Carta da Editora

Ciclo violento

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Ciclo violento Editora Marcela Donini esteve com grupo de jornalistas latino-americanos à redação do El País no México (Foto: Antonio Cruz)

Na noite de 3 de maio de 2021, um trecho do viaduto por onde passava a linha 12 do metrô da Cidade do México desabou, deixando 26 pessoas mortas e uma centena de feridos na região sudeste, uma zona de trabalhadores. É a maior tragédia da capital depois do terremoto de 2017, que matou 370 pessoas. Todos os olhos dos mexicanos se voltaram para o acidente, como era de se esperar – a cada dia, circulam pelo sistema de metrô da cidade cerca de 5,5 milhões de pessoas.

Dois relatórios periciais publicados em junho e setembro e realizados por uma empresa norueguesa contratada pelo governo municipal apontaram falhas técnicas no desenho e na execução da obra, inaugurada em 2012. Uma delas estava relacionada à posição dos parafusos que deviam ligar as lajes de concreto às vigas. “Todo mexicano virou especialista nos tais parafusos”, comentou o jornalista do El País no México Elias Camhaji ao grupo de jornalistas da América Latina que visitaram a redação no dia 9 de junho, programa do qual fiz parte*. “Menos de um ano depois, contudo, o público já tinha esquecido do que passou, já estava fora da agenda informativa”, completou o repórter, atribuindo o esquecimento ao “ciclo midiático violento”.

Soa familiar? Aqui também todos viraram especialistas em Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI) logo depois que a boate Kiss pegou fogo em 27 de janeiro de 2013, para citar apenas um exemplo de uma tragédia de grandes proporções que pautou as rodas de conversas dos brasileiros. Mas foi necessário bem menos tempo para a população começar a virar as costas para as 242 mortes em Santa Maria.

Eu cheguei à cidade para cobrir o caso já no dia 28, fiquei por 10 dias e retornei quando a tragédia completou um mês. Naquele momento já tinha gente dizendo que já era hora de os familiares “tocarem a vida”. Muitos só começaram a pensar em “seguir em frente” neste ano, 2022, quando foram condenados quatro réus acusados por homicídio simples com dolo eventual – nenhum agente público entre eles, aliás. No México, até agora, 10 foram acusados no caso da Linha 12, ninguém foi preso ainda.

Por tudo isso reconheci a frustração nos olhos de Camhaji e sua colega Georgina Zerega, que esteve no local do acidente com a linha 12 poucas horas depois do ocorrido e também nos recebeu na redação. A frustração de quem, ao longo de uma investigação, “vai se dando conta de que as possibilidades de chegar à verdade e fazer justiça são cada vez mais remotas”, conforme me disse o colega do El País. “Estamos falando de famílias de 26 mortos e mais de uma centena de feridos que, depois de um ano, não sabem direito tudo o que aconteceu, por que e quem são os responsáveis”.

Elías Camhaji, repórter do El País México (Foto: Antonio Cruz)

Também vi o Brasil representado na fala de Camhaji quando ele se referiu ao “ciclo midiático violento”. No caso da boate Kiss, ainda que houvesse gente comovida com as perdas de 242 famílias um mês depois do ocorrido, como seria possível manter a atenção em um único caso, por mais dramático que seja, quando diariamente somos atropelados por novos episódios de violência, discriminação, corrupção, negligência? Nesta semana, enquanto ainda assimilávamos as mortes do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, na Amazônia, fomos nocauteados pela juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina, que pressionou uma criança de 11 anos, vítima de estupro, para que abrisse mão do direito a um aborto seguro.

Violência de todos os tipos espraiada de norte a sul do País. Não é difícil entender por que cada vez mais pessoas evitam as notícias. De acordo com o Digital News Report 2022, 38% dos entrevistados no Brasil fogem delas – em 2017 eram 29%. “Entre as razões mais comuns estão o desânimo com a repetição da pauta noticiosa (principalmente sobre assuntos como política e coronavírus) e o efeito negativo no humor”, informa a newsletter Farol Jornalismo.

O ciclo midiático é violento porque assim é o cotidiano por essas bandas.

E ainda que estrague o humor de quem nos lê – e de nós jornalistas, pode acreditar –, muitas vezes é só pela pressão provocada pela imprensa que alguns casos se resolvem. A menina de 11 anos de SC enfim pôde realizar o aborto a que teria direito sem nem precisar de boletim de ocorrência. Quantos outros casos não ganham visibilidade e terminam de um jeito bem diferente? Eu não fazia ideia, mas o Estadão publicou nesta semana um número que dá uma pista da dimensão do tamanho desse problema: 17.579 meninas menores de 14 anos tiveram filhos em 2020 – vale lembrar que segundo a Lei 12.015 qualquer “conjunção carnal” com crianças nessa faixa etária é considerada estupro de vulnerável. Dezessete mil meninas.

Falta de transparência

Antes ainda dos assassinatos de Dom e Bruno, viajou pelo Brasil o vídeo que revelava a truculência de agentes da Polícia Rodoviária Federal e que custou a vida de Genivaldo de Jesus – episódio que ocorreu no Sergipe, caso alguém já tenha esquecido. Pois a PRF negou acesso aos procedimentos administrativos dos agentes envolvidos.

No caso da Linha 12 do metrô do México, o último relatório da perícia independente não havia sido publicado nos canais oficiais do poder executivo, como foram os dois primeiros, até que o jornal El País tivesse acesso ao documento e veiculasse as informações. Uma das conclusões apontadas entre as possíveis causas do acidente? Falhas de manutenção e inspeção, o que implica diretamente o governo atual, chefiado por Claudia Sheinbaum, do mesmo partido do presidente López Obrador.

“Os mais vulneráveis são os que mais sofrem nesse tipo de tragédia e os que mais longe estão da justiça, algo que se repete tragédia atrás de tragédia em cada país da América Latina”, completou Camhaji em uma troca de mensagens via WhatsApp.


*A editora foi convidada pelo governo dos Estados Unidos, por intermédio do Consulado em Porto Alegre, para um programa de cobertura jornalística sobre infraestrutura na América Latina, financiado pela Embaixada dos EUA no Panamá e organizado pelo Meridian International Center, uma entidade sem fins lucrativos.

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