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Luciano Mello: Diário do vírus

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Luciano Mello: Diário do vírus Diário do vírus Por Luciano Mello. 15 de março de 2020. Braga, Portugal   Por volta da 22:00, ouvi aplausos. Não entendi o que era o ruído, nem de onde vinha e nem identifiquei como aplauso, eu deveria estar mais acostumado com aplausos. O Patrick Tedesco, que divide apartamento comigo, veio até meu quarto e perguntou o que era o ruído e respondeu sozinho: parece aplauso. Era aplauso. Corremos pra sacada pra ver o que se passava e todos os vizinhos aplaudiam das janelas, das varandas. Quis que fosse pra mim por um segundo. Não era. Lógico que não era, mas artista delira. Ficamos perplexos sem entender e cumprimentamos as crianças do andar debaixo que estavam felizes com o acontecimento. Não nos explicaram nada. Por um momento, num ato reflexo, pensei que iam começar a bater panelas pra tirar a Dilma, mas estamos em 2020, em Portugal. “Se todos seguirem aplaudindo o vírus, ele vai achar que tá agradando e querer ficar”, brincou um amigo. O aplauso seguiu. Só então entendi que era um ato de solidariedade anti-tédio vindo desde a Espanha, um ato para que ninguém se sentisse só. Foi a única distração do dia, o único momento em que vimos gente além de nós, também confinados, também precisando de mais gente. Gente à distância aplaudindo. Aplauso sem plateia, ou, plateia aplaude plateia. Deu um calorzinho bom. Desde que essa coisa Corona vírus (COVID-19) começou, tudo vem mudando. Uma grande amiga sempre me diz que as pessoas se mostram sob pressão. E as panelas recém foram pro fogo, não as que bateram contra a Dilma, mas as daqui, postas pelo mesmo tipo de gente que bateu panelinhas no Brasil em 2016. Se por um lado os vizinhos aplaudem pra se sentirem menos sós, alguns deles também comentam que o vírus veio por culpa dos chineses, dos venezuelanos, dos pretos e dos brasileiros, a senhora que fala isso aperta a boca com intensidade ao dizer “brêsilêirus”. “Brêsilêiros”, nessa hora,  soa como algo entre deboche e a raiva. Meu sangue italiano sobe e eu penso que sou um babaca pensando que o sangue que sobe é italiano e caio no mesmo erro daquela que me ofende sem nem perceber que me ofende. Em um ano e meio, ainda não tinha ouvido nada assim com tanta clareza. Repasso rápido pela memória a semana vazia de gente e lembro da senhora do café que trouxe o pedido errado e que, quando, com a delicadeza que os portugueses me ensinaram a ter, pedi pra trocar: “brêsilêiros”, diz ela enquanto se afasta. Depois lembro do garoto de 17, 18 anos, sentado na praça, explicando à namorada que Portugal está perdendo a “personalidade em meio a franceses, chineses, venezuelanos, pretos e brasileiros”. A panela começa a pegar pressão e a profecia de minha amiga Renata se mostra clara: racismo e xenofobia borbulhando na obscuridão da capsula de pressão que se tornou a Europa do vírus. A delicadeza começa a perder seus contornos macios. Éramos irmãos, agora […]

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Diário do vírus Por Luciano Mello. 15 de março de 2020. Braga, Portugal   Por volta da 22:00, ouvi aplausos. Não entendi o que era o ruído, nem de onde vinha e nem identifiquei como aplauso, eu deveria estar mais acostumado com aplausos. O Patrick Tedesco, que divide apartamento comigo, veio até meu quarto e perguntou o que era o ruído e respondeu sozinho: parece aplauso. Era aplauso. Corremos pra sacada pra ver o que se passava e todos os vizinhos aplaudiam das janelas, das varandas. Quis que fosse pra mim por um segundo. Não era. Lógico que não era, mas artista delira. Ficamos perplexos sem entender e cumprimentamos as crianças do andar debaixo que estavam felizes com o acontecimento. Não nos explicaram nada. Por um momento, num ato reflexo, pensei que iam começar a bater panelas pra tirar a Dilma, mas estamos em 2020, em Portugal. “Se todos seguirem aplaudindo o vírus, ele vai achar que tá agradando e querer ficar”, brincou um amigo. O aplauso seguiu. Só então entendi que era um ato de solidariedade anti-tédio vindo desde a Espanha, um ato para que ninguém se sentisse só. Foi a única distração do dia, o único momento em que vimos gente além de nós, também confinados, também precisando de mais gente. Gente à distância aplaudindo. Aplauso sem plateia, ou, plateia aplaude plateia. Deu um calorzinho bom. Desde que essa coisa Corona vírus (COVID-19) começou, tudo vem mudando. Uma grande amiga sempre me diz que as pessoas se mostram sob pressão. E as panelas recém foram pro fogo, não as que bateram contra a Dilma, mas as daqui, postas pelo mesmo tipo de gente que bateu panelinhas no Brasil em 2016. Se por um lado os vizinhos aplaudem pra se sentirem menos sós, alguns deles também comentam que o vírus veio por culpa dos chineses, dos venezuelanos, dos pretos e dos brasileiros, a senhora que fala isso aperta a boca com intensidade ao dizer “brêsilêirus”. “Brêsilêiros”, nessa hora,  soa como algo entre deboche e a raiva. Meu sangue italiano sobe e eu penso que sou um babaca pensando que o sangue que sobe é italiano e caio no mesmo erro daquela que me ofende sem nem perceber que me ofende. Em um ano e meio, ainda não tinha ouvido nada assim com tanta clareza. Repasso rápido pela memória a semana vazia de gente e lembro da senhora do café que trouxe o pedido errado e que, quando, com a delicadeza que os portugueses me ensinaram a ter, pedi pra trocar: “brêsilêiros”, diz ela enquanto se afasta. Depois lembro do garoto de 17, 18 anos, sentado na praça, explicando à namorada que Portugal está perdendo a “personalidade em meio a franceses, chineses, venezuelanos, pretos e brasileiros”. A panela começa a pegar pressão e a profecia de minha amiga Renata se mostra clara: racismo e xenofobia borbulhando na obscuridão da capsula de pressão que se tornou a Europa do vírus. A delicadeza começa a perder seus contornos macios. Éramos irmãos, agora […]

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