Reportagem

PM é preso por homicídio de integrante do MST após 11 anos

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PM é preso por homicídio de integrante do MST após 11 anos Elton Brum foi alvejado e morto por um tiro de espingarda, durante uma reintegração de posse na Fazenda Southall, em São Gabriel. Foto: Letícia Stasiak/Divulgação/MST

A prisão de Alexandre Curto no fim da manhã desta terça-feira, em Pelotas, ocorre quatro meses após a condenação ter transitado em julgado. Durante toda batalha judicial, o policial seguiu recebendo salário de R$ 11 mil, mas a família da vítima, o assentado Elton Brum, ainda aguarda indenização.

* Colaborou Sílvia Lisboa

Atualização 20/1: o texto foi ajustado para incluir as respostas da Brigada Militar.


Resumo:

  • Em 2009, o trabalhador rural Elton Brum foi morto por Alexandre Curto, sargento da Brigada Militar, durante uma ação de reintegração de posse em uma fazenda em São Gabriel.
  • Após 11 anos de processo, o policial foi condenado em todas as instâncias, mas a polícia demorou mais de um mês para cumprir o mandado de prisão.
  • O Matinal acompanhou o caso ao longo do período de suposta busca da polícia, e não teve retorno sobre por que a prisão não havia sido efetuada até então.
  • Durante todo o período do processo, o sargento Alexandre Curto seguiu recebendo o salário de R$ 11 mil mensais, conforme o site Transparência RS.

Um tiro de espingarda calibre 12 pelas costas. Foi assim que o trabalhador rural Elton Brum, 44 anos, morreu em 21 de agosto de 2009, durante uma reintegração de posse na Fazenda Southall, em São Gabriel, na região da Campanha. Elton era integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, junto com centenas de outros assentados, reivindicava o direito ao uso da propriedade. O autor do disparo foi Alexandre Curto dos Santos, um sargento da Brigada Militar. Apesar de ter sido condenado em todas as instâncias após 11 anos de processo, o policial seguiu recebendo salário integral e continuava solto até 11h desta terça-feira. O mandado de prisão definitivo foi expedido em 10 de dezembro de 2020, mas nem a Polícia Civil e nem a Brigada Militar se movimentaram para cumpri-lo nesse meio tempo. A prisão ocorreu hoje em Pelotas, após o Matinal questionar as delegacias responsáveis nos últimos dias.

No intuito de identificar possíveis razões na demora do cumprimento da decisão, nossa reportagem esteve em Bagé no local indicado como residência de Curto no mandado de prisão. Foram encontradas três ruas com nome similar, mas não vimos sinais de movimento nos locais. Era sábado, 9 de janeiro, e não havia pedestres nas ruas indicadas. Bagé entrou na bandeira preta, classificação feita pelo governo do Estado que indica alto risco de contaminação do coronavírus. Apenas o comércio essencial estava aberto no município.

Depois de frustrada a busca pela residência do policial, entramos em contato com as delegacias de Bagé e São Gabriel para entender por que a prisão não havia sido efetuada até então. Foram cerca de 30 ligações. Em Bagé, ninguém soube dizer se o mandado havia chegado nas delegacias ou quem ficaria responsável por cumpri-lo. Em São Gabriel, nas raras vezes em que as ligações foram atendidas, a chamada era encaminhada para outros setores que não respondiam, ou diziam que ligariam de volta, ou cortavam a ligação depois de solicitarmos explicações sobre o caso. Apenas nesta terça-feira (19), por volta das 10h35 da manhã, recebemos a informação de que havia uma operação de captura em andamento, sem mais detalhes. O policial estava foragido e não se encontrava nem em Bagé, como consta no mandado, nem em São Gabriel. Por volta das 13h, soubemos que Alexandre Curto dos Santos havia sido preso por dois policiais civis em Pelotas, no fim da manhã, e às 14h estava sendo encaminhado para o presídio da Brigada Militar. 


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Também entramos em contato com o gabinete do comandante-geral da BM, Rodrigo Picon, e com a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul. Solicitamos um posicionamento oficial sobre o caso e questionamos o motivo para o sargento seguir na corporação, com salário líquido de R$ 11 mil mensais, conforme consta no site Transparência RS. Em nota, a BM informou que “o processo de perda do cargo foi encaminhado pela Corregedoria-Geral da Brigada Militar ao Departamento Administrativo da Brigada Militar (BM) no dia 22 de dezembro de 2020, após cientificação da decisão judicial [do trânsito em julgado]”. O órgão disse ainda que o ato administrativo está em fase final de elaboração e deve ser publicado nos próximos dias, gerando a perda do cargo público. “Enquanto estiver preso na condição de militar, deve permanecer no Presídio Policial Militar”, acrescentou.

Histórico do processo

A lentidão das forças de segurança para executar a prisão de um colega contrasta com a enérgica ação de despejo que resultou no homicídio de Elton, em agosto de 2009. “Foram 12 ou 13 dias de ocupação até a reintegração de posse. A polícia chegou com cachorro, com cavalo, batendo nas lonas, machucando crianças. Chegaram por volta das 6h da manhã e ficamos até o fim da tarde. Separaram as mães, separaram as crianças, separaram os homens. Surravam os guris que estivessem com telefone na mão. Foi uma tortura”, relembra Marly da Rosa, assentada do MST. Segundo ela, os companheiros do movimento só ficaram sabendo da morte do Elton horas depois, porque os policiais tinham cercado o local.

