Reportagem

Projeto Cais Rooftop expõe desafio da habitação social em Porto Alegre

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Projeto Cais Rooftop expõe desafio da habitação social em Porto Alegre O prefeito Sebastião Melo autorizou, em janeiro, o enquadramento do projeto do Cais Rooftop às novas regras para construção no Centro (Foto: Mateus Raugust/ PMPA)

Novo empreendimento será resultado de reforma em prédio símbolo da luta por moradia social na cidade

Local de abrigo para famílias sem teto durante 14 anos, o prédio que servia de morada para a Ocupação Saraí será transformado em um empreendimento de uso misto, o primeiro de Porto Alegre a atender às novas regras de construção no Centro Histórico. A reforma no edifício situado na rua Caldas Júnior com a avenida Mauá deve ser concluída até 2023. Adquirido por investidores, o projeto foi batizado de Cais Rooftop.

Para aderir ao programa recém aprovado na Capital e que prevê incentivos fiscais e urbanísticos, todo novo projeto precisa atender a pelo menos quatro de oito requisitos – um deles diz respeito à habitação de interesse social, que não é mencionado na proposta. Os novos proprietários escolheram satisfazer as seguintes exigências: qualificação as fachadas com frente para via pública; uso misto residencial e não residencial; requalificação do patrimônio histórico; utilização de cobertura verde no rooftop, com priorização de acesso ao público; uso de materiais ecológicos e de placas fotovoltaicas e energias renováveis. 

Os oito andares do prédio vão abrigar 48 apartamentos, do tipo estúdios, entre 25 e 57 metros quadrados, informa o arquiteto Valdir Bandeira Fiorentin, responsável pelo projeto. “Eles terão uma lógica mais parecida com Airbnb, não que não possam ter moradias fixas. Mas o desenho do empreendimento está para a locação”, revela. No terraço, estará a principal atração, um restaurante. A ideia nasceu a partir da visão dos investidores Kleber Sobrinho e Guilherme Toniolo, que compraram o imóvel. A GZH, Sobrinho destacou que o novo empreendimento “tem tudo para ser um ponto de encontro dos porto-alegrenses”. 

Passado de luta

Com um novo futuro sendo desenhado, a edificação guarda um passado de luta, com diversas ocupações feitas desde 2005. “A Ocupação Saraí se tornou uma referência da ocupação das ruas para eventos culturais públicos gratuitos. Eles falam em ‘ponto de encontro’, mas a Saraí já foi um importante ponto de encontro da cidade. A questão é de que público estamos falando”, observa Ceniriani Vargas, coordenadora do Movimento de Luta Nacional pela Moradia (MLNM).

Para ela, o novo empreendimento representa uma derrota para a luta pela moradia para famílias de baixa renda no local, um caminho que começou a ser trilhado há alguns anos. Vargas credita o insucesso à troca de governos e à falta de políticas voltadas para a população mais pobre. “As pessoas tinham uma vida ali. Construíram tudo, trabalho, convívio com escolas a partir do local em que moravam. Vínculos de território foram construídos. Tínhamos crianças matriculadas em creches, as pessoas eram atendidas na Unidade Básica Santa Marta, e outras eram camelôs, mas venceu a especulação imobiliária”, opina.

Saraí promoveu eventos culturais durante ocupação (Arquivo MLNM)

Antes de ser Saraí, a primeira ocupação do prédio chamava-se 20 de Novembro, ainda em 2006. Cinco anos depois, uma nova ocupação foi feita pela Jornada Estadual de Luta pela Reforma Urbana. Mas somente em 2013 é que nasce a Saraí, nome dado em homenagem à vereadora Sônia Saraí de Lima Soares, que trabalhou na Câmara Municipal de 1997 a 2000 e morreu naquele ano.

Preocupados em garantir a permanência no prédio, integrantes da Saraí obtiveram em 2014 um compromisso da gestão estadual de Tarso Genro (PT) para a desapropriação do imóvel, mas o processo foi paralisado com a troca do comando no Piratini. O decreto de Genro acabou sem efeito quando o proprietário pediu na Justiça a reintegração de posse à administração de José Ivo Sartori (MDB) e uma indenização. 

“Entre julho de 2014 a janeiro de 2015, nós estávamos nas tratativas para a saída das famílias para o aluguel social para poder tocar o processo de desapropriação e da reforma do prédio. Naquele período nós constituímos uma equipe formada por arquitetos, engenheiros e estudantes para a elaboração de estudos arquitetônicos e isso foi apresentado ao governo do Estado. Tínhamos a ideia de apartamentos e, no térreo, salas com uso comercial ou até institucional, que poderiam ser locadas, sendo que os ganhos seriam revertidos para a administração estadual. Não era um projeto sem retorno. Tínhamos até um estudo de viabilidade financeira”, relembra Ceniriani Vargas.

