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Sistema de transparência da prefeitura é falho e omite informações ao cidadão

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Sistema de transparência da prefeitura é falho e omite informações ao cidadão Aplicativo 156 online é um dos canais de aproximação com população, mas sistema é mais amplo Crédito: Anselmo Cunha/PMPA

Em sua posse, Sebastião Melo prometeu priorizar a área, mas Matinal recebeu dados errados através da Lei de Acesso à Informação. Além disso, relatórios informam solicitações negadas como “atendidas”, mascarando nível de transparência do Município 

Nomes e CPFs de contribuintes foram repassados pela prefeitura de Porto Alegre ao Matinal Jornalismo como se fossem de devedores do município, quando, na verdade, essas pessoas estão em dia com suas obrigações tributárias. A informação errônea foi enviada através do sistema da Lei de Acesso à Informação (LAI) – um mecanismo que permite a qualquer cidadão solicitar dados ou explicações ao poder público.

Matinal só descobriu que os dados não eram verdadeiros ao solicitar uma entrevista com o secretário da Fazenda para comentar a lista de devedores.

“O caso é grave, pois informações fornecidas por entes públicos contam, em tese, com presunção de veracidade e integridade. Neste caso, a assessoria deveria esclarecer os motivos pelos quais as informações estão incorretas e o órgão detentor dos dados deveria corrigir o problema”, observa o advogado Bruno Morassutti, conselheiro da associação Fiquem Sabendo e da Open Knowledge Brasil, duas instituições que lutam por ampliar a transparência de governos.

A falha foi detectada em 12 de fevereiro e corrigida somente 11 dias depois – e apenas pelo canal da assessoria de imprensa. A resposta enviada via LAI, entretanto, não foi retificada no sistema de atendimento ao cidadão (e-Sic), que foi criado para viabilizar esse tipo de consulta. 

A Fazenda também enviou um esclarecimento redigido pelo Superintendente da Receita Municipal, Christian Fouchard Justin. “Ocorreu uma falha humana. Contribuiu para o erro o fato de contarmos com uma equipe enxuta, sobrecarregada com muitas demandas. Destacamos que a Receita Municipal zela muito pela confiabilidade dos dados que divulga, razão pela qual encaramos de forma muito responsável a apuração dos fatos e correção das informações”. A íntegra da nota pode ser lida aqui.

Esse, entretanto, não é um caso isolado em Porto Alegre. Em dezembro do ano passado, ainda sob a gestão de Nelson Marchezan Júnior (PSDB), o DMAE enviou via LAI uma listagem contendo todos os registros de interrupções no abastecimento de água na Capital entre 2015 e 2020. Ao ser confrontado com os resultados obtidos após a análise das planilhas, o órgão admitiu – também via assessoria de imprensa – que as informações estavam trocadas. Por exemplo, havia um registro de falta de água que contabilizava na tabela 750 horas de duração, quando, na verdade, eram cinco horas apenas.

Depois que a assessoria de imprensa repassou a planilha com as informações retificadas, a reportagem descobriu um aumento de 50% nos casos de interrupção no fornecimento de água no período. O Tribunal de Contas do Estado concluiu que havia um sucateamento forçado no órgão, com a intenção de privatizá-lo – tema que será debatido nesta quinta-feira, às 17h, em audiência pública virtual.

“Esse é um problema que não tem solução: como saber se um dado é confiável ou não? Aqui em Feira de Santana, na Bahia, paramos uma investigação sobre gastos relacionados à pandemia porque chegamos à conclusão que os dados não são confiáveis. O que estava no Portal da Transparência não batia com o registro do Tribunal de Contas”, lamenta a programadora Ana Paula Gomes Ferreira, fundadora do projeto Dados Abertos de Feira, que monitora órgãos públicos da segunda maior cidade da Bahia, Feira de Santana.

Nos dois casos em que erros de informações foram fornecidos via LAI a repórteres do Matinal, nem DMAE, nem SMF corrigiram as listas no sistema público, apenas através de assessoria. Se o pedido tivesse sido feito por um cidadão comum e não por jornalistas, possivelmente o problema não seria descoberto e nem registrado de forma oficial.

Secretário Gustavo Ferenci tem o desafio de aperfeiçoar sistemas Crédito: Giulian Serafim/PMPA

Embora esses equívocos sejam de responsabilidade das equipes de cada órgão consultado, Porto Alegre possui uma Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria que acompanha todos os pedidos via Lei de Acesso à Informação. A responsabilidade dessa estrutura é melhorar os processos e assegurar acesso amplo à informação verídica de interesse público. Mas o caminho a trilhar é longo.

“A verdade é que falta uma cultura de transparência na prefeitura. O sistema funciona bem, o que ainda precisa melhorar são as pessoas por trás dele. Até o final de março faremos treinamentos com servidores de todas as secretarias. Vai melhorar”, promete o jornalista Gustavo Ferenci, que assumiu a pasta em 1º de janeiro.

