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Andrea Bonow: Desbravando a floresta

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Andrea Bonow: Desbravando a floresta Ainda éramos crianças quando nossos pais entenderam que era tempo de a família morar em uma casa com pátio onde pudéssemos brincar livres, leves e soltos. Decidiram-se por ocupar uma das casas construídas por meu avô paterno no bairro Floresta, e por vinte gostosos anos a “São Carlos, 311” foi o nosso endereço. Chegamos em maio de 1950. Em poucas semanas descobrimos que fazer amigos no espaço democrático das ruas poderia ser mais interessante e dispensamos o pátio sonhado por nossos pais. Eles aceitaram nossa escolha, estabeleceram alguns limites geográficos e outras regrinhas que quase sempre obedecíamos. E no mais, liberdade, liberdade. Desde o início reconhecemos o leque de alternativas oferecido pelo bairro e a possibilidade de encontrarmos até mesmo o que ainda nem sabíamos que queríamos. Escolas, clubes, cinemas, bares e restaurantes mais ou menos, é verdade, mas também havia. E no diversificado comércio se sobressaíam as lojas de flores, assim no plural, atestando o bom gosto das gentes da Floresta.  Encontramos a Igreja Santa Terezinha em fase final de construção. Dela tenho lembrança do tempo em que, ao entrar, os casais se separavam, indo homens para um lado e mulheres para o outro. Porém, os noivos recém-casados desciam as escadarias de braços dados, alegres e felizes, enquanto os não convidados – inclusive eu – se aglomeravam na calçada fronteira esquadrinhando os vestidos brancos das noivas. No entanto, a recordação mais forte, e dela me gabo especialmente, é a que me remete as tardes que passei assistindo Aldo Locatelli pintando os murais que embelezam seus tetos e paredes. Acho que vem daí meu encantamento pela arte de fazer arte. Os preocupados pais com educação dos filhos encontravam ensino de qualidade nos diversos colégios com orientações diversas que recebiam a maioria das crianças e adolescentes. Ainda estão por lá o Marechal Floriano Peixoto, o Batista, o Bom Conselho. Um pouquinho mais distante, em direção ao centro, o Rosário, e mais para o bairro, o São Pedro. Porém só na minha lembrança reside o Fátima, onde fiz o Jardim da Infância. Os anchietanos de fé se deslocavam de bonde, desciam na Praça XV e caminhavam até o casarão da Duque, que então abrigava o Anchieta. Alguns cheiros, que não deixaram saudade, entravam indiscretos pelas janelas e se instalavam indesejadamente em todos os cômodos das casas. Provinham do processamento de medicamentos produzidos pelo Laboratório Geyer ou da fabricação da bebida pela Cervejaria Brahma. Mais distante de nós, a Souza Cruz estragava o ar com o odor do fumo se transformando em cigarros. No entanto, as padarias nos compensavam, às cinco horas da tarde, quando o cheirinho de pão quente saindo do forno atraía até os passantes mais distraídos. Quem não se apressasse perdia a vez e o pão.  Dos ruídos do bairro, inesquecível o despertar ao som da sirene da Cervejaria às sete da manhã me avisando a hora do colégio. Ou ter o sono interrompido pelo barulho remoto da viagem do último bonde diário que mais parecia o de um trem […]

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Ainda éramos crianças quando nossos pais entenderam que era tempo de a família morar em uma casa com pátio onde pudéssemos brincar livres, leves e soltos. Decidiram-se por ocupar uma das casas construídas por meu avô paterno no bairro Floresta, e por vinte gostosos anos a “São Carlos, 311” foi o nosso endereço. Chegamos em maio de 1950. Em poucas semanas descobrimos que fazer amigos no espaço democrático das ruas poderia ser mais interessante e dispensamos o pátio sonhado por nossos pais. Eles aceitaram nossa escolha, estabeleceram alguns limites geográficos e outras regrinhas que quase sempre obedecíamos. E no mais, liberdade, liberdade. Desde o início reconhecemos o leque de alternativas oferecido pelo bairro e a possibilidade de encontrarmos até mesmo o que ainda nem sabíamos que queríamos. Escolas, clubes, cinemas, bares e restaurantes mais ou menos, é verdade, mas também havia. E no diversificado comércio se sobressaíam as lojas de flores, assim no plural, atestando o bom gosto das gentes da Floresta.  Encontramos a Igreja Santa Terezinha em fase final de construção. Dela tenho lembrança do tempo em que, ao entrar, os casais se separavam, indo homens para um lado e mulheres para o outro. Porém, os noivos recém-casados desciam as escadarias de braços dados, alegres e felizes, enquanto os não convidados – inclusive eu – se aglomeravam na calçada fronteira esquadrinhando os vestidos brancos das noivas. No entanto, a recordação mais forte, e dela me gabo especialmente, é a que me remete as tardes que passei assistindo Aldo Locatelli pintando os murais que embelezam seus tetos e paredes. Acho que vem daí meu encantamento pela arte de fazer arte. Os preocupados pais com educação dos filhos encontravam ensino de qualidade nos diversos colégios com orientações diversas que recebiam a maioria das crianças e adolescentes. Ainda estão por lá o Marechal Floriano Peixoto, o Batista, o Bom Conselho. Um pouquinho mais distante, em direção ao centro, o Rosário, e mais para o bairro, o São Pedro. Porém só na minha lembrança reside o Fátima, onde fiz o Jardim da Infância. Os anchietanos de fé se deslocavam de bonde, desciam na Praça XV e caminhavam até o casarão da Duque, que então abrigava o Anchieta. Alguns cheiros, que não deixaram saudade, entravam indiscretos pelas janelas e se instalavam indesejadamente em todos os cômodos das casas. Provinham do processamento de medicamentos produzidos pelo Laboratório Geyer ou da fabricação da bebida pela Cervejaria Brahma. Mais distante de nós, a Souza Cruz estragava o ar com o odor do fumo se transformando em cigarros. No entanto, as padarias nos compensavam, às cinco horas da tarde, quando o cheirinho de pão quente saindo do forno atraía até os passantes mais distraídos. Quem não se apressasse perdia a vez e o pão.  Dos ruídos do bairro, inesquecível o despertar ao som da sirene da Cervejaria às sete da manhã me avisando a hora do colégio. Ou ter o sono interrompido pelo barulho remoto da viagem do último bonde diário que mais parecia o de um trem […]

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