Reportagem

Torturador uruguaio condenado à prisão perpétua se refugia em Livramento

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Torturador uruguaio condenado à prisão perpétua se refugia em Livramento Imprensa uruguaia reproduziu fotos de El Burro descansando no nordeste brasileiro em 2014 (Reprodução)

Esta reportagem foi apurada pela equipe do Matinal Jornalismo e republicada em la diaria (Uruguai), El Diario AR (Argentina), Altreconomia (Itália)

Julgado na Itália por crimes cometidos durante a Operação Condor e considerado fugitivo pelo Uruguai e pela Interpol, o coronel Pedro Antonio Mato Narbondo se instalou a dois quilômetros da fronteira do seu país, em Santana do Livramento. O militar goza de proteção da Constituição desde que optou pela nacionalidade brasileira, herdada da mãe

O coronel Pedro Antonio Mato Narbondo ganhou o apelido “El Burro”* dos colegas de farda do Exército uruguaio pela forma com que conduzia seus interrogatórios. Agente da ditadura nos anos 1970, formado na Escola das Américas no Panamá — que ensinava métodos de tortura a militares latino-americanos —, Narbondo acaba de ser condenado à prisão perpétua na Itália por participar de “uma série impressionante de crimes excepcionalmente graves”, que envolveram operações ilegais de sequestro, tortura, morte e desaparecimento de opositores políticos do regime de seu país. El Burro é um dos 14 militares do Cone Sul já condenados de forma definitiva por crimes da Operação Condor, uma colaboração secreta de inteligência militar entre as ditaduras da América do Sul.

O processo corre na Itália porque várias das vítimas dos torturadores tinham cidadania italiana. O brasileiro Átila Rohrsetzer também responde a uma ação penal no mesmo processo, conforme mostramos nesta reportagem, mas seu caso ainda está na primeira instância e a sentença deverá ser conhecida no dia 26 de outubro.

De todos os 11 uruguaios condenados pela Corte de Cassação de Roma no início de julho, somente Narbondo não está preso. Prestes a completar 80 anos, em setembro, o coronel reformado leva uma vida tranquila em um bairro de classe média de Santana do Livramento, oeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Foi no portão de sua casa que ele falou com exclusividade ao Matinal, feito que nenhum jornalista da Argentina ou do Uruguai havia conseguido até hoje, apesar de tentativas.

“Eu era militar, cumpria ordens, e vivíamos em uma época de guerrilhas nos países. Os Tupamaros no Uruguai, VAR Palmares no Brasil, o mesmo na Argentina, Chile… então tudo o que eu disser em minha defesa, como militar, não vai adiantar. É na esfera política que essas questões têm que ser resolvidas”, argumenta.

Perguntado diretamente se cometeu os crimes pelos quais foi condenado, desconversa: “Foi um período, e aquilo tudo ficou no passado”. Ele não aceitou ser fotografado.

Fronteira entre Brasil e Uruguai

Narbondo mora a menos de dois quilômetros da linha imaginária que separa o Brasil do Uruguai, onde é tido como fugitivo da Justiça depois que uma juíza o convocou a depor em um processo no qual é investigado pela morte sob tortura de um operário em 1972. Ele nunca se apresentou e por isso há uma ordem de captura internacional dada pela Interpol a pedido do Uruguai.

Os poderes da polícia internacional são limitados contra o coronel porque ele é considerado brasileiro desde 2003, quando compareceu a um cartório de Livramento para optar pela nacionalidade da mãe, nascida no município gaúcho. Com isso, Narbondo está protegido pelo artigo 5º da Constituição do Brasil, que garante que “nenhum brasileiro será extraditado” para responder por crimes em outros países.

