As diversões públicas na Porto Alegre do século XIX: os espetáculos de projeção por lanterna mágica
O Bins e o Vasques, referidos no trecho acima, eram, respectivamente, proprietários da loja “Ao Preço Fixo” e do restaurante “Gruta Recreativa”, estabelecimentos porto-alegrenses que muito provavelmente ajudaram a financiar, através dos anúncios publicitários que mandaram confeccionar e exibir, a atração pública descrita. Trata-se de projeções luminosas ao ar livre que, segundo o cronista, encantaram os espectadores, muitos dos quais certamente vivenciavam a experiência pela primeira vez.
O soberbo relato registra um evento realmente singular, visto que até então a realização das projeções ópticas em Porto Alegre havia se restringido aos teatros e salões de sociedades privadas, certamente atraindo um público distinto deste que as presenciou na rua, demonstrando toda a sua curiosidade e alegria. Realizadas na parede lateral de algum edifício situado na esquina mais central da cidade, elas iluminaram a noite porto-alegrense e são as únicas de que se tem notícia para a época, nesse formato.
O aparelho denominado “Sylforama” também não era estranho aos porto-alegrenses, aos quais já havia sido exibido por três vezes (1872, 1885 e 1888). Como rubrica da mitologia, o termo Sylpho remete, em dicionários de 1890, ao “gênio do ar” da mitologia céltica e germânica medieval, o que ajuda a entender a sua apropriação para compor o nome fantasia de um aparelho capaz de fazer as imagens viajarem pelo ar, através da luz, até uma tela ou parede. Porque era isso que o Sylforama era: uma lanterna mágica, o primeiro projetor da história, antepassado dos projetores de slides e que seria parte constituinte dos projetores de filmes até 1912.
A lanterna mágica consistia em uma caixa de madeira, folha de ferro, cobre ou cartão, equipada com uma lente, que, mediante o uso de luz artificial, permitia a projeção amplificada de imagens em uma tela ou parede. Criada em meados do século XVII pelo matemático e físico holandês Christiaan Huygens (1629-1695) a partir de uma série de conhecimentos já acumulados nos terrenos da física e da óptica, ela ficou conhecida como a “lanterna do medo” ou lanterna mágica por concentrar um princípio de funcionamento que não era conhecido por todos, e também por proporcionar um prodigioso espetáculo.
A sua popularização e exploração comercial não foram estimuladas pelo seu inventor, interessado em manter a separação entre a ciência e sua apropriação para fins de entretenimento, mas por exibidores itinerantes que passaram a percorrer a Europa realizando projeções. As imagens que projetavam eram pintadas manualmente em placas de vidro, as quais eram emolduradas em madeira. As placas traziam temas como guerras, vistas turísticas de cidades e respectivos monumentos, expedições a lugares exóticos, como selvas e regiões polares, histórias humorísticas, contos infantis, trechos de óperas, temas religiosos e científicos (anatomia, botânica, zoologia, arquitetura, história, astronomia, geografia), retratos de personalidades, temas grotescos e de terror, cenas da vida cotidiana, contos de fada, etc.
Se o princípio de funcionamento da lanterna mágica permaneceu basicamente o mesmo durante os séculos em que foi empregada para divertir e ensinar, tanto lanternas quanto placas de vidro foram aperfeiçoadas por sábios e artesãos, que melhoraram a qualidade de suas lentes, fontes energéticas e placas de vidro, diversificando ainda a natureza das imagens projetadas. Na década de 1850, tornou-se possível fixar fotografias em placas de vidro. Vinte anos depois, desenvolveu-se a cromolitografia, que ampliou o acesso infantil aos aparelhos de projeções e suas possibilidades de contar e ouvir histórias.
As lanternas mágicas eram confeccionadas em diferentes tamanhos e formatos. As mais simples empregavam como fonte luminosa a lâmpada a óleo ou uma vela, o que proporcionava uma luminosidade fraca e limitava o seu uso a salas pequenas, para diversão adulta em salões de elite ou como passatempo infantil. Um exemplo pode ser apreciado no filme sueco Fanny e Alexander (1982), de Ingmar Bergman.
Na segunda metade do século XIX, o uso da lanterna mágica cresceu e se diversificou, atingindo o seu mais alto grau de qualidade técnica e artística. Com a descoberta de novas e mais potentes fontes energéticas, as lanternas mágicas integraram fontes como a luz oxídrica (década 1820) e a luz elétrica (década de 1890), que aumentariam a qualidade das projeções e permitiriam a sua exibição em grandes teatros. As lentes também foram aperfeiçoadas para evitar a deformação das imagens e as lanternas e placas ganharam mecanismos e dispositivos que permitiriam projetar cenas com movimentos simples e efeitos de dissolução.
Por essa época, também os porto-alegrenses conheceram e apreciaram as práticas e técnicas relacionadas com as experimentações e diversões ópticas europeias. Dispositivos de observação de imagens, como as caixas ópticas, abordadas na edição n. 61 da Parêntese, e espetáculos de projeções de lanterna mágica também estiveram entre as opções de diversões públicas locais, juntamente com o circo, o teatro, os concertos musicais e as touradas.
