Reportagem

Lei que cria loteria municipal em Porto Alegre pode ter legalidade questionada no STF

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Lei que cria loteria municipal em Porto Alegre pode ter legalidade questionada no STF Prefeito Sebastião Melo (MDB) abraça o líder do governo, vereador Cláudio Janta (SD), que propôs a criação da loteria municipal. Fotografia: Pedro Piegas/PMPA.

Proposta da Prefeitura aprovada pela Câmara visa arrecadar fundos ao transporte público, mas entidades e advogados apontam que projeto traz riscos à administração pública

No início do mês de maio, o governo Melo aprovou na Câmara Municipal a criação da Loteria Municipal de Porto Alegre (Lopoa), que agora aguarda sanção para começar a valer. O objetivo da proposta é arrecadar recursos para o transporte público da Capital, que enfrenta problemas crônicos de financiamento. Entidades e advogados do setor lotérico, no entanto, questionam a legalidade da criação de loterias municipais e apontam que a medida pode trazer riscos à administração pública, já que a exploração da atividade seria lícita apenas à União e aos Estados.

“Considerando que as atividades lotéricas são serviços públicos, é crível afirmar que a legislação federal não pode restringir a titularidade de um serviço público a tal ou qual ente federativo na ausência de resposta constitucional expressa”, justificou o governo no projeto de lei aprovado pela Câmara. A fundamentação parte de um acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2020 que julgou uma ação movida pela Associação Brasileira de Loterias Estaduais (ABLE). Na interpretação do Paço, o julgamento daria guarida legal à criação da Lopoa. 

Na ação, a entidade questionou a constitucionalidade de um decreto-lei emitido pela Ditadura Militar em 1967 para regrar o setor. O tribunal concordou com a ABLE e considerou que a norma não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Na prática, a decisão permitiu a criação de loterias estaduais e aboliu a exclusividade da União na exploração da atividade. Com isso, no entendimento exposto pelo governo Melo na justificativa do projeto, a liberação concedida aos Estados também se estenderia aos Municípios.

O advogado Roberto Brasil, que representou a ABLE na ação movida no STF, no entanto, discorda da interpretação e afirma que nenhum dos dispositivos jurídicos usados pelos ministros em seus votos atende essa tese. “O que cabe é buscar uma parte da arrecadação da loteria do Estado e da União para atender suas demandas, e não instituir uma loteria própria. O direito que os municípios têm à participação nos recursos não lhes dá o direito de explorar este serviço”, diz o advogado, que é sócio do escritório Brasil Fernandes Advogados, especializado em Direito das Loterias.

O Matinal perguntou ao Ministério da Economia se a criação de loterias municipais é legal. Responsável por regular a exploração lotérica e de jogos de azar no País por meio da Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria (Secap), a pasta afirmou que não iria se manifestar sobre o tema.

“Pura aventura”

Antes de Porto Alegre, os municípios de Poá e Guarulhos, no estado de São Paulo, aprovaram ao longo de 2021 a criação de loterias municipais com base na mesma interpretação agora usada por Melo. “Se as prefeituras entendem isso, deveriam inaugurar este debate no STF porque hoje não há decisão que as contemple. É legítimo que os municípios questionem, mas o que tem não dá segurança jurídica. É pura aventura”, critica Brasil.
De acordo com o advogado, os municípios correm o risco de assumir passivos indesejados. Em um eventual julgamento do tribunal superior pela inconstitucionalidade das loterias municipais, a decisão tornaria essas leis nulas desde sua sanção – o que poderia levar à responsabilização de operadores e gestores públicos pela exploração lotérica ilegal, explica Brasil.

Um dos objetivos do governo Melo ao buscar recursos na exploração de loterias é baratear os custos das passagens de ônibus e prevenir um aumento no preço. Hoje, outras prefeituras gaúchas, como a de Caxias do Sul, também avaliam criar loterias municipais para financiar o transporte coletivo. De acordo com o Paço, as tarifas são oneradas por isenções, pela queda no número de passageiros e pelo aumento no custo dos combustíveis, valores que se somam ao fato de que a Prefeitura não recebe aportes estaduais ou federais para cobrir esses prejuízos. 

