Reportagem

Prefeitura terceiriza albergue para instituto dirigido por filho de secretário usando emergência do coronavírus

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Prefeitura terceiriza albergue para instituto dirigido por filho de secretário usando emergência do coronavírus O advogado Itacir Flores tomou posse em abril como secretário de Desenvolvimento Social e Esportes da Prefeitura de Porto Alegre. Foto: Ederson Nunes/CMPA

Decisão fere princípios da moralidade e da impessoalidade do serviço público e pode ser enquadrada como ato de improbidade administrativa

Por Pedro Nakamura e Sílvia Lisboa

Com base no decreto de calamidade pública em função da pandemia do coronavírus, a Prefeitura de Porto Alegre terceirizou, sem licitação, a gestão do albergue Monsenhor Felipe Diel, o maior e mais antigo da Capital, para um instituto presidido pelo filho do atual secretário de Desenvolvimento Social e Esporte de Porto Alegre, o advogado Itacir Flores (MDB). A pasta gerida por Flores comanda a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), responsável pelos dez abrigos que fornecem refeições e acomodações a pessoas em situação de rua no município.

A terceirização ocorreu após a Prefeitura encerrar a parceria com a Irmandade Nossa Senhora dos Navegantes, gestora do albergue Felipe Diel há 52 anos e dona do prédio, localizado na Praça Navegantes, próximo à Estação Farrapos. O convênio foi suspenso em fevereiro depois de a Fasc identificar irregularidades na prestação de contas da organização religiosa ao município, que repassava R$ 96 mil mensais à entidade para a manutenção das 145 vagas do abrigo.

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Após encerrar o convênio mantido com a Irmandade, a prefeitura encaminhou, em 13 de abril, a dispensa de licitação de uma parceria com o Instituto Renascer, administrado por Thiago Franklin Flores, filho do atual secretário municipal. A terceirização foi costurada às pressas dias antes da nomeação de Itacir Flores ao cargo, em 6 de abril, e só foi publicada no Diário Oficial depois da nomeação do advogado emedebista como chefe da Secretaria de Desenvolvimento Social e Esporte. Comandada por Itacir, a Fasc prevê repasses de até R$ 462 mil para o Instituto Renascer, com validade até agosto ou enquanto durar o decreto de calamidade pública.

Contratos que envolvem um secretário municipal e, por meio de uma pessoa jurídica, seu parente de primeiro grau são proibidos por lei e podem ser enquadrados como improbidade administrativa. Segundo o artigo 90 da lei das licitações (Lei 8.666/93), que também se aplica a ofertas públicas, é crime frustrar o caráter competitivo de uma oferta pública, com o intuito de obter, para si ou para outra pessoa ou entidade, uma vantagem decorrente da concessão do objeto licitado. O artigo 89 dessa lei também observa ser passível de criminalização “dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa, ou à inexigibilidade.”

Mesmo que o Executivo possa contratar sem licitação durante a pandemia, o marco regulatório das organizações civis (Lei n.º 13.019/2014) proíbe, no artigo 39, inciso III, parcerias do poder público com organizações que tenham “como dirigente membro (…) de órgão ou entidade da administração pública da mesma esfera governamental na qual será celebrado o termo de colaboração ou de fomento, estendendo-se a vedação aos respectivos cônjuges ou companheiros, bem como parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até o segundo grau”. O marco federal foi regulamentado, em Porto Alegre, pelo decreto municipal nº 19.775/2017, e se aplica às parcerias firmadas pela prefeitura com as OSCs.

“Uma parceirização entre o terceiro setor e a Administração Pública, ainda que não houvesse as restrições do artigo 39 da Lei nº 13.091/14, como todo contrato público em sentido amplo, deve acima de tudo se pautar pelos princípios da impessoalidade e da moralidade. Esses princípios, que estão previstos na Constituição, repelem atos que favoreçam determinadas pessoas, empresas ou entidades, ainda que de forma indireta. O trato com a coisa pública deve ser sobretudo moral, e só consegue sê-lo quando é impessoal”, observa o advogado especializado em direito administrativo sancionador João Carlos Dalmagro Jr., que analisou o caso a pedido do Matinal. “Quando a administração mantém parceria com instituto presidido pelo filho de agente público da mesma esfera governamental em que é celebrada a parceria, há indícios de que esses princípios podem não ter sido observados. Os fatos merecem investigação séria por parte das autoridades competentes porque pode-se estar diante de ato de improbidade administrativa”, completa Dalmagro.  

