Reportagem

Centro Histórico de Porto Alegre concentra bancas ilegais de jogos de azar

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Centro Histórico de Porto Alegre concentra bancas ilegais de jogos de azar Bancas mostram os resultados do jogo do bicho na fachada e sem disfarces (Foto: Pedro Nakamura/Matinal)

Ao menos 12 pontos de jogo do bicho, apostas esportivas e até caça-níqueis operam na zona central de Porto Alegre. Exploração ilegal de jogos de azar pode ser ponto de partida para redes de lavagem de dinheiro

Para quem caminha pelo Centro Histórico de Porto Alegre, é simples se informar sobre os resultados diários da loteria gaúcha do Jogo do Bicho. Somente em um trecho de 130 metros da avenida Júlio de Castilhos, entre a rua Chaves Barcellos e o camelódromo, quatro pontos atualizam os números sorteados duas vezes ao dia, às 14h e às 18h. Ao menos duas lojas do trecho oferecem apostas do gênero. No entorno dos camelôs, há mais duas casas que ofertam jogo do bicho e apostas esportivas irregulares. Uma delas abriga caça-níqueis no fundo da loja. 

Em uma tarde de caminhada, na quarta-feira, dia 11 de maio, a reportagem do Matinal identificou ao menos 12 pontos de exploração de jogos de azar no bairro. O cenário contrasta com o intenso policiamento da região, que tem trânsito de policiais militares e guardas municipais. A reportagem constatou viaturas e agentes de segurança fazendo suas rondas próximos aos pontos de jogo ilegal, sem que os empreendimentos irregulares fossem perturbados. 

Algumas dessas casas de apostas funcionam a poucos metros da sede no Centro do 9° Batalhão da Brigada Militar, com localização adjacente à Praça XV de Novembro, próximo ao Mercado Público. Somente em um raio de 150 metros no entorno do posto policial, há dois pontos de jogo: um em frente ao Paço Municipal, sede da Prefeitura de Porto Alegre, e outro ao lado da galeria do Rosário, na rua Marechal Floriano Peixoto.

Desde 1946, a exploração de jogos de azar é considerada uma contravenção penal no Brasil. Ou seja, são infrações de menor potencial ofensivo, cujas penas costumam ser multas ou prestações de serviços à comunidade. Hoje, as contravenções levam à lavratura de um “termo circunstanciado”, uma espécie de boletim de ocorrência que identifica o autor da infração e a materialidade do fato e depois é encaminhado ao judiciário, mas não resulta em prisão.

“Quando o Estado resolve criminalizar uma atividade ou mercadoria para a qual existe muita demanda e clientela, cria um problema para si porque o próprio Estado vai ter que controlar isso. A proibição cria um mercado ilegal que gera organizações criminosas e vincula isso a disputas violentas”, explica o sociólogo Michel Misse, professor da pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que pesquisa a violência urbana. Na lei, o jogo de azar consta na seção de “contravenções relativas à polícia dos costumes”. Até hoje, essa mesma seção ainda proíbe, em tese, que se sirvam bebidas alcoólicas “a quem se acha em estado de embriaguez” e que pessoas aptas ao trabalho ou sem meios de subsistência se “entreguem à ociosidade”. 

Consultadas pelo Matinal sobre o cenário no Centro Histórico, autoridades policiais apontaram “problemas na legislação” que dificultam o combate aos jogos de azar e levam as polícias a apenas “enxugar gelo” na repressão à contravenção. O delegado Cléber Lima, titular da Delegacia Regional da Polícia Civil de Porto Alegre, por exemplo, explica ser comum a polícia fechar um estabelecimento do ramo e em seguida vê-lo aberto de novo. “É o que acabamos verificando na prática”, lamenta.

Atualmente, um projeto que legaliza jogos de azar no País tramita no Senado Federal com resistência de alas religiosas, sobretudo a evangélica. O modus operandi da contravenção em grandes centros, como o Rio de Janeiro, também traz empecilhos à regulamentação. De acordo com o líder do governo no Congresso, deputado federal Ricardo Gomes (PP), o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetará o projeto caso ele seja aprovado – o mandatário do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), no entanto, planeja votá-lo ainda este ano.

Resultados do Jogo do Bicho na avenida Júlio de Castilhos – a exposição pública de loterias irregulares também é considerada contravenção (Foto: Pedro Nakamura/Matinal)

Lavanderias a céu aberto

O trajeto para mapear pontos de exploração de jogos de azar utilizado pelo Matinal usou como referência um mapa disponível online, na página da Imperial Bet Poa, que mostra as lojas credenciadas na capital para receber apostas da casa irregular. O mapa traz 19 bancas ligadas a jogos de azar na capital gaúcha – 12 delas no Centro Histórico. 

Estimativas apontam que esse mercado ilegal movimenta mais de R$ 20 bilhões ao ano no Brasil, o que é ponto de partida para crimes de maior gravidade. “A própria prática é ilícita, então o dinheiro obtido de contravenção penal é sujo, e deve ser lavado de alguma forma”, explica a advogada criminalista Mariana Chamelette, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). 

