Crônica | Parêntese

Carlos Gerbase: Quem era eu?

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Carlos Gerbase: Quem era eu? Ao recuperar originais antigos para o projeto Usina de Reciclagem do Lixo do Gerbase (urldogerbase.com.br), que entrou na rede terça-feira passada, tive algumas surpresas. Ao reencontrar o garoto que escrevia suas primeiras ficções, incentivado pelos professores do Colégio Anchieta, lá por 1974, percebi que alguns contos tinham forte preocupação social e, mesmo naquele ambiente super-protegido, em que pouco se falava de ditadura ou desigualdade, eu gostava de personagens marginais às voltas com a lei. Meu eu adulto costumava creditar a escolha dessa temática à influência de Rubem Fonseca, mas só conheci o autor em 1976. Lembrei agora que naquela época (entre 74 e 76) li “Germinal”, de Zola (que me impressionou muito), “O triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, e “O cortiço”, de Aluísio Azevedo. Os dois últimos eram leituras obrigatórias no Anchieta. Uma boa salada de literatura realista engajada. Rubem Fonseca caiu como uma luva nesse time. Nenhuma surpresa ao constatar que, independente do tema do conto, eu escrevia mal. A colocação dos pronomes era terrível. Mesmo sem usar mesóclise (o que, 45 anos depois, ainda me envergonharia muito), minhas ênclises, muitas delas evitáveis, tiravam toda a possibilidade do texto fluir com alguma naturalidade. Acho que eu tentava (e não conseguia) escrever corretamente, seguindo as regras apresentadas pelo professor Cláudio Moreno, mas entre o que está certo para o vestibular e o que está certo para a ficção há uma distância considerável. O Moreno não tem culpa. Pelo contrário. Sempre me incentivou. Ele e o Paulinho Guedes liam meus textos e faziam críticas de que lembro até hoje. Uma vez, depois de enfrentar uma tentativa de conto de ficção-científica, o Moreno me disse: “O Brasil não tem base tecnológica pra esse estilo. Ninguém acreditaria num astronauta porto-alegrense. Tenta outra coisa.” Ele estava certo, é claro. Mas ainda desafiarei o Moreno. Afinal, agora temos até um ministro astronauta. A verdadeira surpresa apareceu quando resgatei textos produzidos mais tarde, em meados da década de 1980, quando já tinha vinte e tantos anos. Em 1987, foi publicado meu primeiro livro de contos, Comigo Não (L&PM). Meu amigo Giba Assis Brasil me ajudou a escolher quais textos entrariam e quais iriam para o lixo, já que havia material para dois livros. Ao reler esses contos rejeitados (que estarão disponíveis na minha usina de reciclagem) e textos posteriores (inclusive um romance nunca publicado) encontrei um autor estranhamente livre. Muito mais livre do que sou hoje quando escrevo, tanto ficção quanto não-ficção. Não sei quando a expressão “politicamente correto” surgiu, mas com toda certeza eu não a conhecia. Ou, se conhecia, mandava ela pra puta que pariu a cada cinco minutos. Eu escrevia com a absoluta convicção de que os personagens que eu criava (e o que eles diziam) jamais seriam confundidos com quem eu era (ou com o que eu pensava). Isso se chama liberdade. Envolve risco, envolve erro, envolve até arrependimento. Mas como era bom ser livre! O que chamei de liberdade não deveria se chamar apenas de ficção? Com diria Joseph […]

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Ao recuperar originais antigos para o projeto Usina de Reciclagem do Lixo do Gerbase (urldogerbase.com.br), que entrou na rede terça-feira passada, tive algumas surpresas. Ao reencontrar o garoto que escrevia suas primeiras ficções, incentivado pelos professores do Colégio Anchieta, lá por 1974, percebi que alguns contos tinham forte preocupação social e, mesmo naquele ambiente super-protegido, em que pouco se falava de ditadura ou desigualdade, eu gostava de personagens marginais às voltas com a lei. Meu eu adulto costumava creditar a escolha dessa temática à influência de Rubem Fonseca, mas só conheci o autor em 1976. Lembrei agora que naquela época (entre 74 e 76) li “Germinal”, de Zola (que me impressionou muito), “O triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, e “O cortiço”, de Aluísio Azevedo. Os dois últimos eram leituras obrigatórias no Anchieta. Uma boa salada de literatura realista engajada. Rubem Fonseca caiu como uma luva nesse time. Nenhuma surpresa ao constatar que, independente do tema do conto, eu escrevia mal. A colocação dos pronomes era terrível. Mesmo sem usar mesóclise (o que, 45 anos depois, ainda me envergonharia muito), minhas ênclises, muitas delas evitáveis, tiravam toda a possibilidade do texto fluir com alguma naturalidade. Acho que eu tentava (e não conseguia) escrever corretamente, seguindo as regras apresentadas pelo professor Cláudio Moreno, mas entre o que está certo para o vestibular e o que está certo para a ficção há uma distância considerável. O Moreno não tem culpa. Pelo contrário. Sempre me incentivou. Ele e o Paulinho Guedes liam meus textos e faziam críticas de que lembro até hoje. Uma vez, depois de enfrentar uma tentativa de conto de ficção-científica, o Moreno me disse: “O Brasil não tem base tecnológica pra esse estilo. Ninguém acreditaria num astronauta porto-alegrense. Tenta outra coisa.” Ele estava certo, é claro. Mas ainda desafiarei o Moreno. Afinal, agora temos até um ministro astronauta. A verdadeira surpresa apareceu quando resgatei textos produzidos mais tarde, em meados da década de 1980, quando já tinha vinte e tantos anos. Em 1987, foi publicado meu primeiro livro de contos, Comigo Não (L&PM). Meu amigo Giba Assis Brasil me ajudou a escolher quais textos entrariam e quais iriam para o lixo, já que havia material para dois livros. Ao reler esses contos rejeitados (que estarão disponíveis na minha usina de reciclagem) e textos posteriores (inclusive um romance nunca publicado) encontrei um autor estranhamente livre. Muito mais livre do que sou hoje quando escrevo, tanto ficção quanto não-ficção. Não sei quando a expressão “politicamente correto” surgiu, mas com toda certeza eu não a conhecia. Ou, se conhecia, mandava ela pra puta que pariu a cada cinco minutos. Eu escrevia com a absoluta convicção de que os personagens que eu criava (e o que eles diziam) jamais seriam confundidos com quem eu era (ou com o que eu pensava). Isso se chama liberdade. Envolve risco, envolve erro, envolve até arrependimento. Mas como era bom ser livre! O que chamei de liberdade não deveria se chamar apenas de ficção? Com diria Joseph […]

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