Em seu discurso de posse, o prefeito Sebastião Melo (MDB) destacou a necessidade de maior transparência e prometeu ações que aproximem o cidadão dos serviços prestados pelo poder público. “Para o Melo, isso é prioridade”, afiança o secretário.

Tratamento desigual para a imprensa

Os erros de informação recebidos pela reportagem do Matinal puderam ser corrigidos graças ao apoio das assessorias de imprensa – privilégio que outros cidadãos não têm. Mas ser jornalista também pode atrapalhar a tentativa de obter dados via LAI: não é raro que os pedidos de informação feitos via LAI pela imprensa sejam respondidos de forma enviesada na tentativa de impedir a divulgação de algum dado público.

Matinal viveu uma situação assim no ano passado, quando solicitou acesso a documentos relativos à contratação de empresas privadas para gerirem unidades de saúde na Capital. A resposta da pasta foi que “o canal de comunicação adequado para profissionais da área de comunicação de veículos é a Assessoria de Comunicação que atua com total transparência” – uma flagrante irregularidade já que o e-Sic pode ser utilizado por qualquer cidadão. Além disso, não houve identificação, na autoria do pedido, de que se tratava de profissional do jornalismo – e ainda que houvesse, a Lei de Acesso à Informação é clara ao orientar que “são vedadas exigências relativas aos motivos da solicitação de informações de interesse público”. Este trecho da lei federal, aliás, está reproduzido integralmente no decreto municipal que regulamenta a aplicação da LAI em Porto Alegre.

“Isso é perigoso, não pode haver distinção entre um cidadão ou outro. Além do mais, na maioria esmagadora dos municípios brasileiros não é possível fazer um pedido de forma anônima, o que afasta muita gente desses sistemas”, observa Ferreira, do Dados Abertos de Feira.

A prefeitura de Porto Alegre oferece a opção de encobrir a identidade na hora de formular o pedido. Assim, o servidor do outro lado do balcão não tem como saber quem está por trás da solicitação – mesmo que para se cadastrar nos sistemas haja exigência de dados como nome completo, CPF, e-mail e celular por exemplo. “Pedidos de informação não deveriam ser tratados com o conhecimento da identidade do demandante. Um pedido sem a identidade do demandante assegura o cumprimento do princípio da impessoalidade”, complementa Morassutti.

Estatísticas duvidosas

O secretário Ferenci não nega os problemas, mas prefere destacar os  pontos positivos dos dois primeiros meses de sua gestão. “Sabemos que falta processo de ponta a ponta, mas temos números legais: 90% dos pedidos são respondidos dentro do prazo previsto na LAI”, comemora.

A lei de acesso determina que as respostas a solicitações devam ser feitas em até 20 dias corridos, que podem ser prorrogados por outros 10, somando um mês entre a abertura do processo e sua resolução na primeira instância.

Mas há problemas, captados inclusive pelo relatório estatístico da LAI, publicado pela própria prefeitura. Segundo revela o documento, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) e a Fundação de Assistência Social (Fasc) extrapolam bastante os prazos definidos em lei para responder aos cidadãos – considerando pedidos feitos até 18 de fevereiro de 2021. O Demhab também foi o recordista de lentidão: entre todos os pedidos protocolados, um dirigido ao órgão levou 219 dias para receber a primeira resposta.

Onze das 25 secretarias que receberam solicitações de acesso a dados públicos têm média de tempo de resposta superior aos 20 dias sugeridos pela LAI como limite (embora eles possam ser prorrogados por outros dez).

Por outro lado, quase 20% dos mais de 2.300 pedidos foram concluídos em apenas um dia após seu registro – e a maioria consta como “atendido”. Nove solicitações que tramitaram em apenas 24 horas chegaram a passar por duas instâncias decisórias, a partir de um pedido de reexame – é o que acontece quando o cidadão não fica satisfeito com a primeira resposta fornecida pelo órgão e insiste na solicitação. Mais surpreendente ainda são os casos em que, em apenas um dia, o pedido tenha passado por três instâncias, sendo a última a Comissão Mista de Reavaliação de Informações, que se reúne apenas uma vez ao mês. Foram dois casos desse tipo, que acabaram classificados como “Não é Lei de Acesso” pela prefeitura. Entram nesse escopo solicitações de serviços ou críticas, por exemplo.

A título de comparação, o único pedido feito pela equipe do Matinal que alcançou essa instância de recurso foi respondido 120 dias depois de aberto o protocolo.

