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Histórias da ditadura pelas ruas de Porto Alegre

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Histórias da ditadura pelas ruas de Porto Alegre Intervenção de Manoela Cavalinho e Daniela Prates na Av. Des. André da Rocha, em 2020 (Foto: Manoela Cavalinho/Reprodução)

“Afinal, perguntei uma vez para o meu pai se ele já tinha visto alguém morrer:
– Sim, uma pessoa.
– Que pessoa?
– Uma pessoa que estava no porão, no pau de arara.
– Foi tu?
– Não.
– Quem foi?
– Outra pessoa.
– Como?
– Com uma paulada nas costas.
– Como tu sabia que estava morto?
– Cuspiu sangue. Estourou o pulmão.
Suspirou.”

Para cada delírio publicado por alguém do governo Bolsonaro falando em “Revolução” de 1964, existem centenas de documentos e relatos que atestam a barbárie do Golpe Militar no Brasil. O diálogo acima foi a única conversa direta sobre a ditadura militar que a artista Manoela Cavalinho teve com seu pai, agente da polícia gaúcha morto há pouco mais de 20 anos. Ainda levaria um bom tempo para que a filha ligasse o pai às histórias do regime sobre as quais ouvira na escola. Mas esse momento chegou, em 2019, e foi o gatilho para que suas memórias particulares e fragmentadas se juntassem ao mosaico coletivo que faz parte da nossa história. “Foi pelo rádio que compreendi que o Palácio da Polícia, local em que meu pai trabalhava, era também o porão do DOPS”. 

O episódio, assim como o diálogo com o pai, é contado por Manoela em sua dissertação de mestrado em Poéticas Visuais no Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da UFRGS, defendida em dezembro do ano passado e disponível aqui. O trabalho reúne os caminhos percorridos pela pesquisadora na criação de três obras sobre a ditadura militar brasileira. Um deles é o projeto Epigramas, que está disperso pelas ruas de Porto Alegre, lembrando o que tanta gente quer nos fazer esquecer.

Em 2019, Manoela colou o primeiro epigrama. Montada com letras adesivas, a frase afixada no chão em frente ao auditório Araújo Vianna indicava que ali havia sido o local da prisão de Manoel Raymundo Soares, terceira vítima fatal do regime. Assim a artista começou a conectar as páginas dos livros de História a lugares por onde passava em Porto Alegre, capital do Estado que mais concentrou locais de tortura durante o período militar. Já são 64 epigramas espalhados por todas as zonas da cidade. O resultado das ações está publicado em um perfil no Instagram. As intervenções já inspiraram uma exposição na Galeria Ecarta e, em breve, devem ser tema de nova exposição, no Museu das Memórias (In)Possíveis do Instituto APPOA. Também vão virar cartões-postais, conforme Manoela me contou em entrevista nesta quinta.

Essas ações são uma forma de ampliar a vida de suas intervenções, efêmeras pela natureza da técnica empregada. Materializadas em adesivos expostos em espaços abertos, as micro-histórias da ditadura em Porto Alegre eventualmente apagam-se total ou parcialmente. Segundo a artista, trata-se também de “uma forma de performar o desaparecimento e o descaso com estas informações e memórias, seja a nível público (política e judiciário) ou privado.”

Formada em artes visuais e psicologia, Manoela fala também sobre como o apagamento dessas memórias no nível coletivo afeta as histórias dos indivíduos. Ela vê um pacto de silêncio que persiste até hoje por medo, responsável pelas lembranças fragmentadas e incompletas sobre a história de seu pai e outros familiares. Ao mesmo tempo, percebe que há um desejo de compartilhamento das experiências vividas. Recorda de casos de resistência contados por parentes, como a mobilização que impediu que o ditador argentino Jorge Rafael Videla chegasse à Praça Argentina para descerrar uma placa ao lado do presidente João Figueiredo, quando esteve em visita à Capital, em 1980 – um ano antes de Manoela nascer. Em outro canto da memória está a mãe, cantando Geraldo Vandré.