“Ele é um cidadão livre no Brasil e tem direitos e deveres como qualquer um”, ressalta seu advogado, o gaúcho Julio Martin Favero, conhecido dos militares castelhanos por facilitar a regularização de documentos de compra de imóveis do lado brasileiro. Também atuou na defesa de militares processados por crimes da ditadura, como os coronéis uruguaios Julio Techera e Manuel Cordero Piacentini, o mais conhecido deles, que acabou detido pela Polícia Federal, enviado para o Uruguai que, por sua vez, o extraditou para a Argentina, onde está preso em uma unidade do Exército, próxima a Buenos Aires.

Em 2003, Narbondo optou pela cidadania brasileira, herdada da mãe (Reprodução)

“Narbondo foi militar num período em que havia praticamente uma guerra civil. Ninguém é anjo, mas não dá pra acreditar em tudo que atribuem a ele. Estou lidando com as consequências e dentro da lei. E não venha me perguntar se tenho vergonha de defender um cidadão que chamam de genocida e sei lá mais o quê”, ironiza o defensor.

Itália condena crimes da Operação Condor

O tribunal italiano no dia em que a sentença definitiva foi emitida (Foto: Janaina Cesar)

Mato Narbondo foi condenado na Itália por participar da morte e desaparecimento de quatro cidadãos daquele país: Bernardo Arnone, Gerardo Gatti, Juan Pablo Recagno Ibarburu e María Emilia Islas Gatti de Zaffaroni. “Bernardo saiu de casa às 7h da manhã e nunca mais voltou. Agora, passados 45 anos, posso dizer que a justiça foi feita”, desabafou Mihura, viúva de Bernardo, no encerramento da derradeira audiência do processo que condenou os torturadores, em Roma, em 9 de julho.

“É uma sentença histórica. Demos às vítimas memória e justiça. É um ato contra a barbárie”, declarou o procurador da Corte de Cassação, Pietro Gaeta. 

Bernardo Arnone, Gatti, Ibarburu e Zaffaroni foram presos em Buenos Aires e levados para o temido centro clandestino na capital portenha chamado Automotores Orletti, conforme revelaram depoimentos de sobreviventes das torturas que cruzaram com os desaparecidos nos corredores da oficina mecânica de fachada.

Apelidada pelos repressores de El Jardin, a prisão clandestina foi a principal base da operação Condor no país. Estima-se que mais de 300 pessoas estiveram detidas no local.

Por este mesmo lugar passaram os irmãos Julien Grisonas, que eram crianças (de um e quatro anos) quando foram sequestrados com os pais na Argentina pelo serviço de inteligência uruguaio. Este foi um dos casos investigados pela justiça uruguaia em que o nome de Narbondo aparece relacionado a crimes cometidos no âmbito da Operação Condor — mas acabou absolvido por falta de provas. As crianças passaram por diversos centros clandestinos de tortura até finalmente serem abandonadas no Chile, onde uma família as adotou. Anos depois, recuperaram suas identidades, mas os pais permanecem desaparecidos.

Na sentença de primeiro grau da Itália, a juíza Evelina Canale lembrou que “a existência do Plano Condor tem sido comprovada por muitas fontes documentais, inclusive da CIA”. “A Operação Condor constitui um acordo de colaboração para a realização de um projeto específico de eliminação de opositores políticos”, corroborou Agatella Giuffrida, juíza da segunda instância.

Agora o Uruguai começa a investigar a participação do coronel no mais rumoroso dos assassinatos cometidos pela ditadura uruguaia, uma operação que tirou a vida do então senador Zelmar Michelini e do ex-presidente da Câmara dos Deputados Héctor Gutiérrez Ruiz, também sequestrados na capital argentina e levados para o centro clandestino Automotores Orletti.

Nos anos 80 houve uma tentativa de elucidar o caso, e uma enfermeira que teria medicado Narbondo depois de uma crise de depressão revelou que ele confessara, na ocasião, o crime, mostrando, inclusive, uma placa com homenagem das forças armadas pelo feito. Em 2011, o Uruguai condenou o ex-ditador Juan María Bordaberry e seu então chanceler, Juan Carlos Blanco, a 30 anos de prisão por participação neste episódio e por outros nove delitos, inclusive desaparições forçadas e homicídios políticos.

