Reportagem

“Se a concessão de um parque não fala em árvore, algo não está bem”, diz fundador da Smam

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“Se a concessão de um parque não fala em árvore, algo não está bem”, diz fundador da Smam Foto: Eduardo Beleske/PMPA

Em entrevista ao Matinal, Paulo Pizá Teixeira critica texto do projeto que entrega a gestão da Redenção à iniciativa privada e faz sugestões para aprimorar o edital

Desde que foi apresentado pela Prefeitura de Porto Alegre, em 11 de outubro, o projeto de concessão da Redenção à iniciativa tem sido questionado por ambientalistas e frequentadores do parque. Uma das personalidades que se soma ao coro de críticas à decisão do governo de Sebastião Melo é Paulo Fernando Pizá Teixeira, um dos fundadores da Secretaria do Meio Ambiente de Porto Alegre (Smam), hoje transformada em Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus). 

Paulo Teixeira (Foto: Acervo pessoal)

Ao lado de Susana Gastal e Carmen Hoonholtz, também integrantes da equipe inaugural da Smam, o engenheiro ambiental assina um documento em que estão elencadas perguntas não respondidas pelo Município e sugestões que poderiam, na visão dos signatários, aprimorar o projeto de concessão. Ou seja, não se tratam de vozes radicalmente contrárias à ideia de conceder a gestão do parque à iniciativa privada, como Teixeira gosta de frisar. “Eu não sou totalmente contrário a nada. Mas para poder me posicionar, eu preciso saber do que eu estou falando”, afirmou Teixeira em entrevista ao Matinal

Suas críticas partem da avaliação de que o projeto manifesta uma visão meramente econômica da principal área verde da cidade. “Se uma proposta de concessão de um parque não fala em árvore, algo não está bem.”

Na quinta-feira (8), o Ministério Público de Contas do RS (MPC-RS) pediu a suspensão do processo. A análise partiu do pedido do coletivo Preserva Redenção. Depois da solicitação de auditoria do MPC-RS, a secretária de Parcerias, Ana Pellini, afirmou a GZH que o projeto será aprimorado com sugestões da população e dos órgãos de fiscalização.

Neste momento de construção da proposta, Teixeira ressalta ser importante que a população de Porto Alegre seja melhor informada pela Prefeitura sobre o futuro do Parque Farroupilha. Hoje aposentado, ele trabalhou os últimos 30 anos com saúde pública, na Organização Mundial da Saúde (OMS). Formado em engenharia ambiental, tem uma trajetória importante na área: fez parte da fundação da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre, em 1976. 

“A gente desbravou um caminho que ninguém havia trilhado antes. Não existia no mundo uma Secretaria Municipal do Meio Ambiente. Isso colocou Porto Alegre no mapa do ambientalismo no mundo”, ressalta. 

Da França, vieram técnicos do Ministério do Meio Ambiente para aprender aqui em Porto Alegre como se fazia gestão municipal ambiental, conta Teixeira. O mesmo ocorreu com uma equipe da Secretaria Especial do Meio Ambiente, que existia em Brasília antes de haver um Ministério dedicado à área. 

A seguir, leia os principais trechos da entrevista com Paulo Pizá Teixeira, engenheiro ambiental e um dos fundadores da Secretaria de Meio Ambiente de Porto Alegre.

O fato de o Parque Farroupilha ser Patrimônio Histórico e Cultural não seria um impedimento para a concessão?

Bom, uma das primeiras perguntas que faço para a Prefeitura ali (no documento) é qual é o parecer jurídico que embasa essa proposta de concessão. Quando seesbarra nisso, já não dá para avançar muito mais. Porque se fica fazendo elucubrações em cima do nada. Se uma proposta de concessão à iniciativa privada de um parque não fala em árvore, algo não está bem. 