Houve ainda situações de pessoas que a abordaram enquanto colava os adesivos para relatarem suas memórias relativas àqueles lugares. Ela também recorda do contato que teve com ex-presos políticos por ocasião da exposição na Ecarta. “Por mais que tenha havido o trabalho da Comissão da Verdade, ainda não fizemos o ‘tema de casa’, como os argentinos. A memória vem, mas ainda é recalcada, são muitas lembranças violentas, que às vezes se manifestam em testemunhos duros de ouvir e difíceis para quem conta”.

Duros, mas necessários para que a gente jamais esqueça.

Outros caminhos – Vale conhecer também o projeto Caminhos da Ditadura em Porto Alegre, que já mapeou mais de 200 locais de tortura e articulação de repressão. O trabalho está disponível em um mapa virtual que pode ser acessado no site do projeto. No domingo, haverá mais uma edição da caminhada promovida pelo grupo, já com inscrições esgotadas. Há ainda a iniciativa Marcas da Memória, parceria entre o Executivo Municipal e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos que instalou placas em nove locais na cidade que serviram como prisões ou centros de detenção e tortura.

IA pede ajuda

Desde o início da semana, professores, funcionários e alunos do Instituto de Artes (IA) da UFRGS – este mesmo onde Manoela Cavalinho realizou sua pesquisa – estão mobilizados para reivindicar o uso do antigo prédio do Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS). Hoje o IA ocupa um edifício na Rua Senhor dos Passos, no Centro Histórico. Segundo documento de 2009 assinado pelo ex-reitor Carlos Alexandre Netto, ao qual o Matinal teve acesso, 5 mil metros quadrados do ICBS foram prometidos ao IA. Em fevereiro, o ICBS foi transferido para um novo prédio inaugurado pela universidade.

Conforme mencionamos na Matinal News nesta semana, há relatos de condições insalubres na sede da Senhor dos Passos, como infestação de escorpiões amarelos, vazamentos e risco de incêndio, além de o imóvel não comportar todas as aulas, conforme publicou a professora Lilian Maus. Hoje, às 14h30, está marcada uma reunião com a reitoria para tratar do assunto, e um novo ato deve ser realizado.

Ao Matinal, os professores Cirio Simon e Arnoldo Doberstein enviaram uma carta de apoio à mobilização da comunidade acadêmica, que reproduzo abaixo:

Manifesto

Os abaixo assinados, professores Cirio Simon e Arnoldo Doberstein, o primeiro na condição de testemunha ocular, o segundo como coadjuvante e também pesquisador de largos anos, considerando as atuais notícias que dão conta de um acordo em vias de ser firmado entre a Reitoria da UFRGS e a AMRIGS, para transformar o prédio da antiga Faculdade de Medicina num Museu da Medicina no RGS;  que o referido prédio é atualmente todo ocupado pelo Instituto de Artes da mesma Universidade que também reivindica sua total ocupação; e, finalmente, que no prédio em disputa já estão instalados, por exemplo, os arquivos do Instituto de Artes, manifestam, por tudo isso, a sua preocupação pela sua inconveniente remoção, que representaria um irremediável e inadmissível retrocesso.

Retrocesso porque, sabemos nós da situação anterior dos arquivos do Instituto de Artes quando, em 1995, por absoluta falta de recursos e rompimentos dos encanamentos do andar superior (Foto 1) o acervo chegou a estar seriamente ameaçado (Foto 2).  

Assim como temos como aquilatar as atuais condições em que os arquivos se encontram (Foto 3), num espaço dotado de condições apropriadas para a sua boa conservação e para as atividades de pesquisa.

Isto posto, manifestamos nosso total apoio à mobilização da direção, professores, quadros técnico-científicos e estudantes do Instituto de Artes, assim como registramos nossa expectativa que seu justo e merecido pleito seja atendido, garantindo a continuidade  tanto das  instalações como dos arquivos do IA naquele local.

Cirio Simon
Arnoldo Doberstein


Marcela Donini é editora-chefe do Matinal Jornalismo.
Contato: [email protected]

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