Ensaio | Memórias emocionadas | Parêntese

Adriano Silva: a Porto Alegre que existe dentro de mim

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Adriano Silva: a Porto Alegre que existe dentro de mim A primeira lembrança. Por volta de 1975. Eu tinha quatro anos. Nasci na Tristeza, em 1971. Ali, reencontrava meus pais na capital. Morávamos em cidades diferentes. Uma família em diáspora. Meus pais eram jovens e estavam em plena batalha. Celebrávamos um fim de semana juntos num quarto de pensão, onde minha mãe morava.  À minha frente, no chão, em meio aos gizes de cera, um álbum de figurinhas. Meu pai me explicando quem era Pelé – que protagonizava um dos cromos. Diante de nós, a Praça dos Açorianos. Veleiros em miniatura singravam as águas do laguinho. Um dia teríamos um daqueles barquinhos. De mãos dadas com minha mãe, à tardinha, pelas ruas estreitas e cheias de gente do Centro. Cheiros me envolviam na calçada. Café – talvez com leite. Pão – talvez quentinho. Ou pipoca – talvez doce. (Eu busco esse cheiro até hoje. Talvez ele só exista dentro de mim.) Andávamos rápido. Quem não tem, tem pressa. Havia uma senhora que dominava a tela da TV preto e branco. Ela morava naquela cidade enorme. Um dia teríamos a chance de conhecê-la pessoalmente. Era uma piscadela de meus pais: nenhum objetivo era impossível. Não éramos menos que ninguém. Porto Alegre onírica. Sensorial. De claridade ofuscante. Infinita em suas sinestesias. Em fins de 1980, às vésperas de completar 10 anos, voltei à capital com meu pai – ele e minha mãe já haviam se separado. Uma viagem noturna no Trem Húngaro. O jantar servido na bandeja de isopor. Arroz com frango e ervilhas. Um cheiro artificial – de tempero forte requentado. Eu o associei à moça de eslaques justos, cujo tecido deixava entrever os contornos do seu sexo. O velho hotel na Salgado Filho. Mario Quintana morava lá. Tomei coragem e tentei falar com o poeta. Ele não me respondeu. Eu tinha Pé de Pilão em casa – mas nunca o li. Estava lendo O Cachorrinho Samba e a Coleção Vaga-Lume e Para Gostar de Ler e a Série Taquara-Póca. Ficamos, o velho e eu, assistindo a Gol, o Grande Momento do Futebol, em silêncio, na pequena sala de televisão. Depois, a visita ao Beira-Rio. O documentário sobre Chico Buarque no cinema. A ida ao aeroporto, para ver pela primeira vez um avião de perto, numa tarde escaldante. Achamos uma nota de 50 cruzeiros no chão. Eu a vi. Ia avisar meu pai. Ele pisou em cima. E discretamente a colocou no bolso. Havia muita gente na Borges, àquela hora. Não havia necessidade de alarde. Porto Alegre corpu(lenta). Sfumata. Cheia de ares pesados e de concretos cinzas. Mais tarde, em 1986, vinha visitar meu pai, que estava morando na capital. A água de Porto Alegre, naquele prédio da Fernando Machado, tinha gosto metálico. E o cheiro que subia da padaria na rua de trás continha mais o azedo do fermento do que a maciez do pão.  Assistia ao vivo Grenais e outros jogos do Inter. Aprendi a sofrer e a amar e a vibrar e a perder de corpo presente. Aos […]

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A primeira lembrança. Por volta de 1975. Eu tinha quatro anos. Nasci na Tristeza, em 1971. Ali, reencontrava meus pais na capital. Morávamos em cidades diferentes. Uma família em diáspora. Meus pais eram jovens e estavam em plena batalha. Celebrávamos um fim de semana juntos num quarto de pensão, onde minha mãe morava.  À minha frente, no chão, em meio aos gizes de cera, um álbum de figurinhas. Meu pai me explicando quem era Pelé – que protagonizava um dos cromos. Diante de nós, a Praça dos Açorianos. Veleiros em miniatura singravam as águas do laguinho. Um dia teríamos um daqueles barquinhos. De mãos dadas com minha mãe, à tardinha, pelas ruas estreitas e cheias de gente do Centro. Cheiros me envolviam na calçada. Café – talvez com leite. Pão – talvez quentinho. Ou pipoca – talvez doce. (Eu busco esse cheiro até hoje. Talvez ele só exista dentro de mim.) Andávamos rápido. Quem não tem, tem pressa. Havia uma senhora que dominava a tela da TV preto e branco. Ela morava naquela cidade enorme. Um dia teríamos a chance de conhecê-la pessoalmente. Era uma piscadela de meus pais: nenhum objetivo era impossível. Não éramos menos que ninguém. Porto Alegre onírica. Sensorial. De claridade ofuscante. Infinita em suas sinestesias. Em fins de 1980, às vésperas de completar 10 anos, voltei à capital com meu pai – ele e minha mãe já haviam se separado. Uma viagem noturna no Trem Húngaro. O jantar servido na bandeja de isopor. Arroz com frango e ervilhas. Um cheiro artificial – de tempero forte requentado. Eu o associei à moça de eslaques justos, cujo tecido deixava entrever os contornos do seu sexo. O velho hotel na Salgado Filho. Mario Quintana morava lá. Tomei coragem e tentei falar com o poeta. Ele não me respondeu. Eu tinha Pé de Pilão em casa – mas nunca o li. Estava lendo O Cachorrinho Samba e a Coleção Vaga-Lume e Para Gostar de Ler e a Série Taquara-Póca. Ficamos, o velho e eu, assistindo a Gol, o Grande Momento do Futebol, em silêncio, na pequena sala de televisão. Depois, a visita ao Beira-Rio. O documentário sobre Chico Buarque no cinema. A ida ao aeroporto, para ver pela primeira vez um avião de perto, numa tarde escaldante. Achamos uma nota de 50 cruzeiros no chão. Eu a vi. Ia avisar meu pai. Ele pisou em cima. E discretamente a colocou no bolso. Havia muita gente na Borges, àquela hora. Não havia necessidade de alarde. Porto Alegre corpu(lenta). Sfumata. Cheia de ares pesados e de concretos cinzas. Mais tarde, em 1986, vinha visitar meu pai, que estava morando na capital. A água de Porto Alegre, naquele prédio da Fernando Machado, tinha gosto metálico. E o cheiro que subia da padaria na rua de trás continha mais o azedo do fermento do que a maciez do pão.  Assistia ao vivo Grenais e outros jogos do Inter. Aprendi a sofrer e a amar e a vibrar e a perder de corpo presente. Aos […]

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