Reportagem

Afinal, por que devemos nos preocupar com a lotação nos ônibus?

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Afinal, por que devemos nos preocupar com a lotação nos ônibus? (Foto: Maria Ana Krack/PMPA)

Especialistas respondem a questionamento feito pelo prefeito Sebastião Melo, que sugeriu uma comparação entre os riscos de transmissão da Covid-19 em coletivos e aviões

Um dia depois de a Prefeitura confirmar a transmissão comunitária da variante delta em Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo (MDB) foi ao Twitter perguntar: por que alguns jornalistas só se preocupam com as lotações nos ônibus e não nos aviões?

O post de Sebastião Melo na rede social foi publicado enquanto o secretário de Saúde de Porto Alegre, Mauro Sparta, ainda estava ao vivo no programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha. Na entrevista, Sparta foi questionado a respeito das aglomerações registradas diariamente nos ônibus da Capital. O tom do prefeito no tweet chamou a atenção, já que o perfil costuma fazer apenas postagens oficiais sobre a agenda de Melo. Se na média do mês, os tweets da conta @SebastiaoMelo não passam de 100 likes e poucas dezenas de comentários, a publicação sobre os ônibus foi curtida por 7,7 mil usuários, recebeu 1,9 mil respostas e foi compartilhada por mais de 3 mil contas. Naquele dia, o prefeito hitou, como dizem os usuários da rede.

“2 aviões para chegar ao centro da cidade”

A confirmação da transmissão comunitária da variante delta em Porto Alegre significa que não é mais possível rastrear o caminho do vírus até o contágio. A notícia traz consigo um novo nível de alerta aos porto-alegrenses, já que a delta é mais transmissível do que as cepas anteriores.

Os médicos consultados pela reportagem explicam o que as respostas bem-humoradas ao prefeito no Twitter sugerem: qualquer situação de exposição a outras pessoas sem o devido distanciamento é arriscada, mas há fatores que agravam o risco de uma ou duas viagens diárias de ônibus em relação a voos ocasionais em aviões. 

“Exato, prefeito, hoje mesmo tive que pegar 2 aviões pra chegar ao centro da cidade e tinham pessoas de pé nele, inclusive no segundo tinha gente na asa”, brincou o usuário @rodrigolealm. A ironia faz sentido:

“É uma falácia do ponto de vista epidemiológico e uma falácia do ponto de vista sanitário (o tweet de Sebastião Melo). Não podemos comparar o risco e a vulnerabilidade de quem usa o transporte público constantemente, pelo menos duas vezes ao dia, em exposição contínua, com quem usa o transporte aéreo. Usuários de avião em geral têm mais recursos de prevenção, máscaras mais adequadas, são pessoas que muitas vezes podem trabalhar em home office. Não há bom senso neste tipo de argumento, que acaba servindo para produzir argumentos enganosos e expor a população que já é mais vulnerável”, ressalta o médico infectologista Ronaldo Hallal, mestre em Ciências Médicas.

Em Porto Alegre, os ônibus municipais de linha operam atualmente com 90% da capacidade de lotação, e a Prefeitura ressalta que realiza ações que visam a “garantir o cumprimento dos protocolos sanitários e limite de ocupação estipulado pelas normas estabelecidas nos decretos vigentes”, segundo nota enviada ao Matinal.

Uma pesquisa realizada pela Fiocruz Pernambuco, divulgada em junho de 2021, concluiu que os terminais de ônibus oferecem quase o dobro de risco de contaminação por Covid-19 do que os arredores de hospitais. Na pesquisa, foram coletadas 400 amostras de superfícies de locais com grande fluxo e alta concentração de pessoas. Quase metade das amostras contaminadas por Covid (97, no total) foram recolhidas em terminais de ônibus (47 amostras positivas ou 48,7%), onde as superfícies com maior índice de contaminação foram os terminais de autoatendimento e os corrimões. Segundo o pesquisador da Fiocruz Pernambuco Lindomar Pena, coordenador do estudo, o resultado nos terminais e paradas de ônibus “demonstra serem ambientes onde há mais gente infectada circulando”.

É hora de reforçar os cuidados

Com o avanço de casos da variante delta, os velhos cuidados já conhecidos desde o início da pandemia – máscara e distanciamento social – devem ser reforçados, especialmente por quem precisa se expor diariamente. Ainda que Porto Alegre seja uma das capitais brasileiras com a vacinação mais avançada, com 85,3% da população vacinável parcialmente imunizada com a primeira dose e 52,7% já com o esquema vacinal completo, segundo dados deste domingo (22), especialistas indicam que a nova variante aumenta os riscos.

