Reportagem

Entenda o debate sobre a roda-gigante em Porto Alegre

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Entenda o debate sobre a roda-gigante em Porto Alegre Roda-gigante no Parque Harmonia terá 66 metros de altura (Reprodução)

Dentre os argumentos, simpáticos à ideia veem embelezamento da área; críticos consideram a quebra de identidade visual do Centro

Nem bem foi anunciada, em meio às celebrações do aniversário de 250 anos de Porto Alegre, e a roda-gigante a ser construída no Parque Harmonia já coleciona controvérsias e polêmicas sobre, por exemplo,o impacto de sua presença – que será percebida de longe se o projeto sair como o planejado. A estrutura deverá ter 66 metros de altura, o equivalente a de um prédio de 22 andares. A autorização por parte da Prefeitura para a construção da roda-gigante saiu na quinta-feira, dia 23 de março. 

Vale destacar que não se trata de uma proposta semelhante de meados de 2020, ainda na gestão de Nelson Marchezan (PSDB). À época, a Prefeitura quis um parceiro para instalar o que seria a maior roda-gigante do Brasil, com 80 metros, às margens do Guaíba, no trecho 2 da orla. A licitação deste trecho está suspensa há quase dois anos, em razão da pandemia. Em janeiro, a Secretaria Municipal de Parceiras estava em revisão do edital, um trabalho que deveria durar cerca de 90 dias. A meta era elaborar outro edital, com objetivo de assinar a concessão até o ano que vem.

Apesar de não ser exatamente às margens do Guaíba e de não ter 80 metros, a nova ideia de roda-gigante, se sair do papel, não deixará de se destacar na área e chamará a atenção de quem estiver na orla, uma vez que a ideia é erguê-la próximo à avenida Edvaldo Pereira Paiva. Ao custo de R$ 60 milhões, a obra será bancada pela GAM3 Parks, que é o consórcio entre as empresas Grupo Austral, Deboni Empreendimentos e a 3M Produções e Eventos. O conglomerado detém a concessão tanto do Parque Harmonia, quanto do trecho 1 da orla. O contrato assinado com o município em agosto de 2021 tem vigência de 35 anos.

“Embelezamento” e incentivo ao turismo

De acordo com o diretor de negócios da GAM3 Parks, Vinicius Garcia, o fracasso do projeto anterior serviu de inspiração para a nova empreitada de agora. “Quando a concessão no Trecho 2 não foi possível, fizemos de tudo para trazer esse aparelho para o Parque Harmonia”, revelou ele, que vê a futura roda-gigante como um novo cartão postal da cidade. “Sabemos do seu potencial turístico, dos momentos que ela irá eternizar na mente dos gaúchos e dos visitantes da nossa cidade.”

Para Garcia, o novo elemento chegará como um complemento à orla, além de fomentar mais a economia do local: “Embelezando a nossa já revitalizada Orla, a roda-gigante irá movimentar um ecossistema extremamente importante, que vai do incentivo ao turismo à geração de renda e emprego”. O projeto prevê uma roda-gigante estaiada, com menos obstáculos visuais à paisagem, segundo a empresa.

As palavras dele rimam com as ditas no Executivo no texto que anunciou a autorização. “A qualificação da orla não é uma bandeira de um gestor, mas uma conquista que se tornou realidade porque todos acreditaram que a cidade precisava e merecia se reencontrar com o Guaíba”, disse o prefeito Sebastião Melo (MDB), enquanto o titular da Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, exaltou a parceria com a iniciativa privada, que considerou fundamental para a obra.

Se não há prazo para sair do papel – provavelmente no ano que vem –, uma coisa ao menos é certa: ela não será de uso gratuito, tanto para turistas quanto para a população de Porto Alegre, que é, inicialmente, o público-alvo da empreitada. E esse ponto é uma das críticas do urbanista Leonardo Brawl Márquez, cofundador do coletivo de arquitetura TransLAB.URB. “A questão de atrelar o passeio, a metragem quadrada, com o consumo, com o empreendedorismo, é um problema muito grave”, apontou. “A orla é um baita projeto e está sendo usada como bode expiatório.”

“Fantasma do ‘não ter nada’ gera falta de massa crítica” 

Márquez contou que recebeu mal a notícia da instalação da roda-gigante no Centro, mas a vê como consequência do que classificou de “narrativa” que acontece há anos, conforme ele. “O pessoal está cansado de muitos anos de não ter nada e diante de uma população carente, se fizer alguma coisa, é óbvio, vão gostar”, argumentou o profissional, reconhecendo que a revitalização da orla engrandeceu a autoestima da população. Só que neste embalo, o debate sobre projetos a serem implementados no local acaba sendo esvaziado: “Não tem massa crítica para falar sobre o que está sendo entregue. Não se fala de algumas questões de projeto, porque tem esse fantasma do ‘melhor que nada’”, acrescentou o urbanista, que concluiu: “A população não está tendo tempo para ter um olhar crítico”.

Ele vai além e estende a crítica aos projetos recentes da Prefeitura de atualização do Plano Diretor apenas para o Centro e, mais recentemente, para o 4º Distrito. “Estão acontecendo decisões por decreto, no canetaço. Isso é fruto deste momento. Para o urbanismo, quatro anos, o tempo de um governo, é pouco. Estão fazendo tudo muito rápido”, denunciou ele, ainda que amenize o tom ao comentar do papel dos técnicos de carreira: “O Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) está fazendo muita força para tentar manter a sua legitimidade”, disse ele, lembrando a entrevista do Melo ao Matinal, na qual o prefeito criticou o excesso de Conselhos. “Porto Alegre já esteve à frente de alguns debates e agora está na outra ponta”, sentenciou Márquez. 