Curiosamente, o assassinato que trouxe Narbondo ao Brasil não está relacionado à Condor, embora tenha singular importância por ter sido o primeiro caso de morte sob tortura perpetrado pelas forças armadas uruguaias. O operário de construção civil Luis Batalla foi morto no quartel onde El Burro servia em 1972, poucos meses antes do golpe do então presidente, Juan María Bordaberry, que suspendeu os direitos constitucionais, inaugurando oficialmente a ditadura em junho de 1973. Antes de ser interrogado por suspeita de ter participado do assassinato, Narbondo cruzou a fronteira e fixou residência definitiva no Brasil em 2013.

As vítimas de Narbondo

Bernardo Arnone, Gerardo Gatti, Juan Pablo Recagno Ibarburu e María Emilia Islas Gatti de Zaffaroni fazem parte de um grupo de 27 uruguaios que militavam no Partido por la Victoria del Pueblo (PVP) e foram sequestrados em Buenos Aires entre o final de setembro e início de outubro de 1976. Os corpos das quatro vítimas nunca foram encontrados. (Clique nas fotos para saber mais sobre cada um)

Procurado internacionalmente, ignorado pelos vizinhos

Os dois lados da fronteira se confundem em uma cidade só (Fotos: Cleber Dione Tentardini)

Vistas do alto, Rivera, no Uruguai, e Santana do Livramento, no Brasil, parecem uma só cidade, embora no mapa estejam separadas por uma linha imaginária que se estende pelas zonas urbana e rural. Na prática, os habitantes podem andar livremente pelos dois lados da fronteira, o que gerou um modo peculiar de expressão que mistura os dois idiomas nacionais numa língua própria batizada de portunhol. É comum que as famílias tenham integrantes das duas nacionalidades, os chamados doble-chapas.

Em Livramento, o coronel Narbondo leva uma vida pacata, mantém hábitos saudáveis, caminha e cuida da alimentação, mas não dispensa uma costela gorda uruguaia, de preferência da Casa de Carnes Taquarembó, o açougue mais famoso da região. Viaja para visitar um filho, engenheiro, que mora em Bento Gonçalves, quando aproveita para apreciar os vinhos e queijos produzidos na cidade da serra gaúcha. 

Ele recebe uma boa aposentadoria do Instituto de Seguridade Social do governo uruguaio. O valor é cerca de 80 mil pesos, o que corresponde a aproximadamente R$ 10 mil. Para garantir a pensão, todos os anos precisa fazer prova de vida, mas não arrisca colocar os pés do outro lado da rua que divide as cidades, e os países, porque pode ser preso. O advogado Martin Favero diz que um médico uruguaio assina um atestado para seu cliente, e a esposa do coronel o apresenta ao órgão competente em Rivera. Mas o jornal uruguaio Brecha revelou que ele já cruzou a fronteira mais de uma vez para o trâmite e que, em 2019, esteve pessoalmente no Consulado uruguaio em Livramento, que deveria ter prendido o foragido e não o fez. Procurada pela reportagem, a cônsul Elisa Peres não quis comentar o assunto.

O rosto do coronel é conhecido no Uruguai, onde a imprensa reproduziu fotos suas com familiares em praias do nordeste brasileiro, em 2014, publicadas na página do Facebook da sua esposa. 

Em compensação, na rua onde mora e nas imediações, a maioria dos moradores questionados não sabia quem era o vizinho torturador. Apenas um conhecia a história do coronel devido à repercussão nos jornais uruguaios sobre a sua condenação na Justiça, mas não imaginava que residia na cidade, tampouco nas proximidades. 

“Moro aqui há mais de dez anos e devo tê-lo o visto na frente de casa duas ou três vezes, não lembro direito, mas nunca conversamos, parece ser bem reservado”, afirma. Ele não quis se identificar.