Conforme os autos do processo, os policiais ouvidos pela Justiça também descreveram o episódio como um “cenário de guerra”. Porém, os fardados atribuíram a violência aos integrantes do MST, que teriam agredido a cavalaria com “pedras, pedaços de pau e lanças”. O disparo letal contra Elton teria ocorrido, segundo o próprio Curto, quando o assentado estava “com o braço estendido em relação à rédea de um cavalo de um colega”, supostamente com a intenção de derrubá-lo. A tese de legítima defesa de terceiro, invocada pelos advogados do policial, tinha o objetivo de encaixá-lo no artigo 23 do Código Penal, mais conhecido como excludente de ilicitude – o salvo-conduto que permite aos agentes cometer crimes em situações extremas. Mas a versão do PM não convenceu a juíza Juliana Neves Capiotti, da vara criminal de São Gabriel, responsável por encaminhar o julgamento ao Tribunal do Júri em 2014. A defesa recorreu e perdeu.

“Quem volta as costas a alguém armado com uma arma calibre 12 descrê da possibilidade de ser alvejado de modo tão reprovável, ainda mais, por um miliciano”, observou em 2015 o desembargador João Batista Torvo, presidente da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS), cujo voto destoou do da relatora Osnilda Pisa em apenas um ponto: para Torvo, era necessário levar o caso ao júri popular. Quem desempatou a questão foi o desembargador Diógenes Ribeiro, que também votou por encaminhar a questão ao júri. A defesa recorreu mais um par de vezes, perdeu o prazo de um dos recursos e tentou evitar que o caso fosse ao júri, mas não conseguiu. 

Em 21 de setembro de 2017, o caso finalmente foi levado ao Tribunal do Júri. A sessão de quase 15h de duração foi presidida pelo juiz Orlando Faccini Neto, da 1ª Vara do Júri do Foro de Porto Alegre, e se estendeu até quase meia-noite. O principal ponto discutido foi a alegação da defesa de que, pouco antes da ação, havia ocorrido uma suposta troca de armas acidental com outro policial, que havia carregado sua espingarda com munição letal – enquanto a arma de Curto teria apenas munição antimotim. Quatro dos sete jurados não compraram essa versão. O laudo pericial e os depoimentos de especialistas comprovaram que o tiro havia sido dado pelas costas, a uma distância tão curta que até uma munição antimotim poderia ter causado a morte de Elton Brum. A sentença foi fixada em 12 anos de prisão por homicídio qualificado. O PM foi levado para o Presídio da Brigada Militar e lá ficou por apenas uma semana.

A primeira vitória do brigadiano nos tribunais veio com um habeas corpus, em 29 de setembro de 2017. A decisão de duas páginas do desembargador Manuel José Martinez Lucas considerava desnecessária a prisão, já que o policial vinha respondendo o processo em liberdade e não teria ameaçado a integridade física dos amigos ou familiares de Elton. A soltura do PM foi motivo de festa em Bagé, com direito a carreata, faixas, fogos de artifício e apoio de vereadores do município, onde Curto morava até então. Ele era visto como um herói na cidade. Apesar da comoção, uma nova decisão do TJ-RS cassou o habeas corpus em 11 de outubro daquele ano. Curto voltou para o presídio.

Passaram alguns meses e, em 21 de março de 2018, o policial obteve um novo habeas corpus, dessa vez concedido pelo ministro Joel Ilan Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O ministro entendeu que não seria possível dar início ao cumprimento da pena até que o caso tramitasse em todas as instâncias.

A condenação do júri foi confirmada em segunda instância, no dia 26 de setembro de 2018, por decisão unânime do TJ-RS. Segundo o relator Mauro Borba, as práticas truculentas da Brigada Militar “importam em graves violações dos cânones do direito nacional e internacional em matéria de Direitos Humanos, sendo absolutamente inconcebíveis num Estado Democrático de Direito”. Borba decretou a prisão imediata do PM, que deveria ter retornado pela segunda vez ao Presídio da Brigada Militar, mas a prisão não foi cumprida.

Em novembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal definiu um novo entendimento sobre as prisões após condenação em segunda instância. A maioria dos ministros votou favorável à prisão somente após o trânsito em julgado, quando não há mais possibilidade de recurso. E a mesma decisão que favoreceu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um dos principais aliados políticos do MST, favoreceu também o algoz de Elton Brum.

O último recurso foi negado em setembro de 2020, quando o STJ confirmou a condenação do PM. A juíza Juliana Neves Capiotti, de São Gabriel, expediu o mandado de prisão em dezembro e comunicou a Brigada Militar para que expulsasse o sargento da corporação.

A prisão definitiva efetuada no dia de hoje é apenas uma vitória tardia para o MST e para a família de Elton Brum, que deixou mulher, filha e pai. Os três obtiveram da Justiça, em 2016, o direito a indenizações em valores individuais que variam de R$ 40 mil a R$ 50 mil, e a filha deveria receber pensão no valor de um salário mínimo até completar 24 anos. Porém, em razão de uma série de recursos apresentados pelo Estado e por entraves burocráticos, até agora não constam na lista de precatórios e não receberam a indenização – já as regalias salariais do PM continuaram ao longo de todos esses anos, mesmo como servidor inativo. Em 11 anos de julgamento, seguiu na folha de pagamento e não perdeu o cargo com alto salário da Brigada Militar.

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