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Neurociência e exaustão: sobre o estresse crônico da vivência da pandemia

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Neurociência e exaustão: sobre o estresse crônico da vivência da pandemia

Em março, quando a pandemia se disseminou na Europa, as primeiras notícias de quase mil mortes diárias no norte da Itália ganhavam as manchetes dos jornais e nossas redes sociais. A explosão de uma situação nova e fora de controle – associada a imagens e relatos desesperados de moradores das regiões mais afetadas e com sistemas de saúde colapsando – gerava medo e ansiedade, mobilizando nossa atenção e energia.

Hoje – embora a pandemia siga, galopante, com uma média aproximada de mil mortos registrados por dia no Brasil – é bastante raro que esse saldo diário ganhe o mesmo espaço nas nossas plataformas de informação e comunicação, sejam elas públicas ou privadas. De fato, foi necessário que, no fim de semana do Dia dos Pais, a barreira simbólica das 100 mil vítimas mortas pela Covid-19 fosse oficialmente cruzada para que, diante de um novo número impactante, voltássemos a ver medo e indignação estampados nas capas de jornais.

Mil mortes reportadas em um dia por causa de uma pandemia sempre serão um fato ameaçador do mundo, sejam elas registradas pela primeira ou pela 100ª vez. A tragédia intrínseca aos eventos independe da nossa percepção dos mesmos. Porém, de alguma forma, ao longo desse processo, a nossa reação parece se alterar. Um exemplo disso é o próprio jornalismo: editoras e editores de um jornal dificilmente decidirão dar destaque todos os dias a uma mesma notícia pois sabem que as pessoas se interessam por novidades.

Entretanto, malabarismos noticiosos à parte, a realidade repetitiva da pandemia se impõe, seja  por meio de notícias trágicas repetidas à exaustão, pela adoção de novas rotinas desgastantes, ou ainda pelo medo da morte, nossa e de entes queridos. Assim, a vivência que gradualmente nos vem sendo imposta pelo SARS-CoV-2 se transforma, em muitos aspectos, em uma experiência de estresse crônico, físico e mental.

Esse tipo de estresse crônico gerado pela pandemia é um fenômeno complexo e ainda não completamente compreendido. Porém, é importante refletir sobre ele porque, pelo menos em parte, altera nossa relação com o mundo. Isso tem impacto e relevância não apenas para a condução das medidas sanitárias da pandemia, mas também para a avaliação do impacto que esse estresse terá em cada um, de acordo com suas próprias susceptibilidades.

Percebemos o mundo através de suas variações

Os animais percebem o mundo através do seu sistema nervoso. É nosso sistema nervoso – com sua complexa rede de neurônios e fibras sensitivas, estrategicamente dispersas (e, em alguns pontos, especializadas) em praticamente todas as regiões do nosso corpo – que absorve os estímulos físicos do mundo externo e os codifica na forma de impulsos e sinapses nas regiões centrais do nosso encéfalo.

“Na Neurociência, os estímulos são definidos como variações de energia do meio ambiente”, sintetiza o biólogo Aldo Lucion, professor de neurofisiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “O nosso sistema sensorial faz uma ‘varredura’ constante do meio ambiente. Há várias formas e graus de profundidade de análise das informações do meio ambiente. A análise mais premente que nosso sistema nervoso deve fazer é interpretar estímulos com potencial para comprometer a vida do indivíduo.”

Nem toda variação é processada da mesma forma. Basta pensar na quantidade de estímulos que podemos estar recebendo neste exato momento, como a sensação da cadeira em que estamos sentados, da roupas que estamos usando ou dos inúmeros sons da rua que acabamos ignorando ao longo do dia. Estímulos inofensivos assim, quando contínuos, tendem a reduzir sua capacidade de sensibilização do sistema nervoso. Ocorre uma adaptação sensorial – ou, em termos mais técnicos, uma dessensibilização dos limiares de ativação.

Porém, quando os estímulos não podem ser meramente adaptados como banais ou inofensivos, o processo é bem mais elaborado. “No caso dos estímulos potencialmente comprometedores da vida, como a Covid-19, ou de estímulos dolorosos (que em essência são estímulos potencialmente comprometedores da vida), o processamento das informações que nosso sistema nervoso central recebe é bem mais complexo. Pode ocorrer certa adaptação, mas os receptores não silenciam. Eles sempre mantêm o sistema nervoso central informado, como ocorre nas dores crônicas. A dor está sempre ali”, explica Lucion.

Essas adaptações que nosso sistema nervoso sofre com estímulos nocivos, desde a sensação à cognição, têm certo sentido evolutivo e de sobrevivência, pois não é viável, fisiologicamente falando, viver permanentemente sob a ameaça da morte ou de risco à nossa integridade física. Assim, nosso organismo procura maneiras de se adaptar a esses estímulos nocivos e permanentes.