Diário Oficial de Porto Alegre oficializou parceirização com dispensa de licitação em 13 de abril. Créditos: Reprodução/Diário Oficial


Irregularidades em cascata

Em 23 de março, a Prefeitura determinou, por meio de um decreto, a tomada do imóvel do albergue Felipe Diel de sua mantenedora, a Irmandade Nossa Senhora dos Navegantes. No Diário Oficial, a requisição foi justificada “diante da notícia de que o serviço de albergue lá executado teria suas atividades encerradas”, o que a organização religiosa nega. 

“A gente não tinha encerrado as atividades, não”, rebate o presidente da Irmandade Gustavo Brum. “Não entendemos porque a Fasc fez isso”, disse. Segundo Brum, o albergue havia somente reduzido a capacidade de atendimento pela falta de equipamentos de proteção individual para atender a população em situação de rua da Capital, que deveriam ser fornecidos pelo município. 

Mas não é isso que demonstram os documentos sobre o convênio entre a Irmandade e a Prefeitura aos quais o Matinal teve acesso. Ao contrário do que disse à reportagem, o próprio Gustavo Brum comunicou à Fasc a suspensão total das atividades de acolhimento no albergue em 19 de março – o que motivou o decreto de requisição emitido pela prefeitura dois dias depois. “Com a propagação drástica da pandemia do vírus Covid-19 seremos obrigados a suspender totalmente as atividades de acolhida pela falta de recursos próprios para adquirir EPIs para nossos funcionários, itens básicos no atendimento à população adulta em situação de rua e essenciais no combate à transmissão de Covid-19”, escreveu Brum em ofício à Fasc.

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Em fevereiro, a prefeitura cancelou os repasses à organização religiosa por causa da investigação aberta em novembro do ano passado, para apurar suspeitas de fraude na prestação de contas da parceira. Entre 2014 e 2017, a Irmandade teria apresentado à Prefeitura pelo menos 15 notas fiscais que remetiam a valores, produtos e datas que não constavam nas contas prestadas – os valores dessas notas falsas somam cerca de R$ 75 mil. Segundo a Fasc, para justificar essas despesas, a Irmandade emitia cheques em nome de si mesma, sacava o respectivo valor em dinheiro vivo e, supostamente, usava-o para pagar os fornecedores. A ex-gestora do Felipe Diel justificou não haver “ilegalidade no pagamento de fornecedores em dinheiro; há, no máximo, equívoco formal. Qual a ilegalidade em pagar contas em dinheiro? Nenhuma”, escreveu, em sua defesa. 

Em um dos ofícios, uma das empresas relatou que “considerando toda a documentação analisada, existem fortes indícios de fraude na construção desses documentos”. A Irmandade culpou o representante comercial que vendeu as mercadorias e disse desconhecer as falsificações. O Ministério Público abriu um procedimento para apurar se houve improbidade administrativa por parte da organização religiosa.

Questionado pelo Matinal sobre irregularidades na prestação de contas, o advogado da Irmandade, Luís Bergamaschi, afirmou que, ao longo do processo, a “Irmandade teve cerceado seu direito à defesa” das acusações da Fasc. A entidade entrou com um pedido para anular a rescisão do convênio da prefeitura usando esse mesmo argumento. Mas o procurador Iranildo da Costa Jr. negou a solicitação no mês passado, porque considerou “não ser recomendável atribuir um efeito suspensivo que poderia ensejar a retomada de repasses de recursos a instituição que não agiu com o devido cuidado na apresentação de notas fiscais”. 

O prefeito Nelson Marchezan Junior ao lado de Thiago Franklin Flores, filho do secretário da pasta que coordena os albergues. Foto: Cesar Lopes/PMPA

Pai e filho

Uma semana após encerrar o convênio com a Irmandade, a Fasc recebeu a documentação do Instituto Renascer. A data, 31 de março, coincide com o decreto de calamidade pública assinado pelo prefeito Nelson Marchezan Junior. A Renascer, presidida por Thiago Flores, assumiu o albergue Felipe Diel no dia seguinte, em 1º de abril, com uma redução de 60% nas vagas ofertadas à população de rua, e renomeou o local, que passou a se chamar Abrigo Renascer. O motivo da diminuição de vagas, segundo a Fasc, é o cumprimento das medidas de distanciamento social, que exige que as camas sejam afastadas para evitar aglomerações. O valor mensal do repasse, porém, se manteve nos R$ 96 mil antes pagos à Irmandade para ofertar 145 vagas.

A Fasc prevê repasses de quase meio milhão ao Renascer, presidido por Thiago Flores, com validade até agosto ou enquanto durar o decreto de calamidade pública, que ampara o contrato com dispensa de licitação e a requisição do imóvel do antigo Felipe Diel, que é de posse da organização investigada. 

A redação entrou em contato com o secretário Itacir Flores, com a Fasc, e com Thiago Flores, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.  

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