Hoje, a Polícia Civil gaúcha investiga a atuação de um dos principais bicheiros de Porto Alegre, que até o momento teve cerca de R$ 20 milhões em bens bloqueados pela Justiça. As apurações estão em fase final, mas informações preliminares apontam que o contraventor lava seu dinheiro por meio de imóveis e empresas de fachada, entre elas, uma agência especializada na gestão de carreira de jogadores de futebol. Um relatório de 2009 do Gafi, uma organização internacional focada no combate à lavagem de dinheiro, aponta que patrocínios e transferências de atletas são meios usados para lavar capitais através do futebol. O nome do suposto bicheiro não foi revelado pela polícia.

Conforme destaca o delegado Marcus Viafore, diretor da Divisão Estadual de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil, que coordena as investigações, esse tipo de atividade arrecada muito e não paga tributos. “Há todo um sistema financeiro à margem do tradicional que gira muito dinheiro e pode financiar o próprio crime”, alerta Viafore, que disse haver facções ingressando na exploração de jogos de azar no interior gaúcho. O delegado afirma, no entanto, que não identificou violência na atuação do grupo que opera em Porto Alegre, mas nota uma profissionalização na lavagem de dinheiro do ramo.

No caso do levantamento do Matinal, os pontos de jogos de azar encontrados são tabacarias ou lotéricas que, na maioria das vezes, também oferecem produtos legais. “Às vezes o próprio bicheiro é dono de uma tabacaria, aí ele diz que vende lanche, revista, jornal e refrigerante, mas também faz o jogo do bicho. O que acontece: o dinheiro se mescla. O da atividade comercial lícita se mistura com o da ilícita e isso dificulta o rastreio. Por isso eles misturam pessoas jurídicas para dar essa aparência”, explica Viafore, que relata haver inúmeras outras modalidades de lavagem.

Apesar desse risco, na prática, pela demanda de trabalho das forças policiais, crimes violentos ou com grave ameaça às pessoas recebem prioridade, enquanto as contravenções ficam em segundo plano. “A polícia finge que não vê por ter outras preocupações. Então ela descriminaliza [o jogo de azar] na prática se tiver outras demandas, como crimes graves e homicídios. Ou então alguns policiais resolvem levar uma grana para fazer essa vista grossa”, alerta o sociólogo Michel Misse. No dia 10 de maio, no Rio de Janeiro, por exemplo, dois delegados da Polícia Civil foram presos, suspeitos de receberem propina do mega-bicheiro carioca Rogério Andrade.

Ao Matinal, o tenente-coronel Ivens Santos, comandante do 9° Batalhão da Brigada Militar de Porto Alegre, responsável pela área central da cidade, negou haver vista grossa contra jogos de azar na região. “Uma guarnição não agir porque é conivente ou paga para isso não existe”, garante o tenente-coronel, que não vê paralelos entre Rio de Janeiro e Porto Alegre no tema. 

Santos afirma que guarnições têm o dever de autuar as infrações constatadas e eventuais omissões são passíveis de responsabilização, mas ressalta que a força age provocada por denúncias da comunidade. “Temos uma demanda violenta de ocorrências por dia. Geralmente damos prioridade aos crimes contra a vida antes das contravenções, mas não deixamos de atendê-las também”, explica. Situação que é semelhante à da Polícia Civil, conforme consulta ao delegado Cléber Lima, titular da Delegacia Regional da Capital. Lima também indicou que a força está atenta ao tema, mas prioriza o atendimento a crimes violentos.

Já a Secretaria Municipal de Segurança, perguntada sobre a profusão de bancas ilegais no Centro Histórico, inclusive na frente da Prefeitura, e eventuais ações da Guarda Municipal contra o jogo, se limitou a dizer que não emite alvarás para a prática do jogo do bicho. “Com isso, as apostas ocorrem de forma dissimulada em estabelecimentos comerciais legalmente constituídos”, disse em nota. 

Apostas esportivas à margem da legalidade

Em 2018, o governo Temer descriminalizou as apostas esportivas no País, o que permitiu a entrada de patrocínios de casas de apostas em clubes e torneios. Só que, desde então, o ramo vive em uma “zona regulatória cinzenta”. Isso porque nenhuma casa de apostas pode operar em território nacional, já que o Ministério da Economia ainda não estipulou as regras para esse tipo de autorização. Enquanto isso, apostas só podem ser realizadas online e por meio de sites sediados no exterior.  Em meio à falta de regulamentação, apostas esportivas também passaram a ser exploradas por bicheiros.

“Atualmente essas bancas que operam em meio físico são contravenção penal”, afirma a advogada criminalista Mariana Chamelette. No caso do Centro Histórico, foram identificadas quatro casas diferentes coletando apostas: Imperial Bet, Palpite da Sorte, SportingPlay e Esportes Betsul, esta última sem relação com a Betsul que patrocina o Internacional. Nas bancas, as apostas são feitas por meio de sites acessados via terminais, maquininhas ou mesmo computadores que ficam à disposição dos clientes.

