Crônica | Parêntese

Ana Marson: Dica

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Ana Marson: Dica Acho um saco gente que dá dicas. Mais chato ainda é quem dá dicas de como a gente tem que fazer pra se acalmar. Porque nada que me mantenha parada me acalma, só me irrita. Aí sempre tenho que ouvir “mas tu nem tentou”, não tentei e não vou tentar, quem disse que eu sou desse tipo que acha que a gente tem que experimentar várias coisas na vida, “que que é que tu acha que seria bom pra mim?”, não acredito que fiz essa pergunta, foi só por educação, juro por deus, foi só retórica, não responde, não responde, normalmente é conversa comprida, não responde, agora já era. Um dia uma amiga insistiu pra que eu ouvisse mantra pra dormir melhor. Eu não sei no que, de fato, a minha insônia, minha demora pra dormir e minha agitação incomodam ela: não dormimos juntas, não dormimos no mesmo quarto, nem sequer estamos na mesma casa, mas por algum motivo a minha agitação é preocupante pra ela. Me mandou um link do YouTube, o tal mantra era um combo, cura espiritual, cura física e sono profundo. Dale. Deitei, coloquei a tocar. O detalhe é que eu tava na casa dos meus pais. Então botei aquele troço no tablet, ao meu lado na cama, baixinho. Aquela música de flauta foi entrando em mim e foi mexendo comigo lá dentro. Foi me dando uma pequena irritação, lá no fundo, sabe quando tu vai sentindo o formigar, e dali a pouco foi se transformando em raiva, aquela coisa quente subindo dentro, e a flauta lá, fluu fluu fluuuuuu na minha orelha, junto com aquele barulho de fonte bagaceira que as pessoas colocam como enfeite em casa, era uma mistura assim, de irritante com brega, até que eu fiquei com ódio, daquele ódio que a gente deseja quase a morte do maconheiro que ficou tocando essa insuportável dessa flautinha perto duma cachoeira, gravou e jogou na internet, já sentiu? Pelo maconheiro da flauta? Aí pronto: arregalei o olho na cama, eu simplesmente não tinha mais condições de fingir pra mim mesma que tinha serenidade pra manter os olhos fechados. Mas o problema sou eu, que nem tento as coisas. A pessoa que me indicou tinha dito que esse sim era o mantra, porque era nos Hertz corretos, da frequência da puta que pariu, então tá. Deixei tocando, levantei, já devia ter passado meia hora, fui pro banheiro e tomei uma colherada do xarope fenergan infantil, esse sim um belo sonífero. Eu deixei tocando porque talvez esse negócio pudesse funcionar igual incenso, espalhar seus bons fluidos pelo ambiente durante a minha ausência, o que me seria um grande favor, mas parece que não. Voltei pra cama, sei que deu um tempinho e dormi. Devia ser o que, lá por duas da manhã. Dormi. No outro dia, quando acordei, meu pai comentou que ouviu uma coisa, uma música, eram 4 da manhã, foi ver se eu tava acordada, achou estranho, aí viu que vinha do meu tablet, […]

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Acho um saco gente que dá dicas. Mais chato ainda é quem dá dicas de como a gente tem que fazer pra se acalmar. Porque nada que me mantenha parada me acalma, só me irrita. Aí sempre tenho que ouvir “mas tu nem tentou”, não tentei e não vou tentar, quem disse que eu sou desse tipo que acha que a gente tem que experimentar várias coisas na vida, “que que é que tu acha que seria bom pra mim?”, não acredito que fiz essa pergunta, foi só por educação, juro por deus, foi só retórica, não responde, não responde, normalmente é conversa comprida, não responde, agora já era. Um dia uma amiga insistiu pra que eu ouvisse mantra pra dormir melhor. Eu não sei no que, de fato, a minha insônia, minha demora pra dormir e minha agitação incomodam ela: não dormimos juntas, não dormimos no mesmo quarto, nem sequer estamos na mesma casa, mas por algum motivo a minha agitação é preocupante pra ela. Me mandou um link do YouTube, o tal mantra era um combo, cura espiritual, cura física e sono profundo. Dale. Deitei, coloquei a tocar. O detalhe é que eu tava na casa dos meus pais. Então botei aquele troço no tablet, ao meu lado na cama, baixinho. Aquela música de flauta foi entrando em mim e foi mexendo comigo lá dentro. Foi me dando uma pequena irritação, lá no fundo, sabe quando tu vai sentindo o formigar, e dali a pouco foi se transformando em raiva, aquela coisa quente subindo dentro, e a flauta lá, fluu fluu fluuuuuu na minha orelha, junto com aquele barulho de fonte bagaceira que as pessoas colocam como enfeite em casa, era uma mistura assim, de irritante com brega, até que eu fiquei com ódio, daquele ódio que a gente deseja quase a morte do maconheiro que ficou tocando essa insuportável dessa flautinha perto duma cachoeira, gravou e jogou na internet, já sentiu? Pelo maconheiro da flauta? Aí pronto: arregalei o olho na cama, eu simplesmente não tinha mais condições de fingir pra mim mesma que tinha serenidade pra manter os olhos fechados. Mas o problema sou eu, que nem tento as coisas. A pessoa que me indicou tinha dito que esse sim era o mantra, porque era nos Hertz corretos, da frequência da puta que pariu, então tá. Deixei tocando, levantei, já devia ter passado meia hora, fui pro banheiro e tomei uma colherada do xarope fenergan infantil, esse sim um belo sonífero. Eu deixei tocando porque talvez esse negócio pudesse funcionar igual incenso, espalhar seus bons fluidos pelo ambiente durante a minha ausência, o que me seria um grande favor, mas parece que não. Voltei pra cama, sei que deu um tempinho e dormi. Devia ser o que, lá por duas da manhã. Dormi. No outro dia, quando acordei, meu pai comentou que ouviu uma coisa, uma música, eram 4 da manhã, foi ver se eu tava acordada, achou estranho, aí viu que vinha do meu tablet, […]

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