Em 2018, com a desistência do Estado pela desapropriação, e já que o proprietário não demonstrou vontade em buscar a conciliação através do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), a Justiça determinou a reintegração de posse. O fim da Saraí se deu em meados de 2019. “Algumas famílias nós trouxemos para o assentamento 20 de Novembro, que fica próximo da avenida Farrapos. Não foi possível trazer todas, mas aquelas que tinham mais dificuldade, os idosos. Outras se espalharam pela cidade, foram pagar aluguel de novo, foram para casa de parentes e voltaram para a própria luta de ter um teto de novo”, conta Vargas.

Antigo colega de Ceniriani Vargas, Ezequiel Morais integrou o MLNM e estima que quase 100 famílias passaram pela Ocupação Saraí. Segundo ele, o projeto apresentado à época era “muito semelhante” ao Cais Rooftop. “Acho que houve uma criminalização das pessoas que moravam ali, indicando que elas não teriam o perfil para desfrutar do investimento que estava por vir, com a mudança no Cais do Porto e tudo. Acho que, no final das contas, aquilo que farão com prédio terá uma função social. O questionamento que faço é: olha tudo que foi feito ao longo dos anos para que se chegasse a este ponto. Era a mesma coisa que propusemos lá no início. Isso mostra o quanto a gestão pública é segmentada e funciona através de interesses econômicos e não abre mão disso”, acrescenta.

Os dados sobre o déficit de moradia na Capital estão desatualizados há mais de 10 anos, diz Vargas, que estima que hoje seriam aproximadamente 75 mil famílias sem ter onde morar. 

Questão de política pública

A crise habitacional não é uma exclusividade do Brasil, diz Camila Maleronka, doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. “Acontece também em locais em que os níveis de desigualdade não são tão gritantes”, afirma, citando dois exemplos de fora. No modelo francês, baseado principalmente em subsídio estatal, algumas cidades como Bourdeaux preveem que 25% das novas residências precisam ser destinadas à habitação social. Mas há também interpretações diferentes, como em Paris, que determinou que 25% de toda a cidade deve ser destinado à moradia social. Nos EUA, que leva em conta zonas de densidade populacional, em alguns lugares também há previsão de uma porcentagem para atender à demanda social, em outros, quem prevê moradia para pessoas de menor renda ganha a possibilidade para construir mais, explica.

“Eu imagino que o desafio da inclusão nestes dois países é bem menor do que o nosso. Nós estamos um pouco atrás na regulação”, destaca. Além da questão de justiça social, Maleronka cita a importância de se considerar a eficiência urbana. “Se você tem uma força de trabalho que precisa se deslocar muito, você está desperdiçando recursos porque o tempo dessas pessoas poderia ser produtivo e é improdutivo. Repercute nos transportes, que faz um movimento pendular, vai cheio num sentido e volta vazio pela manhã e à tarde é o contrário. A regulação tem que ser no sentido de combater a segregação socioespacial.” 

A modalidade retrofit, que consiste no aproveitamento de um espaço construído para atualizá-lo e no qual se encaixa o novo empreendimento Cais Rooftop, não necessariamente está ligada a um eventual processo de gentrificação, opina a pesquisadora. “Eu entendo que isto tem a ver com a nova cultura de regulação urbanística. A gente sempre foi abrindo novas frentes para o investimento imobiliário e isso é uma característica do sistema capitalista, que está ali maximizando lucro”, explica. Para ela, a valorização de um local, que pode se dar com parques, estações de metrô entre outras melhorias urbanas, pode ser positiva, mas alerta que, em geral, onde tem investimento imobiliário, ocorre um processo que pode sim gerar expulsão. Como alternativa para solucionar a questão do déficit habitacional, ela cita o caso paulista das Zeis, zonas especiais de interesse social. “É um tipo de zona que demarca locais de interesse social. Ela contribui para que as pessoas não sejam expulsas. Não resolve tudo, mas ajuda.”

O engenheiro e presidente do Conselho Consultivo do Sindicato das Empresas de Compra, Venda e Administração de Imóveis (Secovi-SP), Claudio Bernardes, considera que atender a população de baixa renda com retrofit ou qualquer outro tipo de obra faz parte de uma equação econômica. “Eventualmente você pode ter um caso em que um retrofit possa ser destinado à população mais pobre, e isso é muito bom. Ao invés de você construir um prédio novo, você pode fazer um retrofit, que tem um custo muito mais barato, o que significa um preço final mais barato. Isto é possível resolver através de regra de mercado ou com subsídio governamental”, completa.

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