Estímulo em meio à pandemia ou manutenção de injustiças: entenda as consequências do congelamento do IPTU de Porto Alegre
Aprovado com votação quase unânime na Câmara, projeto era promessa de campanha de Sebastião Melo e suspende reajustes aprovados durante a gestão de Nelson Marchezan
Promessa de campanha do prefeito Sebastião Melo (MDB) e um dos projetos mais importantes do ano para o Executivo municipal, a suspensão dos novos aumentos do IPTU a partir de 2022 trouxe de volta ao debate público um assunto que é discutido pelo menos desde 2017 em Porto Alegre. Naquele ano, o governo do então prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) tentou aprovar os reajustes do IPTU pela primeira vez, com a justificativa de que o cálculo do imposto não era atualizado desde o início da década de 1990. Foram necessárias três votações para que a revisão do imposto passasse na Câmara. Mas, uma eleição e quase dois anos de pandemia depois, o reajuste foi revogado, em votação realizada na Câmara na semana passada.
Ainda que a suspensão do reajuste tenha sido aprovada quase unanimemente pelos vereadores (houve apenas um voto contrário entre os 33, de Laura Sito, do PT) como uma forma de turbinar a economia em meio à crise causada pela pandemia, a defasagem dos valores cobrados ainda é uma questão a ser discutida, algo admitido até por quem é favorável ao projeto. Um novo debate deve ser feito a partir de 2025.
Projeto congela aumentos escalonados que gerariam R$ 50 milhões de receita em 2022
Basicamente, o Projeto de Lei Complementar do Executivo (PLCE) nº 015, de 2021, aprovado na segunda-feira da semana passada, cancela o calendário de aumentos de IPTU programados para 2022 em diante, que haviam sido aprovados na legislatura anterior. Com isso, os aumentos, descontos e isenções já efetivados são mantidos, mas as medidas a partir de 2022 são suspensas. De acordo com a Prefeitura, 30% dos imóveis impactados pelo reajuste da planta de IPTU de 2019 serão beneficiados pela medida.
Na prática, a medida acaba beneficiando donos de imóveis com aumento acima de 50%, aqueles que tinham o valor do imposto mais defasado. Isso porque foi aplicado um escalonamento dos reajustes, que tinha como teto 30% de aumento em 2020 e, em 2021, mais 20%. Para imóveis que precisavam de reajuste maior do que isso, mais quatro aumentos de até 20% estavam previstos até 2025.
Em 2019, após duas tentativas frustradas, o então prefeito Marchezan conseguiu aprovar, em uma sessão tensa, o PLCE 005/18, uma revisão ampla da cobrança de IPTU na capital gaúcha. De acordo com Marchezan e seu secretário da Fazenda, Leonardo Busatto, a justificativa central era de que a Planta Genérica de Valores (PGV) da cidade, documento usado como base para calcular o valor dos imóveis da cidade e a consequente cobrança de IPTU sobre eles, não era revisada desde 1992, o que causava defasagem na cobrança do imposto.
Como exemplos dessa discrepância, havia imóveis localizados na mesma rua com grande diferença no tributo cobrado e apartamentos novos em bairros nobres com IPTU referente a 1992, quando alguns locais eram, literalmente, mato – caso do Jardim Europa, bairro nobre da Capital inaugurado em 2015.
À época, Marchezan estimava que, dos cerca de 800 mil imóveis registrados em Porto Alegre, 49,8% teriam aumento no imposto, 31% teriam redução e 19% estariam isentos. O IPTU, então, passaria a ser calculado de acordo com o valor do imóvel e seriam criadas oito faixas de alíquotas, desde a isenção até 0,85% do valor. O reajuste ajudaria a aliviar as contas da Prefeitura – em 2022, por exemplo, seriam cerca de R$ 50 milhões a mais em caixa, valor que somaria R$ 230 milhões a partir de 2026.
Mas aí, veio a pandemia.