“O que ocorre é que as informações geradas no nosso sistema nervoso por esses estímulos contínuos passam a ser processadas e percebidas de forma diferente do que eram no início da estimulação – mas elas estão lá”, resume o professor de neurofisiologia.

A pandemia é uma situação de estresse sensorial crônico

Neurologicamente falando, a pandemia é uma situação crônica, extremamente complexa e de ameaça à vida. As notícias diárias de mortes, aliás, são apenas uma das fontes desse estresse. A pluralidade de estímulos nocivos gerados pela pandemia é muito maior e multifacetada, indo desde medidas cotidianas (como a necessidade de ter uma máscara limpa para ir ao mercado) até planos futuros (como a incerteza sobre quando poderemos voltar a conviver em segurança com familiares e amigos).

“A pandemia gera estímulos muito variados e em grande quantidade, ou seja, não são estímulos pontuais como um estímulo doloroso, por exemplo. No entanto, toda essa multiplicidade de estímulos, de informações constantes, é organizada pelo nosso sistema nervoso como uma categoria. Fazendo uma analogia grosseira: nosso sistema nervoso abre um ‘arquivo Covid-19’ e coloca e processa lá os estímulos. Os estímulos são muitos e também diferentes (cuidados com a contaminação, com a subsistência, com os filhos, parentes próximos e amigos, planejamentos para o futuro, por exemplo), mas todos têm um ponto comum que é a pandemia”, analisa Lucion.

Um dos elementos mais desafiadores do tipo de estresse crônico gerado pela pandemia é nossa limitação em lidar com ela. De fato, por mais que criemos estratégias, tentemos reduzir os riscos ao máximo e procuremos manter nossa rotina, simplesmente não é possível “tocar a vida” como se tudo estivesse como antes.

“O estresse crônico, especialmente aquele em que o indivíduo tem pouco controle sobre os estímulos estressores, tende a desencadear efeito insidioso”, explica o professor. “Estresse faz parte do nosso cotidiano. No entanto, os estímulos estressores que a pessoa não consegue superar ou pelo menos vislumbrar um caminho para superação tendem a gerar efeitos deletérios em várias funções do nosso corpo e da nossa emocionalidade.”

Mecanismos fisiopatológicos de reação e exaustão, de saúde e doença

A maneira como tudo isso ocorre é elegantemente complexa. Podemos dizer que os estímulos importantes percebidos pelo sistema nervoso periférico convergem para o sistema nervoso central, que processa e codifica essas informações. Se os estímulos são identificados como potencialmente agressores ou ameaçadores da nossa integridade, ativa-se um circuito que começa nas amígdalas (região do cérebro relacionada às emoções) e atinge o eixo hipotálamo-hipófise.

Este eixo integra dois sistemas fundamentais. O primeiro é o sistema neurológico, representado no eixo pelo hipotálamo – complexa região central do encéfalo encarregada da mediação de diversos mecanismos fisiológicos. O segundo é o sistema endocrinológico, cuja porta de entrada é a hipófise – que, estrategicamente localizada logo abaixo do hipotálamo, é a grande mediadora da produção ou secreção de praticamente todos os hormônios do corpo humano.

Integrados, estes dois órgãos representam nosso cerne neuroendócrino e coordenam o sistema nervoso autonômico. Esse sistema nervoso atua de forma “independente” das nossas funções cognitivas e executivas e está a serviço da manutenção das nossas funções vitais basais. É por isso que o processamento de uma situação estressora passa por esse eixo: se nosso sistema nervoso detecta estímulos exteriores que indicam que estamos em perigo de vida, ele nos coloca quase que instantaneamente em alerta para lidar com essa informação.

O sistema nervoso autonômico possui duas “linhas de ação”. A primeira é a parassimpática, que, genericamente falando, instrui o corpo a adotar uma postura basal, “calma e tranquila”. A segunda é a simpática, que avisa o corpo que estamos sob uma situação de ameaça. Embora a separação destes sistemas não seja assim tão rígida, uma situação de estresse tende a representar uma sobrecarga simpática que se inicia no eixo hipotálamo-hipófise e se alastra pelos principais sistemas do organismo, através de ações hormonais e neurotransmissoras.

Um dos principais efeitos é a ativação aguda da glândula adrenal – um minúsculo, complexo e fascinante órgão localizado acima dos nossos rins. Em uma sobrecarga simpática, as adrenais são convocadas a liberar uma dose maciça de substâncias excitatórias na nossa corrente sanguínea, nos mobilizando para reagir ao perigo iminente. Importantes exemplos dessas substâncias são a noradrenalina (ou norepinefrina) e o corticoide. Juntos, eles aceleram os batimentos cardíacos, elevam a pressão sanguínea, aumentam a frequência cardíaca e disponibilizam massivos estoques de glicose no sangue – deixando-nos, portanto, aptos para agir habilmente perante uma situação que exige reação imediata.