“As pessoas precisam se conscientizar, e o prefeito deveria ser um dos líderes dessa conscientização, de que enquanto toda a população não estiver vacinada, a variante delta vai infectar mais pessoas, mesmo as vacinadas, e elas podem transmitir Covid, ainda que não na mesma intensidade que as não vacinadas. O resultado disso é o surgimento contínuo de novas variantes, cada vez mais especializadas em escapar da imunidade conquistada, tanto por vacina como por infecção”, avalia Cristina Bonorino, imunologista, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro dos comitês científico e clínico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), que reforça:

“Distanciamento e máscara são as únicas coisas que temos enquanto não tivermos vacinado todo mundo. Se as atividades persistirem como estão e a vacinação não chegar à maioria da população, estamos olhando para um terceiro ano de pandemia. Enquanto toda a população não estiver vacinada, nenhum desses ambientes deve funcionar na capacidade máxima. Quando precisar funcionar, precisa ser respeitada a distância entre indivíduos e o uso de máscara PFF2. Em todos esses locais, portas e janelas devem permanecer abertas. O fato de que abrir janelas é impossível em um avião é parcialmente compensado pelo sistema de circulação e filtragem”, explica.

Estudos como o realizado pela bioestatística Vicki Stover Hertzberg, da Universidade Emory, em Atlanta, e pelo matemático Howard Weiss, do Instituto de Tecnologia da Georgia, em junho de 2020, mostram que os voos são arriscados e que as precauções devem ser mantidas pelos usuários. Nesta pesquisa, a conclusão foi de que o risco de transmissão é alto para os passageiros sentados a até 1 metro de alguém infectado, e improvável para quem está em uma distância maior. O estudo acompanhou 1.540 passageiros da classe econômica e 41 comissários de bordo em 10 voos nos Estados Unidos. As viagens, com duração média entre 3 e 5 horas, foram feitas em aeronaves padrão para voos domésticos, com um único corredor separando duas fileiras de três assentos.

“Foi a aviação quem trouxe o vírus para o Brasil, de uma pessoa que veio da Itália. A diferença entre um ônibus e um avião é sutil, mas a aviação de uma forma geral tem um sistema de ventilação em que o ar é renovado a cada 3 minutos. O fato de as pessoas estarem aglomeradas gera um risco igual”, explica avalia Paulo Petry, epidemiologista e professor da UFRGS, que completa: “Quando o prefeito faz essa comparação, ele não se dá conta de que está expondo uma população que se aglomera por trabalho, e de uma forma mais intensa, por vezes em pé. Estamos falando de pessoas que estão indo ao trabalho e normalmente não têm alternativa, como carro ou aplicativo”, avalia Paulo Petry, epidemiologista e professor da UFRGS.

De acordo com uma pesquisa realizada em 2020 entre os usuários do aplicativo Moovit, app de mobilidade mais usado no mundo, a demanda mais importante para os usuários de transporte público em Porto Alegre durante a pandemia foi o aumento da frota em circulação para evitar veículos cheios (alternativa escolhida por 64,2% dos usuários que responderam à pesquisa). Na Capital, a frota que circula atualmente é de 757 ônibus, 51% do total de veículos disponíveis. Ainda que o movimento de passageiros seja aproximadamente metade do patamar de antes da pandemia, a medida sugerida faz sentido do ponto de vista sanitário:

“Uma das saídas é aumentar a frota. O que não pode é as pessoas ficarem paradas esperando ônibus. Os coletivos precisariam andar com menos pessoas, mas opções como escalonamento de horários, sem todo mundo abrindo e fechando ao mesmo tempo, também são interessantes”, diz Paulo Petry.

O que diz a Prefeitura

A respeito do post de Sebastião Melo, sua assessoria informou que “sobre o tweet, o prefeito pontuou uma reflexão pessoal. Não há o que comentar.”

A Prefeitura também ressaltou algumas das ações que a gestão promove para reduzir ou evitar o contágio da Covid-19, que incluem obrigatoriedade do uso de máscara no interior dos veículos, disponibilização de álcool gel no interior dos veículos, higienização feita de forma frequente pelas equipes dos consórcios e empresas nos terminais das linhas e acompanhamento diário de técnicos da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) para verificar a necessidade de ampliação de linhas, caso haja superlotação nas viagens.

Segundo a EPTC, de janeiro a junho de 2021 foram realizados 128 dias de operações para fiscalização das medidas contra a Covid-19. Foram feitas 36.147 fiscalizações em veículos do transporte coletivo, sendo 26.543 em ônibus municipais, 2.873 em táxis e 2.030 em lotações. Além dos 757 ônibus que circulam hoje na Capital, há ainda 3.699 táxis e 215 lotações pelas ruas da cidade. Também foram realizadas 3.618 fiscalizações de higienização em garagens e terminais. Nas ações, foram registradas 564 autuações.

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