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Nas estatísticas do Governo do RS, crime de homofobia não existe

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Nas estatísticas do Governo do RS, crime de homofobia não existe Decisão de 2019 do STF equiparou homofobia ao racismo e abriu as portas para denúncias Crédito: Vanessa Galassi / CUT-DF / Divulgação

Matinal solicitou à Secretaria de Segurança Pública o número de ocorrências registradas em delegacias desde julho de 2019, quando homofobia se tornou crime. Mas o estado mistura casos desse tipo de crime na conta do racismo e outras ofensas de menor punição, tornando impossível sua distinção.


Era uma noite de sábado, em agosto do ano passado, e um casal aguardava uma mesa em frente a um restaurante em Gravataí. De mãos dadas, os namorados se abraçavam para espantar o frio e trocaram beijos. Mas os gestos de carinho foram interpretados como uma “aberração” por outros clientes do estabelecimento, porque eram protagonizados por dois homens.

“Viadinhos de merda”, “arrombados”, “boiolas”, “não respeitam a família” foram alguns dos xingamentos ouvidos pelos namorados, cujos depoimentos foram corroborados por testemunhas ouvidas pela polícia. Os relatos, além de um vídeo gravado por uma das vítimas no dia, levaram o delegado Márcio Zachello, da 1ª Delegacia de Polícia de Gravataí, a indiciar os agressores por homofobia. O inquérito foi concluído no dia 20 de janeiro, um ano e meio depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a equivalência entre este tipo de agressão e o racismo, em uma sessão histórica, em junho de 2019.

Os indiciados podem pegar até seis anos e meio de prisão. “Se não fosse a decisão do STF, eles seriam enquadrados apenas nos crimes de injúria e ameaça, cujas penas seriam, provavelmente, o pagamento de cesta básica ou prestação de serviços comunitários. Com o crime de homofobia, eles podem pegar um regime aberto ou semiaberto, talvez com uso de tornozeleira. Agrava muito a situação”, explica Zachello.

Apesar do avanço simbólico que representa, o indiciamento dos agressores em Gravataí também mostra o tamanho do desafio que a polícia gaúcha tem para combater o preconceito contra a população LGBTQI+. Desde que o crime foi reconhecido pelo STF, este é, provavelmente, apenas o segundo caso de indiciamento por homofobia no Estado.

Escrevemos provavelmente porque a Secretaria de Segurança Pública não possui dados que forneçam um panorama preciso da situação. A reportagem solicitou à pasta o número de ocorrências registradas em delegacias desde julho de 2019 pelo crime de homofobia, assim como o resultado das investigações em cada caso. Mas as estatísticas confundem: homofobia e racismo entram na mesma conta de outras ofensas, motivadas pela religião, origem ou mesmo por deficiências físicas – os dois primeiros são legalmente considerados mais graves porque incitam ao preconceito e ao ódio.

Além disso, o crime de homofobia é imprescritível e inafiançável, e a pena varia de três a cinco anos de prisão. No caso de Gravataí, foram somados ao preconceito os delitos de injúria e ameaça. “Que sirva de exemplo para quem é homofóbico entender que existem consequências reais sobre seus atos. Que, com isso, mais pessoas tomem coragem para denunciar. Quero que a justiça seja feita”, desabafa Luan Souza, que aos 23 anos ainda se recupera do trauma vivido naquela noite fria de agosto.

Souza precisou encerrar suas contas em redes sociais porque não conseguia mais lidar com o tribunal da internet – que debateu intensamente o crime depois que o vídeo da agressão foi compartilhado. “Passou de um milhão de visualizações, eu já nem tinha mais controle sobre a repercussão. Fui apoiado por muita gente, mas também teve muita crítica e agressividade”, recorda. Sentiu vergonha por se tornar uma figura pública que atraía todos os olhares e perguntas por onde passava. E deixou de frequentar restaurantes. “Tenho muito medo. É complicado”, revela.

Crime não existe na delegacia online

Na hora de fazer a denúncia, Souza já teve um indício do apagamento que vítimas como ele sofrem pelo poder público. Ainda hoje, os crimes de homofobia e transfobia não aparecem entre as opções para quem registra boletim de ocorrência online – uma recomendação em tempos de pandemia. O jovem lembra que ficou confuso ao tentar registrar sua queixa sobre o ocorrido em Gravataí: “acabei colocando como agressão”. Ao receber o primeiro telefonema da polícia, ele explicou que se tratava de homofobia e ouviu, do outro lado da linha, a investigadora afirmar: “Mas isso nem é crime”. Já fazia mais de um ano da decisão do STF.

