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Quantas mortes no trânsito ainda vamos tolerar?

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Quantas mortes no trânsito ainda vamos tolerar? Em 2022, Porto Alegre registrou 74 mortos em acidentes de trânsito (Foto: Divulgação / EPTC / PMPA)

Uma das imagens mais vívidas que tenho da minha época de faculdade é o Gabriel circulando pela Fabico com uma bandeira do PT apoiada no ombro. Gabriel Pillar era um guri fascinante. Tinha um sorriso gigante e frouxo e uma capacidade criativa imensa. 

Escrevia, fotografava, filmava, diagramava. Lançou o Insanus, uma comunidade de blogs em uma época distante dos algoritmos das redes sociais. Por lá passou muita gente boa, como os escritores Carol Bensimon e Daniel Galera.

Volta e meia me pergunto: o que o Gabriel estaria inventando? O que diria sobre o Elon Musk ter comprado o Twitter? Qual seria seu boteco preferido na cidade? O que ele pensaria da frente ampla que elegeu Lula no ano passado? Trabalharia nas trincheiras contra a desinformação ou estaria frustrado demais com tantos riscos que as redes representam à democracia?

As respostas para essas indagações eu só posso imaginar. Gabriel morreu aos 22 anos, em dezembro de 2006, em um acidente na Mostardeiro, poucos dias antes de apresentar sua monografia. O trabalho investigava as possibilidades de cruzamento entre espaços virtuais e urbanos.

Pensei muito no Gabriel nesta semana. E no meu avô Fernando, pai do meu pai, atropelado por um carro em alta velocidade em maio de 1993, em Pelotas. Faço parte do imenso grupo de pessoas que conhecem alguém que morreu em uma ocorrência de trânsito – 82% segundo uma pesquisa que publicamos na quarta-feira. O dado está na reportagem que eu e o Tiago Medina, cofundador e editor da Matinal News, produzimos em conjunto sobre um debate que deve crescer neste ano no Brasil: a redução do limite máximo de velocidade nas vias das cidades brasileiras. 

Um grupo encabeçado pela União de Ciclistas do Brasil já articula com a Câmara Federal para elaborar um projeto de lei que altere os limites previstos no Código Brasileiro de Trânsito. Baseada em evidências, a proposta tem o objetivo de salvar vidas.

Por que eu estou falando de novo sobre isso? Porque é uma discussão que precisa do engajamento da população para avançar, tanto para pressionar o legislativo quanto para mudar a mentalidade de quem ainda acha que velocidade é sinônimo de fluidez no trânsito. Não é, como se pode atestar em experiências dentro e fora do Brasil (leia mais na reportagem). 

No ano passado, Porto Alegre perdeu 74 pessoas no trânsito, duas a mais do que no ano anterior. No Brasil, mais de 30 mil morrem em ocorrências nas vias públicas. Em 2017, foram a principal causa de óbitos de crianças entre 5 e 14 anos no país. No mundo, cerca de 1,3 milhão de pessoas morrem nessas circunstâncias todo ano.

Infográfico produzido pela Organização Mundial da Saúde a partir de dados de 2018. Mostra quantas pessoas morrem por dia no trânsito em todo o mundo. Também é possível filtrar por países.

Existe uma meta das Nações Unidas para reduzir esses registros pela metade até 2030. Mas qual número seria tolerável? 

Essa pergunta foi lançada por uma campanha do governo do estado de Nova Gales do Sul, na Austrália, para defender o óbvio: nenhuma morte precoce é aceitável.

O mote da campanha australiana tem origem no programa Visão Zero, criado na Suécia em 1997 e que está presente no Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans), de 2018. O documento embasou o Plano de Segurança Viária de Porto Alegre, lançado no ano passado. A prefeitura, aliás, conforme revelamos na nossa reportagem, já estuda reduzir a velocidade máxima nas vias onde há mais conflitos entre pedestres, motoristas e ciclistas. 

Aqui no Matinal investimos forte em reportagens que fiscalizam o poder e denunciam suspeitas de irregularidades. Mas também é nosso desejo contribuir para o debate público e transformar as cidades onde vivemos. Por isso, reforço o convite para lerem e compartilharem mais esse conteúdo. 

Acidentes fatais podem acontecer a qualquer um de nós. E como diz a campanha australiana, todo mundo faz falta para alguém.


Marcela Donini é editora-chefe do Grupo Matinal Jornalismo.
Contato: [email protected]

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