Bancas oferecem apostas esportivas irregulares por meio de maquininhas ou terminais (Foto: Pedro Nakamura/Matinal)

Enquanto a SportingPlay só pode ser acessada por meio de um terminal de apostas, as outras três têm acesso aberto. A Esportes Betsul, por exemplo, oferece apostas esportivas, cassino e bingo online, mas não apresenta licença no exterior que autorize sua operação. O Matinal se cadastrou no site para ordenar depósitos na casa e rastrear potenciais beneficiários, porém constatou que as contas bancárias usadas pela Esportes Betsul são de empresas de cobranças e meios de pagamento sediadas em São Paulo.

Já os outros dois sites, Palpite na Rede e Imperial Bet, mantêm operações paralelas. Ambas as casas têm uma versão “legal”, um site licenciado na ilha de Curaçao, paraíso fiscal caribenho localizado próximo à costa da Venezuela, e outra “ilegal”, um segundo site que requer a validação das apostas junto a um cambista em uma loja física, como as espalhadas pela capital gaúcha – o que caracteriza uma contravenção.

“Se você opera online e com banca física, o site em Curaçao não presta contas no Brasil. É simples você misturar os dois para esquentar o dinheiro”, analisa o gestor esportivo Felippe Marchetti, doutor em Integridade Esportiva, que aponta que bancas do tipo concorrem com o mercado legal que começou a se estabelecer no país. Como não pagam impostos nem precisam montar suas operações no exterior, a tendência é que sites contraventores ofereçam cotações melhores aos apostadores.

Tabacaria que opera como banca do site Imperial Bet oferece jogo do bicho (Foto: Pedro Nakamura/Matinal)

O gestor esportivo também explica que os negócios ilegais têm um compliance deficitário, o que pode torná-los atrativos a organizações dedicadas à manipulação de resultados esportivos, mas que não há garantia de que essas casas realmente paguem “boladas” aos apostadores – a Imperial Bet, por exemplo, promete prêmios máximos de até R$ 100 mil. “Um manipulador de resultados procuraria vários sites como essa Imperial Bet, por exemplo, porque você pode diluir suas apostas em valores menores e em diferentes casas”, aponta Marchetti, que escreveu uma tese que mapeou as principais vulnerabilidades exploradas por organizações criminosas em esquemas de manipulação de resultados no esporte brasileiro. 

O Matinal constatou que os sites Palpite na Rede e Imperial Bet oferecem apostas em baixas divisões do futebol, como a série C do Carioca ou o paulistão sub-20, o tipo de competição mais vulnerável à manipulação de resultados, já que há menos visibilidade, atletas com salários mais baixos e clubes com estruturas precárias. 

No início de maio, o decreto que regula a operação de casas de apostas no Brasil foi encaminhado à Casa Civil e agora aguarda sanção presidencial, o que não deve alterar o caráter contraventor das bancas que operam no Centro Histórico. “Ainda assim, pela minuta do decreto e pela forma da lei, precisaria de aval do Ministério da Economia [para operar] e com certeza essas bancas não têm”, afirma Chamelette. Uma versão vazada do decreto indica que casas de apostas terão de pagar R$ 22 milhões por licença no Brasil, caso o texto não sofra alterações.


Página da casa de apostas Esportes Betsul no Facebook oferece terminais de apostas para comerciantes. (Reprodução: Esportes Betsul/Facebook)

A casa de apostas Imperial Bet é patrocinadora do Brasil de Pelotas, equipe gaúcha que disputa a terceira divisão do campeonato brasileiro, e do lutador Maurício Shogun, que disputa MMA no UFC. 

Em nota, a Federação Gaúcha de Futebol (FGF) afirmou que não tem ingerência sobre os patrocínios privados de clubes, mas que desde 2021 mantém parceria com uma empresa dedicada à fiscalização da integridade de suas competições. Já o Brasil de Pelotas não respondeu ao contato do Matinal. Os sites Imperial Bet e Palpite na Rede também foram contatados via e-mail, mas não retornaram até o fechamento desta reportagem. Já os contatos disponibilizados no site da Esportes Betsul não existem.

O sociólogo Michel Misse compara a proibição dos jogos de azar à experiência da lei seca nos EUA, que vigorou entre 1920 e 1933. “Foi um problemão. Como vai criminalizar algo que todos consomem? Surgiram organizações criminais que não existiam antes, gângsteres, Al Capone, e os norte-americanos voltaram atrás”, diz Misse. Segundo Misse, o Estado regular, controlar e cobrar impostos dessas atividades é a melhor forma de coibir irregularidades. 

Na mesma linha, o advogado Felisberto Luisi, representante do Centro Histórico no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), afirma que sempre houve jogo do bicho na região e que a prática faz parte da cultura popular. “Geralmente quem joga, até em caça-níqueis, é gente humilde. Tem um aspecto criminal que deve ser avaliado, mas não dá para ser moralista. O que tem que controlar é como se faz e se quem lucra é organização criminosa”, considera Luisi.

Assim como o álcool e outras drogas, apostas atuam diretamente no sistema de recompensas do cérebro e podem levar ao vício. Nesse tipo de situação, é possível buscar ajuda por meio dos Jogadores Anônimos.

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