Melo contesta o reajuste desde a campanha – e a crise causada pelo coronavírus é a principal justificativa
Se em 2019 foram 22 votos a favor e 14 contra o reajuste proposto por Marchezan, o congelamento do IPTU em 2021 teve aderência de praticamente todos os vereadores. Mesmo parlamentares que haviam votado favoravelmente à proposta de Marchezan aprovaram a nova medida. Idenir Cecchim (MDB), atual líder do governo na Câmara, foi um deles. Na sessão em que o projeto foi aprovado, ele descreveu a votação como uma “oportunidade de se redimir de um pecado”:
“Não foi um pecado mortal, porque na época as plantas precisavam ser revistas”, disse o vereador em entrevista ao Matinal. “Tinha muita injustiça tributária nesse negócio de IPTU. Na época, votei convicto. Convicto como agora, que participei ativamente (para a aprovação do congelamento). Porque há dois anos está todo mundo quebrado, principalmente os comércios. A injustiça na cobrança existia, mas o importante é que a grande maioria se equilibrou. Havia muitos imóveis que, na mesma rua, pagavam R$ 20 e R$ 100, isso já foi corrigido nesses dois primeiros anos”, avaliou Cecchim.
A justificativa é a mesma dada pelo prefeito, que vê na pandemia uma dificuldade imprevisível, principalmente para o comércio: “É importante salientar que boa parte desses imóveis (que tiveram o aumento suspenso) é comercial. Com a pandemia, a crise foi ladeira abaixo. Essa é uma forma da Prefeitura contribuir para o desenvolvimento da cidade”, disse, em entrevista à Rádio Gaúcha, em julho. A reportagem entrou em contato com a Secretaria Municipal da Fazenda, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.
Contra suspensão, vereadora aponta incoerência da Prefeitura
Única voz dissonante na votação da semana passada, a vereadora Laura Sito (PT) critica o governo por abrir mão de recursos ao mesmo tempo em que coloca em votação projetos como a reforma da previdência municipal e a desestatização da Carris, sob justificativa de redução de gastos.
“O poder público deve ter a capacidade de promover políticas públicas e de reduzir as desigualdades, sobretudo neste período da pandemia. Tributos que garantam a progressividade e a justiça social são, portanto, ferramentas para alcançar esses objetivos, e esses termos estavam contidos na previsão do IPTU até então estabelecida”, avaliou a vereadora, em entrevista ao Matinal.
Ela completa avaliando o projeto anterior. Sito não era vereadora à época, mas é crítica à gestão do antigo prefeito: “O governo Marchezan foi um desastre para a cidade. Foi uma gestão de retrocessos para o povo trabalhador e para o serviço público, tendo como resultado a ampliação das desigualdades na cidade. No entanto, no caso particular do IPTU, a proposta me parecia ter mais aspectos meritórios, caminhando na direção da proporcionalidade e atualizando as alíquotas e possibilitando maior arrecadação da prefeitura”, ponderou a petista.
Na mesma entrevista à Gaúcha, Melo ressaltou que 80% dos imóveis que tiveram o aumento suspenso têm valor de até R$ 500 mil – o que iria de encontro ao discurso de que a Prefeitura estaria “suspendendo aumento só para quem tem imóveis de valores muito altos”, segundo o prefeito. O emedebista ressaltou ainda que quem já teve isenções e diminuição de cobrança, caso de cerca de 25% dos imóveis da Capital, não perderá o benefício.
“Perdemos a oportunidade de fazer justiça tributária para a cidade”
Personagem importante no debate sobre o IPTU, Leonardo Busatto, atual secretário extraordinário de Parcerias do Estado e ex-secretário municipal da Fazenda do governo Marchezan, responsável pela pasta durante a negociação de 2019, vê que a suspensão do reajuste é uma “decisão tecnicamente equivocada”. Em entrevista ao Matinal após a suspensão do reajuste planejado por ele, disse que a decisão mantém injustiças fiscais na cidade:
“Sei que quem está na cadeira tem que tomar as decisões, mas perdemos a oportunidade de fazer justiça tributária para a cidade. Infelizmente, esse tipo de discussão não aconteceu, todo mundo foi no oba-oba, no discurso fácil, e ninguém se debruçou para analisar. Como o reajuste foi interrompido no segundo ano, a correção máxima que ocorreu foi de 56% (30% no primeiro ano e 20% sobre o novo valor no segundo ano). Alguma correção houve, está menos pior do que antes, mas é uma decisão tecnicamente equivocada, que faz perdurarem injustiças. Um imóvel que pagasse R$ 100 de IPTU e deveria pagar R$ 300 está pagando R$ 156, e não R$ 300”, argumentou.
Para 2025, fica a promessa de uma nova discussão sobre a planta da cidade e o reajuste de valores defasados. Até lá, o debate – tal como o reajuste – fica suspenso.