A pacata rua num bairro de classe média de Livramento onde El Burro vive

A prefeita Ana Luiza Tarouco, do Democratas (DEM), delegada da Polícia Civil gaúcha, também desconhecia a história do coronel Narbondo, segunda sua assessoria de imprensa. Nem mesmo o jornalista mais experiente da cidade e colunista político do jornal A Plateia, Edis Elgarte — sempre atento às ações judiciais, prisões e extradições dos militares uruguaios residentes em Livramento —, sabia onde o coronel residia atualmente. Tampouco estava inteirado da recente condenação dele em Roma: “Fazia anos que não ouvíamos falar dele”, admite.

Rodrigo Evaldt, editor de A Plateia, o principal jornal de Livramento, confirmou que o periódico não publicou nada sobre o tema nos últimos dois anos. “Eu nunca ouvi falar desse coronel uruguaio”, assegura. A versão em espanhol do periódico até repercutiu um pouco o caso na esteira dos diários de Montevidéu, mas depois o assunto morreu.

Quem nunca perdeu o coronel de vista é o jornalista uruguaio Gerardo Hernandez, correspondente do Canal 12, de Montevidéu, e colaborador das rádios públicas castelhanas. “Insisti tanto em entrevistá-lo que el Burro Mato criou uma antipatia por mim. Acontece que esses militares passaram muitos anos na impunidade, e quando a Justiça começou a se fazer presente, aí passaram a se dizer vítimas de perseguição política”.

Uruguai invoca Tratado do Mercosul e pede julgamento no Brasil

Se depender da justiça uruguaia o coronel pode ter de enfrentar  mais um processo – este no Brasil. Isso porque diante da impossibilidade de extradição garantida pela Constituição Brasileira , o Ministério Público do Uruguai decidiu invocar um acordo entre estados do Mercosul que obrigaria o Brasil a assumir o juízo contra o coronel em um tribunal nacional. Em seu artigo 11, a lei determina que “o Estado Parte que denegar a extradição [por força constitucional] deverá promover o julgamento do indivíduo, mantendo o outro Estado Parte informado do andamento do processo, devendo ainda remeter, finalizado o juízo, cópia da sentença”.

“Se a Itália requerer a extradição de Narbondo, vai acontecer o mesmo que com o Uruguai: o Brasil argumenta que não pode extraditar seus cidadãos. Por isso, há um mês ou dois o Uruguai pediu formalmente que a Justiça brasileira acate o que diz o acordo do Mercosul e processe Mato Narbondo pelos crimes que ele responde aqui”, informou uma fonte da Justiça uruguaia que preferiu não se identificar. 

Não há prazo fixado na legislação para a resposta ao pedido e, por enquanto, o Brasil se mantém em silêncio. Apesar da expectativa, o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, o brasileiro Jair Krischke, lembra que ao contrário do que ocorre no Uruguai, a jurisprudência brasileira não reconhece a imprescritibilidade dos crimes de lesa humanidade, o que pode ajudar Narbondo a escapar mais uma vez. Krischke foi uma figura-chave no processo movido pelo MP da Itália e na luta por justiça acerca dos crimes cometidos na ditadura no país.

Assim, o fim de Narbondo poderá, quem sabe, se parecer ao de Nestor Troccoli, também condenado no processo Condor, em Roma. Ele havia fugido do Uruguai em 2007 e, desde então, por causa da cidadania italiana, vivia livremente em Battipaglia, uma pequena cidade no sul da Itália. O ex-tenente era ligado ao serviço de inteligência do Fusna– Fusileros Navales, da marinha militar uruguaiana. Ele foi o único do grupo de militares uruguaios a não ser processado à revelia justamente por se encontrar no país. Troccoli foi preso na manhã de 10 de julho, um dia após a sentença da corte de Cassação, e levado para a penitenciária de Salerno onde está cumprindo a pena.

* Burro, em espanhol, significa pessoa bruta, incivilizada.

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