Desde 1861, pessoas de diferentes faixas etárias, gêneros e categorias sociais foram atraídas a locais e espetáculos públicos e pagos em busca desse gênero de entretenimento visual. Em uma única ocasião, a motivação foi pedagógica (Lanterna microscópio, 1880), mas o público reclamou por ter visto pulgas e piolhos ampliados. Diferente das tradições inglesa e francesa, que contaram com salas especializadas em projeções luminosas, em Porto Alegre o teatro se tornou o lugar por excelência da sua exibição. Isso porque foi no teatro que se apresentaram habitualmente as companhias de prestidigitação (mágica) e ilusionismo, em voga nas décadas de 1860-70, e de variedades, a partir da década de 1880, em cujos programas as projeções de vistas figuravam como a atração de encerramento do espetáculo, o que indica que eram muito aguardadas. Graças a tais exibições, os espectadores viram e ouviram histórias e se deliciaram com a beleza e o colorido das imagens, às vezes abstratas, produzidas para maravilhar os sentidos, mas também conheceram pontos turísticos das principais cidades europeias, ampliando os seus horizontes informativos e a sua memória visual.
As projeções luminosas proporcionaram um outra e nova experiência de “viajar sem sair do lugar”, já exercitada pelos observadores dos cosmoramas, conferindo-lhe um caráter espetacular. O Theatro São Pedro, inaugurado em 1858, recebeu a atração a partir de 1861, mantendo tal exclusividade até a década de 1880, quando foi construído o Theatro de Variedades (1879), na Rua Voluntários da Pátria, que também passou a receber tais companhias e atrações.
Nos teatros, locais de consagrada consideração pública, tanto a prestidigitação quanto as projeções ópticas acabariam por se impor e ganhar alguma notabilidade como gêneros de entretenimento, angariando a atenção de um público mais exigente e cosmopolita, embora jamais tenham rivalizado em valor social e artístico com as companhias líricas e dramáticas. O seu interesse maior devia se equilibrar entre os esforços de uma ciência empírica cada vez mais interessada em desmistificar superstições e charlatanismos por meio de demonstrações científicas e o fascínio que uma antiga tradição de mágica imagística continuava a despertar entre as audiências populares, desejosas de novos efeitos visuais, agora criados e/ou intensificados pelas descobertas científicas. Nos espetáculos de ilusionismo apresentados em Porto Alegre, as projeções foram apresentadas segundo duas finalidades distintas. A primeira consistia em oferecê-las como uma atração extra, destinada a dar maior duração, variedade e interesse ao espetáculo. Em razão de sua natureza técnica e da crescente valorização das imagens como fontes de conhecimento e encantamento, as projeções luminosas contribuíam para prestigiar os gêneros espetaculares aos quais foram associadas. Neste caso, o aparelho projetor era mantido visível aos espectadores, sendo manuseado em meio ao público, que assim podia apreciar tanto as imagens projetadas quanto a invenção científica que as propiciava. Propagado com destaque, o dispositivo recebia sempre instigantes e mirabolantes nomes fantasiosos, como Megascópio egípcio (1861, 1878), Poliorama fantasmagórico (1863), Diafanorama (1875), Calidoscópio gigante (1880, 1883 e 1887), Grande Poliorama Elétrico (1882), Silforama (1888), Stereopticon (1890) e Polyorama Universal (1896).
Tais denominações provavelmente buscavam enobrecer e distinguir o aparelho profissional e o respectivo espetáculo das lanternas mágicas domésticas, de confecção e funcionamento mais simples, incapazes de proporcionar os mesmos surpreendentes efeitos visuais. Para tal, eram privilegiadas imagens de grande beleza, com o intuito de proporcionar aos espectadores experiências lúdicas e sensações prazerosas, daí o predomínio das vistas de temática turística e artística, mas também daquelas que ilustravam narrativas baseadas nos clássicos da literatura laica e religiosa.
A segunda orientação obedecia ao interesse e/ou necessidade de empregar tais dispositivos como meio de incremento dos truques. Para tal, o uso do dispositivo não era revelado, preocupando-se o ilusionista em ocultá-lo como o responsável pela viabilização mecânica de certos efeitos, comumente relacionados às ciências ocultas. Em tais espetáculos, buscava-se aumentar a tensão e mesmo provocar o medo entre o auditório, respondendo ao gosto pela ilusão e pelos espetáculos de sensações.
As lanternas mágicas e suas vistas tiveram importância fundamental no estreitamento da relação dos contemporâneos com as imagens técnicas e na sua formação como espectadores de espetáculos de projeções, participando da dinamização e construção de uma cultura visual. E isso faria diferença em 1896, quando seriam apresentadas em Porto Alegre as vistas animadas do cinematógrafo.
Para ver e saber mais:
- Projeções por lanterna mágica – Museu do Cinema de Girona/Espanha: https://www.youtube.com/watch?v=dhrCiqFb6v4
- Espetáculo de lanterna mágica: O fantasma de Robinson Crusoé – Cinemateca Francesa: https://www.cinematheque.fr/henri/film/144888-le-fantome-de-robinson-crusoe-patrice-guerin-2015/
Alice Dubina Trusz é mestre e doutora em História pela UFRGS, com passagem pela ECA-USP no pós-doc, estudando as relações entre a história e o cinema. Sobre o tema, publicou Entre lanternas mágicas e cinematógrafos: as origens do espetáculo cinematográfico em Porto Alegre. 1861-1908 (São Paulo: Ecofalante, 2010), vencedor do Prêmio SAV-Minc 2010, e Verdes anos: memórias de um filme e de uma geração (Porto Alegre, UFRGS/PMPA, 2016). Interessada na história da cultura e da visualidade, tem diversas publicações em livros e revistas acadêmicas sobre a história da exibição cinematográfica, da fotografia, da publicidade, da imprensa periódica ilustrada e das artes gráficas.