecimento: ucraniana nascida em Kiev na época da URSS, portanto ex-cidadã soviética, falante nativa de russo que escreve em alemão para se colocar numa posição de desconforto (vive em Berlim desde 1999), de família judia não-religiosa que tem o sobrenome Stern mudado para Petrovski (proveniente do baixo clero russo-ortodoxo) por um avô que mergulha na clandestinidade durante a Revolução Russa, tem seu livro de estreia sobre a história familiar chamado de romance no Brasil.

Mas a autora do comovente e perturbador Talvez Esther (Companhia das Letras, 2019, com tradução de Sergio Tellaroli) não parte da vontade de explicar essas aparentes contradições, e sim de entender um velado sentimento de perda que sente ao olhar para dentro. É a partir desse “algo me falta”, em que percebe que é possível sofrer mesmo sendo feliz, que Petrowskaja constrói setenta fragmentos de memórias familiares, antes que ela mesma não esteja mais aqui para contá-las, pois percebe que a “História é quando, de repente, não há mais ninguém a quem perguntar, só restam as fontes”.

Fontes podem ser buscadas em lugares físicos: arquivos, memoriais e museus, que Petrowskaja visita com facilidade (em Berlim, Varsóvia, Kiev, Moscou e Salzburgo, entre outros) numa Europa que preserva suas Histórias, mesmo as mais dolorosas como a do massacre de milhões de judeus, dentre os quais seus inúmeros parentes. Ela descobre ou aprofunda episódios fascinantes e duros, como o do tio-avô Judas Stern, que tentou matar o embaixador alemão em Moscou às vésperas da ascensão de Hitler, os detalhes do primeiro casamento do bisavô Oziel Krzewin com a surda-muda Estera Patt ou a passagem do avô Vassili Ovdienko por Mauthausen e Gunskirschen. Mas Petrowskaja não quer que suas descobertas (que inevitavelmente envolvem violência e massacre) nos mergulhem em pesar ou façam com que nos sintamos em eterna dívida. O que ela empreende, como bem observa uma de suas interlocutoras no livro, é uma tentativa de estabelecer vínculos com o passado. E para isso, nada melhor que a memória, ou as memórias familiares.

Memórias são subjetivas, não guardam os fatos em si, mas experiências vividas, necessariamente imprecisas. E são as memórias que permitem a dúvida (quando tudo se encaixa nas versões ouvidas, mas alguma coisa não bate) e a expectativa (de encontrar algum sinal concreto da passagem dos que vieram antes de nós). E todo esse processo de desvelamento das memórias envolve ocultamentos, silenciamentos e esquecimentos, que por sua vez levam a mais dúvidas: “Nunca ousei perguntar a ele, atormentá-lo com aquela lembrança […]. Ela ressona em mim e, no entanto, é tão vaga como se surgida de uma combinação de imaginação doentia e memória fraca. E de que outra forma, senão dessa, é possível comprovar a veracidade histórica desse acontecimento?”.

Talvez Esther é um título que aliás tem muito a ver com essas dúvidas. Como dar nome à bisavó que talvez se chamasse Esther, morta no massacre de Babi Yar? Petrowskaja tem uma maneira franca e clara de se relacionar com o que não pode saber, como disse em entrevista ao Los Angeles Review of Books:

“Sei exatamente como ela foi morta, li tudo sobre aquele dia em Kiev. Mas não conheço seu nome. Se eu a chamasse de Esther, seria antiético, uma mentira. De certo modo, nenhuma “Esther” existiu, mas “Talvez Esther” sim. E isso não significa que estou relativizando a história. É algo que precisamos levar para dentro de nossa história. “Talvez” e “quem sabe” tornam nossa verdade confiável. É esse nível de “verdade” que podemos alcançar.”

Ao lado da dúvida, a frágil linha entre a memória e a imaginação, ou a recriação, vem à tona no livro numa cena belíssima, em que a existência de um simples fícus, que parece a Petrowskaja o “protagonista” de sua própria história, pois foi essa planta que salvou a vida de seu pai, é questionada por ele, que diz não se lembrar de sua existência. “O fícus existiu ou é ficção? A ficção nasceu do fícus ou foi o contrário? Talvez eu nunca consiga determinar se o fícus que salvou meu pai de fato existiu em algum momento.” Paradoxalmente, a resposta vem desse pai que não consegue lembrar: “Mesmo que ele não tenha existido, às vezes esses atos falhos dizem mais que um inventário meticuloso. Às vezes é justamente a pitadinha de poesia que torna a lembrança fiel à realidade”.

Mesmo na memória, portanto, o trajeto pode ser mais bonito que o ponto de chegada, e a busca em si fala mais daquele que busca do que daquilo que é encontrado.


Julia da Rosa Simões é historiadora e tradutora.

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