Com relação a esse aspecto do Patrimônio Histórico e Cultural, é muito importante ressaltar: a comunidade é responsável por zelar pela preservação do patrimônio histórico. Isso é artigo 216 da Constituição Federal. Não são só os órgãos públicos que têm que zelar e manter a conservação, a comunidade é responsável. O parque é de todos. A lei que instituiu o patrimônio cultural do parque torna patrimônio tudo que está lá naquela área, que antigamente era de 62 hectares e agora é 33. Tudo, até os passeios são patrimônio, não se pode alterar nada se não for com uma autorização do conselho do patrimônio. E o que eles querem fazer? Não sabemos. 

Eu não sou totalmente contrário a nada, mas para poder me posicionar preciso saber do que eu estou falando. Basta que se façam estudos de impacto ambiental ou socioambiental, e que se decida pelas alternativas melhores ou nenhuma alternativa. Quando a maioria dos ambientalistas foi contrária às obras da orla do Guaíba, eu fui favorável. Aquele projeto ficou emperrado quantos anos? Isso porque algumas pessoas estavam defendendo mata ciliar, alguns maricás em detrimento do que é hoje, a principal área de atração de turistas e de lazer da cidade. 

A consulta pública realizada pela Prefeitura pedia sugestões para o projeto de concessão, mas não previa manifestações contrárias à concessão. Não seria o caso de fazer um referendo ou plebiscito, como se cogitou uma vez em relação ao cercamento da Redenção?

É uma questão diferente. Com relação ao cercamento, a pergunta é bem objetiva: o parque deve ser cercado sim ou não. E ainda assim pode ter pessoas que vão dizer que depende se a cerca for elétrica, por exemplo. O caso agora é muito mais difícil. Como as pessoas vão se manifestar se não sabem direito sobre o quê? Porque só o título “concessão à iniciativa privada do parque da Redenção” não permite uma opinião abalizada. Se eu tenho ojeriza à iniciativa privada, eu vou dizer “não”, mas aí são pessoas que não deveriam nem ir ao açougue, nem na farmácia porque a sociedade se move também em função da iniciativa privada. 

Foto: Fabricio Gonçalves / Defesa Civil / PMPA

Outros, pelo contrário, defendem que se privatize tudo, “porque o privado funciona, é mais eficaz, é mais eficiente”. Para que as pessoas possam verdadeiramente opinar, elas precisam estar muito bem informadas. E é a prefeitura que tem de informar. Um referendo é uma medida democrática bastante importante e, no estágio atual das coisas, eu diria sim, com toda essa ressalva que eu fiz agora.

Uma das últimas grandes intervenções feitas no parque é o bar Refúgio do Lago, muito elogiado pelo prefeito. O que o senhor acha de um comércio daquele porte no meio do parque? 

Isso aí é uma ilegalidade. É impressionante que o prefeito faça elogios para uma coisa ilegal. Isso não poderia ter sido feito porque o orquidário que estava ali era patrimônio cultural e histórico. Onde foram parar as orquídeas? Alguém sabe? É tudo feito atabalhoadamente. Ninguém conhece a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Lá estão bem claros os crimes de responsabilidades dos gestores municipais que não acatem a legislação. Aquilo foi uma infração à legislação. Se tivessem feito algum estudo, mas não fazem nada…

Eu acho o espaço muito bonito. Mas não teria sido possível um projeto arquitetônico que mantivesse as orquídeas? Fazendo umas gaiolas suspensas, por exemplo, circundando o espaço. Manteria a função do orquidário e agregaria uma nova função, essa de gastronomia. 

Mas não, transfere-se para a iniciativa privada, e eles fazem o que eles querem, claro. Eles não têm a mesma responsabilidade e sensibilidade que deveria ter o poder público para preservar o patrimônio. Era para a prefeitura apresentar esse projeto já dizendo: “fizemos um estudo de viabilidade e análises de impacto sobre a vegetação, sobre a flora do parque, vai melhorar porque nós vamos ter mais recursos para fazer a reposição fitossanitária, para tratar os espécimes que estão doentes”. Era preciso a Prefeitura mostrar que essa preocupação existe. 

Eu questionei o secretário Germano Bremm sobre a ausência de estudos de impacto ambiental, e ele disse que esses estudos ainda seriam feitos, que este é um momento de consulta e que tais análises não necessariamente precisariam ser feitas antes.