Este mesmo caso do Matinal serve para ilustrar outra estatística duvidosa fornecida no relatório da LAI do Executivo Municipal: a própria classificação de cada pedido, que permite monitorar se a transparência está sendo tratada como a regra, e o sigilo, como exceção, conforme determina a lei. Segundo o relatório estatístico da LAI, a solicitação da reportagem do Matinal foi “atendida”, embora na prática a resposta recebida tenha negado parte dos dados requeridos, alegando “trabalhos adicionais”.

Na verdade, em todo o relatório estatístico da LAI publicado pela prefeitura, aparecem apenas três pedidos entre os mais de 2300 registrados desde 2018 classificados como resposta negada – seria um indicador muito positivo de transparência.

Mais uma vez, checamos os dados públicos com os pedidos feitos pela equipe do Matinal Jornalismo e descobrimos que as nossas negativas não batiam com o número do protocolo das respostas registradas no documento como negadas, ou seja, o relatório está distorcendo este dado, que é possivelmente bem maior do que o informado.

Pior: alguns desses pedidos negados aos jornalistas no sistema e-SIC constam no relatório como atendidos. “Eu não tenho resposta imediata para esse ponto. Mas agradeço que tenham levantado isso, já passei para minha equipe avaliar”, assegurou o secretário Gustavo Ferenci.

Base de respostas incompleta 

Em fevereiro de 2020, a prefeitura criou uma base de consultas abertas com todos os pedidos de lei de acesso à informação feitos ao município. Mais uma vez, constatamos incoerências: embora já tenham sido feitos mais de 2300 pedidos desde 2018, o sistema público possui apenas 541 pedidos disponíveis.

O secretário Gustavo Ferenci justifica essa lacuna de mais de 1700 pedidos dizendo que eles continham dados pessoais que não podem ser expostos publicamente, como nome completo, CPF, endereço de e-mail ou telefone. O fornecimento desses dados é obrigatório para acessar o sistema, mas quando o cidadão repete esses dados no corpo do pedido, os técnicos bloqueiam a publicação para protegê-los, argumenta o secretário. “E o sistema não permite que a gente exclua esses trechos do pedido”, completa.

Mas muitas vezes são os próprios servidores que repetem, nas respostas, os dados pessoais do requerente – e muitas delas estão sim publicadas, ao contrário do que sustenta a pasta de Transparência. Fizemos um teste com 20 pedidos de informação feitos por um repórter: sete foram publicados na base pública, sendo que quatro deles expunham dados pessoais como nome completo e e-mail. Por outro lado, pedidos que não contêm nenhuma informação protegida não foram incluídos na base. Vasculhando esse repositório, encontramos casos em que até o telefone do solicitante aparece publicado. 

E é também possível que dados pessoais de outros cidadãos estejam expostos nos anexos da base – Matinal mesmo recebeu nomes completos e CPFs em suas consultas sobre devedores municipais. Embora o secretário de transparência tenha dito que consideram CPFs como dado sensível, há diferentes interpretações sobre este aspecto. União e Governo do Estado também divulgam suas listas de devedores com essas informações abertas. “Não é todo dado pessoal que, por lei, deve ser de acesso restrito. Apenas aqueles dados que afetem negativamente a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, conforme está no artigo 31 da LAI”, defende o advogado Bruno Morassutti, que acredita também que expor uma dívida pública da pessoa não diz respeito à sua intimidade, mas sim à posição de igualdade que todos os cidadãos devem ter entre si na sociedade.

Secretário promete avanços

Porto Alegre não está mal colocada nos rankings de transparência nem nas avaliações do Tribunal de Contas de Estado sobre este aspecto da gestão. Segundo esses relatórios, o município cumpre com o que é exigido, como manter um portal de Transparência ativo. “Hoje, esse monitoramento é feito por órgãos diferentes. A Controladoria Geral da União faz um levantamento nacional, mas nunca foi anual e agora parou. Nas avaliações dos tribunais de contas, em geral o uso da LAI pelo município também tem pouco peso. O destaque maior é para os instrumentos de transparência ativa”, analisa a programadora Ana Paula Gomes Ferreira, do Dados Abertos de Feira.

Foi apostando nessa vertente da política que o secretário Ferenci deu continuidade a um projeto que herdou da gestão anterior, de modernizar a interface do Portal da Transparência de Porto Alegre. Em março, a página deverá ter nova cara – embora, ele ressalte, as funcionalidades vão permanecer as mesmas.

Para breve também está programada a publicação diária das agendas de trabalho de todos os secretários do Executivo Municipal. É uma novidade que se soma à retomada da publicação da própria agenda do prefeito, que ficou desabilitada ao longo de toda a gestão de Nelson Marchezan Jr. e parte do governo de José Fortunati (na época PDT, hoje no PROS).

Mudança mesmo, ele projeta para março de 2022, no aniversário dos 250 anos da cidade, quando deve ser lançado um novo portal, que amplie a possibilidade de consulta e permita, por exemplo, o acompanhamento em tempo real das solicitações de serviços feitas através do 156.

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