Tudo mudou quando a investigação caiu nas mãos de Zachello. “O tratamento foi outro, nos sentimos respeitados. É de se pensar qual rumo teria tomado o caso se não tivesse sido transferido para a 1ªDP”, reflete o jovem.

O que também mudou de 2019 para cá é que o Rio Grande do Sul fundou duas delegacias especializadas em investigação de crimes de intolerância, seja ela racial, de gênero, orientação sexual ou religiosa. A pioneira fica em Santa Maria e foi criada no final de 2019.

Foi lá, sob o comando da delegada Débora Dias, que se deu o primeiro indiciamento no Estado pelo crime de transfobia, em fevereiro do ano passado. No caso, um homem de 51 anos ameaçava a enteada, uma mulher transexual de 22. “Ficou bem claro que ele tinha um verdadeiro ódio por ela ser transexual, e os conflitos eram constantes em razão disso. Ele dizia que ia agredir ela até ela virar homem”, explica a titular da Delegacia do Idoso e de Combate à Intolerância e que investigou o caso.

Em dezembro do ano passado, uma segunda delegacia de Combate à Intolerância foi criada em Porto Alegre, sob o comando da delegada Andréa Mattos. Mas tanto em Porto Alegre quanto em Santa Maria, a maior parte das ocorrências diz respeito a casos de racismo. Na delegacia da Capital, por exemplo, cerca de 45 casos envolvendo preconceito estão sob investigação. Em 67% (30) deles, a vítima foi discriminada pela cor da pele, em 11% (5) pela orientação sexual e em 10% (4,5*) pela sua religião. “Acredito que aquele acontecimento muito triste do Carrefour acabou chamando atenção para a questão do racismo e da injúria racial, e isso vai encorajando as pessoas a fazerem as denúncias”, avalia Andréa Mattos.

“Já tive que salvar muitos amigos”

Qualquer delegacia do Estado, mesmo que não seja especializada, pode receber denúncias de crimes de homofobia, transfobia e racismo. “A divulgação de casos como este de Gravataí é importante para que as pessoas saibam que isso é crime e que pode ser punido. A gente percebe que algumas pessoas, até pelo momento político, se sentem respaldadas a terem condutas criminosas, principalmente pelas redes sociais. As pessoas acham que ficam anônimas nas redes sociais, mas não é bem assim, a gente acaba descobrindo quem está do outro lado do computador”, avisa a delegada Débora Dias.

Para a delegada Shana Hartz, do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis, a atitude do STF é essencial para que a homofobia deixe de ser vista como um mal menor, especialmente no Rio Grande do Sul. “Somos um Estado preconceituoso e uma população preconceituosa. Antigamente a homofobia era motivo de piada, de bullying, de risos. A gente tem que superar isso, e a decisão do STF foi muito importante para que isso passe a ser visto não apenas como algo antiético, mas como um crime”.

“Já tinha acontecido com amigos meus, de sofrerem agressões antes de existir a lei”, observa Souza. “A criminalização da homofobia foi um momento muito emocionante porque eu já vi muita coisa acontecer, já tive que salvar muitos amigos e finalmente podemos fazer alguma coisa a respeito”, completa.

Para o delegado Márcio Zachello, o fator determinante para que o caso fosse enquadrado como homofobia foi a admissão dos investigados de que, se fosse um casal heterossexual, a agressão não teria ocorrido. “A mulher (uma das autoras da agressão) bateu muito na tecla de que eles estavam exigindo respeito. Na visão deles, o fato de ser um casal homoafetivo, de estarem de mãos dadas, abraçados e algumas vezes trocando beijos, como qualquer casal heterosexual faz na rua, mas por ser um casal homoafetivo eles entenderam aquilo como um desrespeito. Principalmente na frente de uma criança, porque eles estavam com o filho”, conta o delegado.

Agressão também à imprensa

A reportagem tentou contato com os indiciados no caso de homofobia em Gravataí na terça-feira (26). Por telefone, o homem acusado de preconceito se exaltou: reclamou da cobertura da imprensa e proferiu xingamentos. “Vou ter que descobrir quem tu é para meter um processo”, disse à repórter Fernanda Wenzel. Ele tem antecedentes criminais: roubo a banco, formação de quadrilha e ameaça. Já sua companheira, também indiciada, mandou uma mensagem por whatsapp dizendo que não tinha interesse em falar sobre o assunto.

* Os cálculos foram feitos pela reportagem sobre os percentuais oferecidos pelas autoridades policiais.


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