Bom… Não seria o caso de dar aula para o secretário, mas… Existem estudos preliminares, basicamente um check list, onde aparecem potenciais impactos e avaliações, são duas páginas. A partir daí, a gente pode avançar. Claro que um estudo detalhado de impacto demora tempo, custa dinheiro e pode ser feito posteriormente. Mas ele desviou da questão, porque a abordagem de avaliar impactos não necessariamente requer um estudo aprofundado e detalhado. Existem análises prévias que são muito mais expeditas, mas te dão um foco, respondem algumas questões.

Questões que, na sua opinião, já deveriam estar respondidas neste momento?

Com certeza. A prefeitura está fugindo da palavra “privatização”, diz que não vão vender. Claro que não vão vender. Mas a concessão à iniciativa privada é transferir para poucas pessoas o poder de decisão sobre uma área que é pública. Não interessa se vai vender para sempre. 

Por outro lado, dizer que não é (privatizar) é fugir do debate. A proposta é conceder à iniciativa privada. Isso quer dizer que alguém vai entrar com algum dinheiro para fazer… Fazer o quê? De que forma? Quanto vai custar? Quem foi que colocou o valor nessa concessão? Onde estão esses números? Tu sabe o total dessa concessão quanto é? Tem que ficar fazendo contas, porque diz que no primeiro ano paga 20 milhões, o segundo, 9 milhões… Mas a comunidade não pode ficar fazendo conta. A prefeitura tem que dizer que a concessão vai gerar “x milhões” em 30 anos e esse dinheiro vai ser aplicado dessa maneira, entendeu? 

E aí entra uma sugestão minha: criar um fundo. A prefeitura ganharia se dissesse poucas coisas. Por exemplo: nós vamos defender que Redenção continue sendo um patrimônio cultural da cidade, com acesso gratuito e universal de todas as pessoas. Também poderia dizer que haverá recomposição da flora e um cuidado específico com as questões dos monumentos, com o ajardinamento. Além da ideia de criar um fundo especial para a Redenção, para onde iriam os recursos da concessionária. Porque senão os recursos da concessionária entram na caixa comum da Prefeitura, e vão para onde? E a Redenção continua com as árvores apodrecidas, sem ajardinamento, deteriorada. Se eles anunciassem essas quatro coisas, dificilmente alguém de boa-fé seria contra. Tem dezenas de fundos em Porto Alegre. 

O Melo inclusive está propondo extinguir parte deles

Por que não ter um fundo pró-Redenção? Esse fundo receberia doações, tem vários repasses previstos na legislação, acordos com organizações internacionais que tenham interesse de preservar áreas históricas, enfim, muitas fontes de financiamento. Essa coordenação do fundo deveria ficar a critério da prefeitura, da Secretaria do Meio Ambiente, agora Smamus, e com uma junta de administração e controle, composta por representantes do patrimônio histórico, da Secretaria de Educação e Cultura do Estado, dos usuários, comissão de moradores, os amigos da Redenção e da própria empresa concessionária. Seria fantástico e sustentável.

O senhor conhece parques em outras cidades do Brasil ou mesmo fora do País onde funciona bem a gestão privada de parques públicos?

Morei 10 anos, até 2014, em Washington (EUA), onde eu fui coordenador-regional de Saúde Urbana da Organização Mundial da Saúde. Lá a gente conheceu muitas iniciativas como, por exemplo, o Central Park, de Nova York. Ele é mantido por um fundo que se chama Central Park Conservancy, uma instituição da sociedade civil. Setenta por cento dos recursos gastos no parque vem desse fundo. Isso já tem uns 40 anos e funciona muito bem. 

Central Park, Nova York (Foto: Ed Yourdon)

Mas os Estados Unidos tem uma cultura de filantropia que o Brasil não tem. Lá aqueles milionários que vivem no entorno do Central Park morrem e deixam as propriedades para o fundo. Aqui, em Santos (SP), tem um fundo especial da prefeitura para o desenvolvimento de parques, e funciona muito bem, me parece. Há outras iniciativas, não seria nada novo propor um fundo. Ainda mais, como falei antes, considerando que a prefeitura tem fundo para qualquer coisa.