Enquanto o Paço e os empresários envolvidos veem a futura estrutura como um novo ponto turístico, o profissional a define como um “requinte de crueldade” à paisagem urbanística local: “Ela tem caráter simbólico: é alta, é única. A simbologia quando falamos de cidade, é muito potente, tanto na arquitetura quanto nas ações. A roda-gigante chega com força por conta disso. O desenho da cidade é o desenho de uma visão de mundo. E se tem área que consolida e transforma em algo tangível as questões políticas, sociais e econômicas é a construção civil”.

Márquez salientou a necessidade de se trazer questões urbanísticas ao cotidiano da população. “Planejamento urbano, Plano Diretor são algo complexo e distantes a quem não está perto da Arquitetura e Urbanismo”, afirmou ele, citando a necessidade de se criar uma “pedagogia urbana”. 

Projeção de visão noturna da roda-gigante

A identidade paisagística como fator intergeracional

Dialogando com o pensamento de Márquez, o professor do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFRGS Eber Marzulo é outro crítico do projeto. “É mais um elemento de valorização fundiária em casamento com a situação do Centro”, indicou ele, em referência às políticas de revitalização do Centro Histórico, que incluem mudanças no Plano Diretor. “Há uma aceleração do atraso”, disparou, para concluir em tom irônico: “O (prefeito Sebastião) Melo vai ser inesquecível, porque vai ficar isso na cidade”. 

Marzulo propôs uma reflexão identitária sobre a Capital e os seus cenários marcantes: “Tem uma vista histórica, uma identidade paisagística relevante. Isso une gerações. Permite que diferentes gerações tenham uma ideia do que é Porto Alegre”, argumentou ele, que citou a revitalização recente da Praça da Alfândega como um exemplo positivo: “Não botaram nada de absurdo lá”, disse. “Existe um vínculo que atravessa gerações. Isso me deixa comprometido com a cidade. Se não vai mudando esses elementos, serve para que tu tenhas mais gente identificada com a cidade. Isso inclusive é capital”.

O professor Marzulo não se diz contra projetos marcantes, como é o caso da roda-gigante, mas defende que eles não podem se sobrepor: “A intervenção na paisagem é válida quando ela é muito pontual e não sombreia uma outra”, descreveu ele, que classificou como “monstra” a altura de 66 metros. “O novo precisa estar interligado ao pré-existente.”

“O olhar tem que ser muito mais amplo do que um ponto específico da cidade”

O urbanista Anthony Ling, editor do site Caos Planejado, acredita que não haverá consenso sobre a ideia de implementar uma roda-gigante no Harmonia. Mas trata-se de uma questão natural, para ele. “Com a orla foi assim, o cais também. Vai ter muita gente discordando também”, citou. “É impossível ter uma ideia com unanimidade da população.”

Ling lembra que o Harmonia está sob concessão a um ente privado e é normal que se pense algo que garanta retorno. “O que pode fazer neste espaço? Evento, show? São poucas coisas que tu podes explorar comercialmente para continuar tendo esta natureza de parque. Imagino eu que por inspiração de outras cidades, uma roda-gigante é algo que pode fazer sentido comercialmente”, afirmou ele, citando que o dinheiro para o investimento não é público: “Não é como se fosse a cidade estivesse deixando de investir em saneamento para colocar uma roda-gigante na orla”.

O fomento ao consumo em um parque público abre a crítica acerca de quem terá condições de frequentá-lo. Poderia, então, ser um indício de gentrificação? Pode até ser que sim, mas isso não necessariamente é algo negativo, na avaliação de Anthony Ling, desde que o olhar seja mais amplo: “Se os imóveis adjacentes estão valorizando, significa que de certa forma a roda-gigante foi bem-vinda pela comunidade, pela cidade. Ou seja, as pessoas querem estar próximas à roda-gigante. O problema é: Porto Alegre tem uma política habitacional adequada para permitir que as pessoas de rendas mais baixas tenham acesso a oportunidades, acesso a alternativas de moradia, independente se uma ou outra região específica da cidade fique mais cara ou não?”, questionou. 

A oscilação da valorização das áreas é um fenômeno comum e constante, segundo ele. “Não pode ter um congelamento dos aluguéis pela eternidade. A cidade é o contrário disso, está sempre mudando a atratividade de diferentes regiões e imóveis. Outros imóveis se depreciam e por aí vai. O olhar tem que ser muito mais amplo do que um ponto específico da cidade que eventualmente vai correr o risco da gentrificação”.

“Para mim, como urbanista, ou do ponto de vista de um gestor público, tem que olhar para a cidade inteira e não para um lote, edifício ou bairro”, enfatizou Ling. “Não quero que a cidade sofra gentrificação por completo. Não quero que a cidade seja toda ela cara, de elite e não permita que mais pessoas possam entrar na cidade e ter um acesso a uma moradia democrática” concluiu. “Isso é um fenômeno ruim. Muitas cidades europeias estão sofrendo com esse fenômeno atualmente, porque elas não permitem mais nenhum tipo de transformação urbana e só fica cada vez mais caro. Tampouco quero que o inverso ocorra, a cidade só se deprecie, todo mundo vá embora e a cidade vá à falência.”

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