“Em que pese o transporte público coletivo seja política pública de Estado, insculpida na Constituição Federal, inexiste a cooperação e a colaboração dos governos federal e estadual na resolução dos problemas apontados, principalmente para a previsão e o incremento de receitas que subsidiem a tarifa”, justificou o governo na proposta que cria a Lopoa. Em entrevista concedida ao Matinal no final de março deste ano, dias antes do Paço enviar o projeto à Câmara, Melo afirmou que iria aumentar o preço da passagem se os governos estadual e federal não ajudassem a arcar com os custos do transporte coletivo na Capital.

O único movimento do poder público neste sentido são estudos de uma possível integração de linhas urbanas e metropolitanas na área de Porto Alegre. Após quatro meses de trabalho, a Comissão Especial do Transporte Público Metropolitano da Assembleia apresentou nesta segunda-feira o seu relatório final. O documento aponta uma série de ações de curto, médio e longo prazo, incluindo a criação de um fundo estadual para o setor para subsidiar parte da tarifa.

A proposta da Prefeitura é que a Lopoa explore as modalidades lotéricas autorizadas pelo Ministério da Economia. Ou seja, se implementada, o Município poderá promover jogos como os já realizados pela loteria federal, como os de prognósticos numéricos (Mega-Sena) ou específicos (Timemania), além de sorteios e apostas esportivas. O plano é que o serviço seja explorado pelo próprio poder municipal ou em parceria com a iniciativa privada, por meio de concessão, permissão ou de uma organização credenciada.

Contatada pelo Matinal, a prefeitura de Poá, uma das primeiras a aprovar a criação de uma loteria municipal no País, ainda em agosto de 2021, afirmou que o modelo de implementação do serviço na cidade “encontra-se em tramitação pelos departamentos competentes para que seja aberto o processo licitatório, porém, ainda sem data prevista”. Já a prefeitura de Guarulhos, cujo Legislativo também aprovou a criação de uma loteria municipal, em junho de 2021, não respondeu até o fechamento desta reportagem. 

Sorte na tramitação

Proposta inicialmente em junho do ano passado pelo líder do governo no Legislativo porto-alegrense, o vereador Cláudio Janta (SD), o projeto foi adotado pelo Paço Municipal após o parlamentar emplacar junto à Comissão de Habitação, Transporte e Urbanização da Câmara um parecer que recomendava ao Executivo a criação da Lopoa. 

A ideia inicial era que a loteria financiasse diversos serviços, como Saúde, Educação, Segurança, Mobilidade Urbana e Assistência Social, mas a proposta foi substituída por um novo projeto feito pelo Paço, focado apenas no financiamento do transporte público. A proposta do Executivo foi aprovada para ir ao plenário após passar por uma análise jurídica relatada pelo próprio Janta na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, que também é presidida pelo vereador. 

O próprio parecer emitido pela Procuradoria Legislativa apontou incerteza quanto à legalidade do projeto, mas não o obstruiu. “Embora permaneça certa dúvida sobre a competência material dos Municípios para instituir serviço público de loteria, não se pode falar em manifesta inconstitucionalidade que impeça, pelo menos nesta fase inicial, a tramitação da proposta em questão”, consta no documento, que amparou o relatório de Janta pela tramitação do projeto. Contatado, o vereador não respondeu aos pedidos de entrevista.

Questionada sobre a legalidade do projeto aprovado, a Prefeitura encaminhou as dúvidas à Procuradoria-Geral do Município (PGM), que afirmou que vai sustentar a legalidade da loteria municipal em caso de judicialização. “A decisão do STF autoriza os entes federativos (à exploração lotérica). No caso, tratava-se de Estado, mas não há decisão excluindo os municípios”, explicou a PGM. 

Em novembro de 2021, a Associação Brasileira de Concursos Lotéricos, Sorteios e Assemelhados (Abracos) manifestou contrariedade à criação de loterias municipais. De acordo com o advogado Roberto Brasil, por meio de seu escritório, a entidade fez uma representação à Advocacia-Geral da União (AGU) para que uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) fosse movida contra as loterias municipais. Contatada pelo Matinal para saber se o órgão pretende questionar o tema no STF, a AGU respondeu que não comenta suas estratégias judiciais.

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