No caso da Redenção, conforme afirmou o diretor de Estruturação de Desestatização da Secretaria Municipal de Parcerias, Fernando Pimentel, em evento para empresários, o parque seria “deficitário”. O senhor entende que um parque tem que dar lucro?

Olha a mentalidade dessa gente… Essa frase é emblemática, porque isso é uma fotografia desse projeto de concessão. É como a gente está sendo governado: a questão econômica sempre é o que toma corpo nas discussões, e as questões ambientais não são priorizadas. 

O senhor participou da criação da Secretaria de Meio Ambiente da capital, 46 anos atrás. Como o senhor avalia o cuidado de Porto Alegre com questões ambientais ao longo desse tempo?

Eu fiquei 30 anos fora de Porto Alegre. Voltei mais recentemente, quando me aposentei, em 2015. Eu não voltei mais a militar pelas questões ambientais, salvo quando a secretaria do meio ambiente quis acabar com a biblioteca. Eu coordenei um grande movimento. A gente foi, em plena pandemia, para a porta da secretaria, junto a deputadas e vereadores, e conseguimos

Foi na década de 70 que Roberto Eduardo Xavier criou a secretaria, e criou uma lei de Proteção Ambiental, que tornou patrimônio todas as árvores de Porto Alegre. Elas só poderiam ser cortadas com autorização. E ainda plantou 3 milhões de árvores. Criou o parque Moinhos de Vento, o Harmonia, o Marinha do Brasil, e não sei quantas centenas de praças. Foi uma administração que não vi mais no mundo inteiro. E eu morei em cinco países pela OMS.

Depois começou a haver um certo relaxamento na questão das árvores. Eu comecei a observar que a chamada poda racional é totalmente irracional. A fiação elétrica da cidade prevalece sobre o interesse ambiental. Fazem de qualquer maneira. Isso porque essa tarefa foi passada para a CEEE. (Reportagem do Matinal de 2020 já mostrava má qualidade das podas realizadas na Capital)

A própria Secretaria, que, se imagina que tenha um DNA preservacionista, transfere para um órgão de eletricidade, terceirizado, que não tem essa sensibilidade. Eles só querem livrar os fios de uma árvore que está atrapalhando ali. Existe uma indústria de corte de árvores em Porto Alegre, e isso tem que ser denunciado. Porque qualquer um que queira cortar uma árvore contrata lá um botânico, faz um atestado falso e corta a árvore.

Todas as árvores da cidade, até em espaços privados, são protegidas por essa lei?

Sim. Por muito tempo as pessoas amaldiçoavam essa lei. É como quando uma casa é declarada patrimônio histórico. Aquilo se torna um problema para você, não pode mais desmanchar para fazer um edifício, por exemplo. E também acho que não tem muito ou nenhum subsídio para manter. 

Na época em que foi inaugurada, a secretaria era dotada de técnicos. Tinha uma divisão de conservação de manutenção enorme, com todos os equipamentos possíveis para fazer esse tratamento das árvores e a remoção, se fosse o caso. As atividades da administração pública na área foram se reduzindo e passando para terceirizados. Porto Alegre ainda é uma das cidades mais arborizadas do País. Muito devido ao investimento feito naquela época, quando se plantaram 3 milhões de árvores. 

Para destruir 3 milhões demora um tempo, né? Duvido que a secretaria atual de Meio Ambiente chegue aos pés do que foi a pasta 45 anos atrás. Não chega. Naquela época, até pesquisa se fazia. E eram pesquisas interessantíssimas. Lembro de um trabalho em que os autores partiram do centro da cidade até o Lami observando como diminuíam gradativamente as populações de líquens nas árvores na medida em que a poluição também diminuía. Isso é de um valor imenso. Além de várias outras pesquisas da própria reserva biológica do Lami, também criada naquela época pelo Roberto Xavier.

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