Este circuito nervoso funciona muito bem em situações agudas, mas não está preparado para trabalhar sobre estresse contínuo. Quando passamos a conviver permanentemente sob estímulos ameaçadores, este sistema tende a ficar em constante ativação, ainda que de forma menos intensa. Porém, como o corpo não é fisiologicamente apto a viver em estado de estresse crônico, essa condição passa a ter efeitos patológicos sobre nosso organismo, o que aumenta nossa susceptibilidade a doenças cardiovasculares (como hipertensão arterial), endocrinológicas (como diabetes mellitus) e, com grande destaque, psiquiátricas e neuropsiquiátricas (como depressão e ansiedade).

Embora a pandemia seja uma situação ainda muito recente para já sabermos que tipo de estresse crônico ela pode desencadear, já sabemos que se trata de uma situação estressora com alguns desafios adicionais. Isso ocorre porque muitas das medidas comprovadamente úteis para lidar com o estresse crônico (como fazer atividade física e praticar atividades de lazer com amigos) são, justamente, algumas das atividades interrompidas na pandemia. Inclusive o sono – que, quando sadio, é uma medidas mais elementares de redução do estresse crônico –, vem sendo reportado como uma das áreas mais afetadas pela nova rotina imposta pela pandemia.

Consequências do estresse crônico

“O cérebro é o órgão que determina o que é o novo, possivelmente ameaçador e portanto ‘estressante’. Ele coordena as respostas comportamentais e fisiológicas, às vezes promovendo a saúde, às vezes causando dano [como no caso do estresse crônico]”, escreveu Bruce McEwen, um dos grandes pesquisadores do estresse e da interface entre os sistemas neurológico e endócrino.

“E o cérebro é um órgão biológico que modifica sua arquitetura, seu perfil molecular e sua neuroquímica quando está sob estresse agudo e crônico. Ele direciona muitos sistemas corporais – metabólico, cardiovascular e imune – que estão envolvidos nas consequências, de curto e longo prazo, de estar ‘estressado’, bem como os comportamentos patológicos que resultam dessa situação”.

Nosso corpo, portanto, está permanentemente se adaptando aos estímulos do mundo exterior. Esses mecanismos constantes de adaptação ao estresse têm sentido evolutivo, pois precisamos aprender a lidar com os riscos da existência e, ao mesmo tempo, manter um mínimo equilíbrio fisiológico que promova nossa saúde.

Uma situação de estresse crônico, como está se mostrando a pandemia, é uma situação de saturação destes mecanismos. Estamos permanentemente saturados de informações importantes e ameaçadoras, com impacto nas nossas dimensões física, fisiológica e psicossocial, o que pode ter efeitos deletérios sobre nosso sistema nervoso.

Na avaliação de Stefania Teche, psiquiatra e preceptora da residência médica em Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), “o reforço e a repetição da experiência ruim poderiam fortalecer sinapses e poderiam, dependendo da intensidade, desenvolver a passagem de um limiar saudável para um patológico”. Ela ressalta, porém, que “isso não acontece por um fato único: são vários fatores que contribuem em diferentes desfechos, incluindo a genética individual de cada um.”

Muito tem sido estudado sobre os impactos neurológicos, fisiológicos e psicológicos da pandemia. “Pensando no impacto de notícias trágicas, as pesquisas atuais sugerem que elas não geram doenças, mas podem piorar uma situação de risco já estabelecida”, analisa a psiquiatra. “Elas seriam uma repetição de estresse crônico. Porém apenas a notícia não tem a intensidade igual a da experiência”, ressalta.

Stefania concorda com a interpretação da vivência da Covid-19 como um exemplo de estresse crônico, mas ressalta que esse estresse se manifesta de forma diferente em cada indivíduo. “Do ponto de vista neuropsiquiátrico a diferença entre ouvir uma notícia ruim uma vez e ouvi-la todo dia poderia ser um protótipo de estresse crônico. Cada pessoa lida com o estresse crônico com as características que já possui, baseado na sua personalidade e nos fatores de risco para doenças.”

“Somada às incertezas inerentes da doença, a ausência de um planejamento consistente, homogêneo, e que inspire confiança para o enfrentamento da doença e com isso superação da situação estressante, aumenta ainda mais a incerteza à vida”, analisa Lucion. “Nessa situação, o estresse tende a ser mais profundo.”

Quando observamos, portanto, que a notícia de mil mortes já não nos afeta do mesmo modo como nos afetava no início da pandemia, podemos concluir que se trata de um fenômeno mais complexo que uma mera insensibilidade à dor alheia, ou mesmo da nossa própria. A informação da tragédia está ali e certamente nos afeta – de forma adaptada, mas seguramente com importantes efeitos fisiológicos e psicológicos para todos nós.

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